José Saramago

sexta-feira, 3 de março de 2023

Mulheres...

Ernestina

«Mãe de um só filho, a sua vida, que foi de uma tristeza, amargura e terrível solidão, dava um livro. Escrevi-lho eu. E a sua morte quebra o último elo carnal que me ligava à terra onde nasci. Felizmente são ainda muitos os laços que a ela me prendem.»

Ernestina é um romance autobiográfico ? Talvez seja um livro de  memórias ficcionadas de uma família. Todas  as memórias são  ficcionadas...
É , certamente, um retrato neorrealista de Trás-os-Montes, nos anos 1930 aos anos 1950. 

Que mais me ficou? O banho na varanda, numa tina de água fria. O cheiro dos lençóis de linho e o da palha fresca das enxergas. Os cachos de uvas do ano anterior, pendurados para se tornarem passas. Uma gaveta com brinquedos esquecidos. O gosto da água bebida por uma pucarinha de barro. Correr de nossa casa para a casa da avó e ao abrir da porta aspirar fundo, por gosto, o odor conjunto dos estábulos, das pipas vazias, das talhas do azeite e das arcas da salmoura, dos toros de pinho, da resina das estevas, da fuligem secular entranhada em paredes seculares.

Sobre muitas recordações da minha infância  continua a pesar essa mistura de alegria descuidada, quase sempre seguida de uma humilhação, de um medo ou de um perigo.

Com a avó Maria aprendi que em questões de sobrenatural não se tortura a gente
  a perguntar , porque é inútil e ninguém nos dá resposta. Tem-se fé, tem-se respeito, e basta.


Miss Amelia

É uma face como as dos sonhos , esbatida e medonha, assexuada e lívida, com dois olhos cinzentos enviezados, de tal maneira virados um para o outro que parecem trocar longos e secreto olhares de desgosto. A cara demora-se à janela uma hora, mais ou menos, depois corre a persiana e é como se não houvesse mais ninguém na rua principal.

Miss Amelia prosperava em tudo o que se pode fazer manualmente... 

 É altura de se falar de amor. Miss Amélia amava o primo Lymon(...) De que natureza era , então, esse amor?

Muitas vezes o amado é apenas um estímulo para todo o amor acumulado , durante muito tempo e até aquele momento, pelo amante.

Miss Amelia não gostava de ser amada, ela preferia ser a amante. Havia alturas em que Miss Amélia parecia cair em transe. A causa dessas crises era geralmente desconhecida. (...) Agora, enquanto olhava o corcunda e Marvin, a face dela tinha a mesma expressão, atenta ao sofrimento interior e exprimindo-o... 


Nas semanas seguintes, Miss Amelia foi observada de perto pelos seus conterrâneos. Anda distraída, absorta, como se estivesse numa das suas crises de cólicas. 

  Lymon seguia Marvin para todo o lado. Porquê? 
Quase todos os dias, Marvin aparecia com Lymon à hora de jantar, e comia à mesa de Miss Amelia. 

 Uma notícia muito importante: "Marvin vem para ficar a viver connosco, por pouco tempo", disse Lymon.

É melhor receber o pior inimigo do que enfrentar a solidão.(...) O que se passava entre aqueles três, durante a noite, ninguém sabia.

O combate teve lugar no dia 2 de Fevereiro... às sete da tarde. Graças ao corcunda , o combate foi ganho por Marvin e, no final, Miss Amelia ficou estendida no chão., imóvel de braços abertos.

Marvin e o corcunda devem ter partido, mais ou menos uma hora antes do amanhecer...Destruiram o que puderam...Depois desapareceram.(...) Foi deste modo que Miss Amelia ficou sozinha.

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