Não é neccessário vivermos ao lado de alguém para nos sentirmos ligados a esse alguém mais do que a qualquer outra pessoa...

segunda-feira, 10 de outubro de 2022

Seres que não são...

«Oblomov parece uma caricatura, mas é um ser humano. É uma daquelas personagens cujo nome passa a integrar o léxico de um país, e se tornam símbolo de determinada característica humana. Assim como dizemos de um discurso que é acaciano, ou de uma atitude que é quixotesca, os russos usam a palavra oblomovismo para designar uma certa indolência apática. Não é uma indolência que rejeita a vida, como a de Bartleby, nem uma incapacidade de agir motivada pela ponderação das consequências dos seus actos, como a de Hamlet. É uma indolência pueril, de quem não pode nem quer abandonar a infância para entrar num mundo perigoso, aborrecido, contrário ao seu conceito de vida, e no qual se valoriza uma actividade abominável: o trabalho. Oblomov está assoberbado de inércia como uma criança aborrecida.» Ricardo Araújo Pereira


    Ilitch Oblomov... Era um homem de trinta e dois ou trinta e três anos, de estatura mediana, bem‑apessoado, de olhos cinzentos‑escuros, mas com uma total ausência de qualquer ideia precisa, de qualquer concentração nos traços do rosto. O pensamento voava‑lhe pelo rosto como um pássaro livre, esvoaçava nos olhos, pousava nos lábios entreabertos, ocultava‑se nas rugas da testa, depois desaparecia por completo e então parava‑lhe em todo o rosto a fraca luz uniforme da despreocupação. Essa despreocupação passava do rosto para a postura de todo o corpo, e até para as pregas do roupão.
 


     Se da alma lhe afluía ao rosto uma nuvem de preocupação, o seu olhar enevoava‑se, surgiam‑lhe rugas na testa, e começava o jogo da dúvida, da consternação, do medo; mas era raro essa inquietação assumir a forma de uma ideia determinada, mais raramente ainda se transformava num desígnio. Toda a inquietação se resolvia com um suspiro e esfumava‑se na apatia ou na sonolência.

Estar deitado não era para Iliá Ilitch uma necessidade, como um doente ou como uma pessoa que quer dormir, nem como se estivesse cansado; nem por deleite, como um preguiçoso: era esse o seu estado normal. Quando estava em casa — e ele estava quase sempre em casa —, ficava sempre deitado, e sempre na mesma sala onde o fomos encontrar, que lhe servia de quarto de dormir, de gabinete e sala de recepção.

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