A Mulher pela palavra se apaixona
Pela palavra
...
A Mulher pela palavra se apaixona
Pela palavra
Escrita ou falada.
...
A Mulher pela palavra se apaixona.
Pela palavra. E quase
Por mais nada.
Mas o quase é importante.
Desde a primeira infância, quando deixou de ser bebé, Sonechka entregou-se à leitura...
Durante vinte anos, dos sete aos vinte e sete, Sonechka leu sem parar. Quando lia entrava num estado de transe , que terminava com a última página do livro.A sua sensibilidade para a palavra escrita era tão grande que as personagens inventadas estavam em pé de igualdade com as pessoas de carne e osso, que lhe eram próximas....
Para Sonechka, a leitura tornara-se uma forma ligeira de loucura , que não a abandonava nem durante o sono: dormia como se estivesse a ler os seus sonhos.
Formou-se na Escola Técnica dos Bibliotecários e começou a trabalhar no depósito subterrâneo de uma velha biblioteca...
Depois de trabalhar vários anos como freira no depósito de livros, Sonechka rendeu-se à persuasão da sua chefe , também ela uma leitora obsessiva, e decidiu ingressar na universidade...
Começou a guerra...rapidamente se instalou na cave da biblioteca, a única residência segura...
Robert Viktorovich entrou na biblioteca no dia em que Sonechka estava a substituir o responsável da secção de entrega de livros, que tinha adoecido....
Sonechka escreveu pela primeira vez o nome do leitor, até então desconhecido mas que, daí exactamente a duas semanas, se iria tornar seu. ...
À semelhança de um aguaceiro vindo do céu serenamente límpido, foi de súbito atingido pela sensação de que o seu destino se concretizava: naquele momento compreendeu que tinha diante de si a sua esposa. ...
Era amante e consumidor de mulheres, alimentava-se muito dessa fonte inesgotável, mas mantinha-se vigilante para presever a sua independência, receando transformar-se numa presa do apelo feminino , que é taão paradoxalmente generoso para aqueles que recebem e destrutivamente cruel para aqueles que dão.
Anos depois...
A sua saúde piora. Aparentemente, contraiu a doença de Parkinson: o livro treme-lhe nas mãos.
Theobald cresceu...um pouco como o verdadeiro peso dos livros, que as balanças são incapazes de medir... Todos os dias Bluma visitava a livraria do tio de Theobald, sentando-se a ler , folheando livros... tratando-os como se fossem recém-nascidos, tanto na forma cuidadosa de os manusear como no amor que lhes devotava...
Entre os dois existia um silêncio especial( passavam tempo juntos sem dizer uma palavra), o silêncio que prova a amizade ou o amor, o silêncio natural, ... A perfeição de uma relação pode ser demonstrada pelo modo como lidamos com o silêncio.
Theobald passou assim a ler assiduamente, ainda que apenas lesse os livros já manuseados por Bluma... O propósito de Theobald não era tanto uma proximidade poética com Bluma, mas uma tentativa bem arquitectada de sedução...
Dedicada às artes e à literatura, Bluma falava como quem verseja...
Theobald Thomas tinha um enorme fascínio por reflexos de todo e qualquer tipo... Era a efemeridade da representação que o emocionava... O reflexo, intangível, era uma imitação da verdade...
A relação de T com B era agora de grande proximidade. ... Noites de versos em uníssono, tardes de leituras conjuntas, corpos que não se entranhavam fisicamente, mas que substituíam essa possibilidade por palavras, em vez de beijos, um entardecer partilhado em silêncio, em vez de carícias, um poema sussurrado em conjunto...
Theobald era tímido e amava Bluma demasiado para estar tranquilo perto dela, haveria sempre de tremer ao aproximar-se...
Somos para lá das relações que vamos tendo, porque sobrevivemos a elas mantemos uma ponte aberta entre nós...
Telefonar sem qualquer motivo é sinal de amor. Quando há motivo, até as Finanças nos ligam.
B e T passavam também muito tempo de mãos dadas. As mãos dadas são a possibilidade anatómica de encaixar a amizade. Entrelaçar os dedos é a manifestação física de um estado anímico, que torna visível o amor.... os amantes que se conhecem nas pontas dos dedos antes de o fazerem na cama, os amigos que se confortam ou que simplesmente passeiam, todos eles, de mão dadas.
Dizem que o amor é irracional, mas acontece muitas vezes que o melhor amor, o mais sustentado, é também arquitectado pela razão ou dela nasce, tendo assim um sentido lógico perfeitamente delineado...Há de todos os tipos, claro, mas a chegar até ele através do pensamento é mais uma forma de o conquistar...
T haveria de ser a peça que faltava a B, o verso que faltava dizer em uníssono...A vida de ambos pacificara-se e convergia. Encostavam olhares, encostavam as mãos ao arrumar os livros, citavam poetas, por vezes em uníssono, . Era uma boa explicação do amor, essa coincidência dos versos que liam.
Descreviam-se um ao outro pela forma como as palavras saíam das suas bocas, simultâneas e idênticas. Esculpiam-se mutuamente, tendo por ferramenta a poesia.
- Sempre te amei, Theo, muitíssimo, mas eras alguém muito próximo, e a proximidade destrói o erotismo, é a diferença entre pantufas e saltos altos. Tu sempre estiveste ao alcance do meu desejo, isso é aborrecido, não é desafiante.
Deus é a concretização dos"ses".
Deus é a concretização dos"ses".
Parecia-lhe que amava mais B quando ela não estava, como se a sua presença diluísse o amor e o tornasse ligeiramente aguado, enquanto a ausência dela o alimentava, impregnando T Thomas de uma melancolia ao mesmo tempo doce e lúgubre.
B sentia que lhe tinham arrancado pedaços de corpo, que lhe faltavam peças, que já não tinha todos os ossos nem todos os músculos nem todas as ideias, emoções ou sentimentos. ... Com a testa encostada ao vidro, a sua esperança foi-se subtilizando , dando lugar a um desespero silencioso que se confundia com apatia. ...
Essa fragilidade do amor, essa incapacidade de vencer uma parede não correspondia à definição elevada que se lê na poesia.
"Visto-me", escreveu ela nas cartas que haveria de deitar para o lixo, "como se fosse um defunto a entrar num caixão".
A minha especialidade é ser medíocre. ... A sua silhueta permanece na parede da minha alma, e se me perguntarem o que é a vida depois da morte, ou a separação física, que vai dar no mesmo, respondo que é isso: a silhueta que deixamos nas paredes da alma de quem nos ama.
T não reparou que aquele banco onde ambos se haviam sentado a falar de livros e finais felizes fora precisamente o mesmo em que escavara com o canivete de cabo de madrepérola, anos antes, o seu amor por B.
O coração é um esconderijo de tempo- disse o tio- , como aquelas arrecadações, armazéns, garagens, onde depositamos a tralha dos dias, o que passou e já não se pode usar, a bicicleta enferrujada, a infância partida,
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