Não é neccessário vivermos ao lado de alguém para nos sentirmos ligados a esse alguém mais do que a qualquer outra pessoa...

sexta-feira, 13 de maio de 2022

Kavafis: um amor intransitivo; uma vida transitiva...


“Kavafis não hierarquizava a realidade e a imaginação, como se percebe em muitos poemas amorosos. 



Homossexual não casto, frequentador dos bordéis de Alexandria, Kavafis nunca foi no entanto um poeta do facto, do acto, mas da abordagem prévia e da memória subsequente. Num texto que os tradutores consideram ilustrativo de um registo específico dessa poesia amorosa, “Meia-hora” (1917), o sujeito poético descreve a felicidade do amor intransitivo, por virtude do muito imaginar, e ao mesmo tempo reconhece que o contacto físico, ainda que fugaz, com o objecto do seu desejo torna mais concreto aquilo que é cosa mentale.



Meia-hora

 Nunca te tive e suponho que nunca te vou ter. Umas palavras, uma aproximação, como ontem no bar, e nada mais. É lamentável, admito. Mas nós que servimos a arte conseguimos por vezes, com a intensidade da consciência, e claro que apenas por pouco tempo, um prazer que parece quase tangível. Foi assim que ontem no bar — com a ajuda do álcool compassivo — tive uma meia-hora totalmente erótica. E acho que percebeste isto e que ficaste mais um pouco de propósito. Isso era-me muito necessário. Porque para lá de toda a imaginação, e da magia do álcool, também precisava de ver os teus lábios, precisava que o teu corpo estivesse perto.

(Versão portuguesa, a partir da tradução inglesa de Keeley e Savidis.)

Bom pretexto para tentar iniciar uma existência intransitiva ou, talvez copulativa, mas sem predicativo do sujeito: ser, estar e ponto final:  aceitar ofensas, ofertas,  boleias, queixas, gastos de água, lume no máximo,  luzes acesas,  família e amigos;  não interromper o sono, os jogos, as paciências; não contestar opiniões, compras, idas ; silenciar covid, ucrânia, refugiados; não cebolar roupa velha; não programar convívios, viagens, idas ao super ; colocar café, água, tampa no álcool; não esquecer porta aberta, telemóvel; não  atender o telemóvel ou telefone; não aconselhar alimentos; não lembrar medicação;  desligar a luz;   limpar migalhas, filtro , sanita.
Como se constata, um projeto de vida intransitivo, implica, afinal, muitos complementos diretos, portanto, muitas ações transitivas...

Estragas -me a paz.  E eu preciso das minhas solidões, de bocados mentais sem ti.Começo a ser doença obsessiva ao repetir -me por poemas isto: as tuas invasões à minha paz. (Podia até em jeito original pôr aqui umas notas sobre ti ...Mas é que a minha paz fica toda estragada quando te penso amor.  Interrompi os versos por laranjas. E volto sempre a ti mesmo que não. É estranho que pacíficas laranjas não me consigam afastar de ti. E que senil te pendure outra vez na mesma corda, as molas sempre iguais e que se chove corra a apanhar -te, não te vás desbotar ou romper, ou sei lá, por húmida metáfora ou bolorenta imagem de cordel. Mas é que não és tu: sou eu que ando estragada: as minhas solidões não as preciso e a minha paz, coitada, já teve a mesma sorte que os bocados mentais de que falava no verso três da página anterior.

(Calar, aceitar, concordar, elogiar, agradecer...Sorrir, lamentar, ser solícita...Fingir, fingir...)


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