Não é neccessário vivermos ao lado de alguém para nos sentirmos ligados a esse alguém mais do que a qualquer outra pessoa...

domingo, 22 de maio de 2022

Revelações inesperadas...

Tranque as bibliotecas, se quiser; mas não há portões, nem fechaduras, nem cadeados com os quais consiga trancar a liberdade do meu pensamento.

  As mulheres têm servido há séculos como espelhos, com poderes mágicos e deliciosos de refletir a figura do homem com o dobro do tamanho natural. Sem esse poder, provavelmente, a terra ainda seria pântanos e selvas. As glórias de todas as nossas guerras seriam desconhecidas.



Seja qual for o seu uso nas sociedades civilizadas, os espelhos são essenciais para todas as ações violentas e heroicas. É por isso que tanto Napoleão quanto Mussolini insistiam tão enfaticamente na inferioridade das mulheres, pois, se elas não fossem inferiores, eles deixariam de crescer. Isso explica, em parte, a necessidade que as mulheres representam para os homens. E serve para explicar como eles ficam incomodados com as críticas delas; como é impossível para elas dizerem que tal livro é ruim, tal quadro é medíocre, ou o que quer que seja, sem infligir muito mais tormento e despertar muito mais raiva do que um homem teria causado ao fazer a mesma crítica. Pois se ela resolver falar a verdade, a figura no espelho diminuirá. Como ele continuará a fazer julgamentos, civilizar nativos, criar leis, escrever livros, vestir-se bem e discursar em banquetes, a menos que consiga ver a si mesmo no café da manhã e no jantar com pelo menos o dobro do tamanho que realmente tem?



É de se imaginar que ela seja da maior importância; na prática ela é completamente insignificante. Ela permeia a poesia de capa a capa; está sempre presente na história. Domina a vida de reis e conquistadores na ficção; na vida real, era escrava de qualquer garoto cujos pais lhe enfiassem um anel no dedo. Algumas palavras mais inspiradas, alguns pensamentos mais profundos da literatura vieram de seus lábios; na vida real, ela pouco conseguia ler, mal conseguia soletrar e era propriedade do marido.
A PRINCESA RATTAZZI (1813-1883), como era designada, foi publicista, romancista, poetisa, autora também de textos dramáticos e tradutora, mas não entrou certamente para a galeria dos autores literários de grande, médio ou pequeno relevo. Todavia, em 1879 escreveu este livro, que desencadeou uma verdadeira tempestade em Portugal, na qual intervieram, entre muitos outros, Camilo Castelo Branco, Antero de Quental e Ramalho Ortigão. Espelho da sociedade portuguesa do século XIX, nele ainda hoje se reflete arrebatadamente o país."

Uma fogueira de vaidades para queimar Maria Rattazzi

Escrevi-o inspirada pela poesia radiosa e bela de Sintra, pela austera grandeza de Alcobaça; é filho da minha simpatia por um povo que amava e admirava, a quem me prendem um sem número de relações afetuosas e gratas(...) os meus detractores não irão espancar a tradução do livro que resistiu ao fogo das suas labaredas(...) ?« Non raggionam di lor ma sguarda e passa!»
Prefácio da edição portuguesa, Março de 1880, Maria Rattazzi


      Os favoritos, devorando os recursos do Estado e da nação, apossavam-se de todos os empregos civis e militares de alguma importância e favoreciam com eles os seus protegidos, servindo-se dos dinheiros públicos para orientar o seu próprio luxo e alimentar uma legião de parasitas, coartando e e entibiando o desenvolvimento do país.
    Foi esse o tempo em que os cortesãos alcançavam sem a menor dificuldade para os seus afilhados de baixa estirpe, as comendas de todas as ordens do reino recusadas a mais de um servidor experiente; em que o povo era esmagado por pesadíssimos impostos e em que Lisboa tremia de medo ao menor gesto do intendente de polícia, Pina Manique
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 De todos os livros e relatos que se escreveram sobre o nosso país, o texto de Maria Rattazzi - Portugal de Relance -é o principal candidato ao estatuto de mais polémico. "Prémio" a que não será alheio o tom, a displicência, o à-vontade e a irreverência com que a princesa tratou um tema tão caro aos portugueses, a sua própria pátria. Não é que o volume fosse apenas pródigo em falsidades - como o próprio título original parecia indiciar, um vol d'oiseau sobre Portugal - mas o que lá estava impresso provocou uma verdadeira fogueira de vaidades, com repercussão raramente vista no nosso meio cultural. 

A reacção negativa com que foi recebida a prosa da visitante ultrapassou em muito a habitual hospitalidade que é costume verificar-se no confronto com os regulares contributos dos estrangeiros que nos visitam. Neste caso, não existiram opiniões favoráveis, nem defensores para uma dama cujo comportamento era tido como bem leviano. Se a senhora não foi vítima de uma cena de pancadaria só se deve a um mínimo de pudor por parte dos homens (e até mulheres!) de oitocentos que tiveram vontade de exercer uma reparação pouco intelectual. 

Contra a autora levantaram-se tantos protestos e antipatias que ela nem teve coragem de dedicar o trabalho a alguém. "A quem hei-de dedicá-lo?", perguntava no prefácio... E, respondia "Oferecê-lo, como homenagem afectuosa, a qualquer dos meus amigos, seria falta de generosidade, equivaleria a condenar um inocente aos transes afrontosos de uma vendetta implacável". Por isso, decide oferecer "aos meus inimigos" a "humilde dedicatória". Inimigos não lhe faltariam após a primeira impressão em português - e uma segunda foi exigida pouco tempo depois. Edições que se sucederam à original publicada em francês, da casa editora de A. Degorcet-Cadeau sob o título atrás referido e com um subtítulo Portugais et Portugaises, numa capa onde se lia como autora duas palavras: Princesa Rattazzi.




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