Como se as gotas de chuva,suspensas no ar,a prenderem a respiração antes do mergulho, estivessem prestes a vir por ali abaixo, tremeluzindo como joias.
A morte dela foi tão silenciosa e sóbria como ela sempre fora.
Em que parte do corpoestará aquele pássaro esvoaçante quando as pessoas ainda estão vivas.
Quanto tempo fucarão as almas juntas dos seus corpos? Será que esvoaçam mesmo , como se fossem pássaros? Será isso que faz estremecer a chama da vela?
Queria ser livre para poder voar até onde essas pessoas estivessem e perguntar-lhes: porque me mataram?
As almas cujos corpos já tinham sido reduzidos a nada voaram para longe...
Ter medo, por vezes, é só querer viver...
A barbárie nunca está no indivíduo isolado, mas nas multidões...
Sem dar por isso, tinha-me ajoelhado sobre um monte de neve que cobria a campa de Dong-ho. ..Fiquei a olhar fixamente e em silêncio para o contorno titubeante da chama, esvoaçante como a asa trnslúcida de um pássaro...
Comecei a minha vida como provavelmente a irei terminar: no meio dos livros.
Foi nos livros que encontrei o universo: assimilado, classificado, rotulado, pensado e ainda temível; confundi a desordem de minhas experiências livrescas com o cunso aventuroso dos acontecimentos reais. Daí veio esse idealismo de que gastei trinta anos para me desfazer.
Os nossos visitantes despediam-se, eu ficava só, evadia-me deste cemitério banal, ia juntar-me à vida, à loucura nos livros. Bastava-me abrir um deles para redescobrir esse pensamento inumano, inquieto, cujas pompas e trevas ultrapassavam o meu entendimento, que saltava de uma ideia à outra, tão depressa que eu largava a presa cem vezes por página, deixando-a escapulir, aturdido, perdido. Eu assistia a acontecimentos que o meu avô julgaria certamente inverosímeis e que, não obstante, possuíam a deslumbrante verdade das coisas escritas.
Regressei à minha juventude, através de inúmeras referências literárias que terão chegado a Portugal com muitos, muitos, anos de atraso. Regressei, imaginariamente, a uma infância que não foi a minha, mas poderia ter sido. Regressei, também, a uma infância alheia que eu reconstruí, hipoteticamente, a partir de um passado - presente...
«Nenhum livro restitui, melhor do que este, a verdade nua e brutal do colonialismo português em Moçambique. Até porque, como a autora refere, ele aparece envolvido pelo mito da sua mansuetude - sobretudo quando comparado, como era sempre, com o apartheid sul-africano. Mito tão interiorizado pelos próprios colonos que através dele, como por uma lente, percecionavam a realidade de que constituíam um elemento decisivo - como considerar-se a si mesmos violentos e prepotentes no tratamento que davam aos negros?
A verdade escondia-se sob a boa consciência necessária à regularidade quotidiana da vida «paradisíaca» dos brancos. Para a desenterrar era preciso ir procurá-la nas sensações infinitamente vibráteis e virgens de uma menina, filha de colonos, que vivia à flor da pele o sentido mais profundo de tudo o que acontecia.» José Gil
«O Caderno de Memórias Coloniais relata a história de uma menina a caminho da adolescência, que viveu essa fase da vida no período tumultuoso do final do Império colonial português. O cenário é a cidade de Lourenço Marques, hoje Maputo, espaço no qual se movem as duas personagens em luta: pai e filha.» «Palavras prévias»
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