Não é neccessário vivermos ao lado de alguém para nos sentirmos ligados a esse alguém mais do que a qualquer outra pessoa...

terça-feira, 14 de janeiro de 2025

Amigos...


"A Imprensa da Universidade de Coimbra decidiu publicar um livro de minha autoria intitulado “O “Tien” feito carne. Os Jesuítas e a formação de um cristianismo chinês”. O livro foi sujeito a avaliação por parte de um painel internacional de especialistas, os quais se dividiram de forma radical na avaliação. Quem gostou, gostou mesmo muito. Quem não gostou, não gostou mesmo nada. Considero isso um sinal positivo. As meias tintas não interessam a ninguém. Felizmente os que gostaram estavam em maioria e foi por isso que se deu a publicação. Uma das inovações do livro diz respeito ao último imperador da dinastia Ming, Chongzhen, e à sua relação com o cristianismo. Chongzhen é um herói trágico. Em criança e jovem cresceu fora do palácio imperial, anónimo, junto do povo, circunstância absolutamente excepcional para um imperador chinês. Fora afastado pela facção dos eunucos, que se contavam por milhares no interior do palácio, e que praticamente tinham transformado o seu irmão, o imperador Tianqi, num recluso. Por morte de Tianqi, Chongzhen foi chamado a ocupar o trono. O período final dos Ming distingue-se por uma profunda crise intelectual e espiritual, com um interesse muito grande pela introspecção. Chongzhen era um produto desse ambiente, mas era também um homem muito marcado pelas ideias de culpa e expiação. Isso tornava-o permeável à teologia cristã. Quando subiu ao trono, o imperador proibiu o budismo, que era muito popular entre os eunucos. Chamou os jesuítas para o interior do palácio, deu-lhes poder e influência e tomou como secretário um poderoso mandarim cristão, protector dos jesuítas, chamado Xu Guangqi. Com a proximidade dos jesuítas deu-se inevitavelmente a proximidade aos portugueses. Todos os jesuítas do Oriente estavam, até ao final do século XVII, sujeitos ao rei português. A maior parte deles eram portugueses, mas havia flamengos, franceses, alemães, espanhóis, italianos, polacos e até lituanos. Todos, porém, deveriam passar pelo colégio de Coimbra, aprender o português (a língua franca dos jesuítas do Oriente) e embarcar em Lisboa. O temperamento melancólico de Chongzhen, e a sua marcada noção de culpa, levavam-no a que passasse horas no Templo do Céu a sacrificar ao “Tien” (O Céu). Com o tempo, porém, foi sendo doutrinado subtilmente pelos jesuítas e instruído em algumas ideias básicas do cristianismo. Certo dia pediu que lhe mandassem uma imagem de Cristo e outra da Virgem, e começou a adorá-los à maneira chinesa, batendo com a cabeça no chão, numa sala interior do palácio. O “Li” confuciano, uma energia cósmica indiferenciada e despersonalizada, começava a ganhar a forma de uma força volitiva e personalizada, que castigava o mal e premiava o bem. No espírito do imperador, o “Li” ganhava o contorno do rosto do Deus judaico-cristão. Por outro lado, os chineses precisavam de uma coisa que os portugueses tinham. Artilharia pesada, um poder de fogo como a China nunca tinha visto. As fronteiras a norte estavam ameaçadas pelos manchus, um povo de raça mongólica, semi-nómada, oriundo da Manchúria, perto da Península da Coreia. Um grupo de artilheiros portugueses seguiu para norte, desde Macau, com os preciosos canhões. Era uma luta desigual. Os manchus eram ferozes, mas andavam a cavalo com arcos e flechas. A marcha dos manchus para sul, para a China, foi travada logo ali. Pensava-se que os canhões portugueses tinham salvo os Ming. Mas era demasiado tarde. Para além da desgovernação provocada pelos eunucos e pelas lutas entre mandarins, que se tinham verificado no tempo de Tianqi e desgastado o império, o reino de Chongzhen ficou conhecido por ter sofrido uma das maiores secas de que há registos, que ficaria amargamente conhecida por “seca de Chongzhen”. Durante dezassete anos quase não choveu. Assim, em 1644 um gigantesco exército de renegados e desesperados entrou em Pequim entregando-se a todo o género de atrocidades. O imperador Chongzhen, ao ver tudo perdido, bebeu quantidades generosas de vinho, mandou chamar a sua filha e cravou-lhe um punhal no coração. Depois, desatou os cabelos e enforcou-se. Terminava assim uma das mais célebres dinastias da China, os Ming. Os manchus aproveitaram a situação de anarquia para invadir o país. Primeiro a norte, e nas duas décadas que se seguiram, o centro e o sul. Contudo, aconteceu aos manchus o mesmo que aconteceu aos bárbaros que invadiram o império romano. Ao contactar com uma cultura mais sofisticada, viram-se conquistados por ela. Os líderes manchus tornavam-se assim respeitáveis monarcas confucianos, zelosos cultores das letras e filosofia chinesa. Nascia a dinastian Qing. Com os Qing regressaram os jesuítas, que tinham construído uma notável reputação no final da dinastia anterior. Em 1692, o imperador Kangxi, segundo da dinastia Qing, querendo agradar ao seu grande amigo, o padre Tomás Pereira, lançou um “édito de tolerância”, reconhecendo o cristianismo como uma filosofia (a noção de “religião” não existe na China) em igualdade com confucianismo, budismo e taoísmo. Foi o “momentum” do cristianismo na China. A íntima e profunda relação de Tomás Pereira e Kangxi é um dos momentos tocantes dos documentos do arquivo jesuítico. Kangxi terá dito, certa vez, que Pereira era o único que “lhe conseguia penetrar o espírito”. O monarca era conhecido por ser uma alma insondável. Tomás Pereira era, para além de bom matemático, tocador de cravo. Kangxi chamava-o frequentemente para o ouvir tocar, após o que conversavam longamente sobre assuntos de política e religião da Europa. Nessas conversas, Tomás Pereira introduzia frequentememte os mistérios do cristianismo, a Trindade, a Encarnação. Passavam horas a debater. Tomás Pereira era estrangeiro. Mas Kangxi, pela sua ascendência manchu, era-o também, de alguma forma. Duas gerações antes e um homem como ele não seria considerado digno de ser sequer chinês, muito menos imperador. Todo aquele mundo que lhe era desconhecido o parecia fascinar. Porém, nunca esteve sequer perto de se converter, ao contrário do que se passou com Chongzhen. Kangxi era um perfeito confuciano e a ideia de mistério e transcendência era difícil para uma larga camada de letrados confucianos (essa é outra das teses do livro). Tomás Pereira escrevia maravilhosamente e tinha grande densidade psicológica. Os seus registos têm uma beleza quase cinematográfica. Anotou os mais pequenos gestos, manifestações corporais e faciais de Kangxi. Os seus silêncios, as meias palavras. Dir-se-ia que, a partir de determinado momento, a comunicação entre estes dois homens terá começado a dispensar as palavras. A confiança de Kangxi em Tomás Pereira levou-o a escolher o jesuíta português para chefiar a comitiva chinesa que foi à Sibéria, a Nerchinsk, para negociar a delimitação das fronteiras sino-russas. O enviado russo, Golovin, conhecedor da lendária desconfiança dos chineses relativamente aos estrangeiros, anotou no seu caderno a estupefacção que lhe provocou ver chegar a delegação chefiada por um europeu. Anotou também a viva impressão que a figura de Tomás Pereia lhe provocou. É difícil descrever o prazer que me deu investigar e escrever este livro. Este é o meu penúltimo acto como historiador, actividade que já não exerço há ano e meio. Brevemente sairá a minha “História da Espiritualidade e da Mística em Portugal. Séculos XVIII e XIX”, um volume de mais de mil páginas onde disserto longamente sobre religião, política, catolicismo, heresia, protestantismo, maçonaria e espiritismo. Esta será a minha “magnum opus”. Virá à luz do dia durante o próximo ano. E será sob a luz desse dia, a luz desse exacto dia, que o historiador que em tempos fui poderá finalmente morrer com o coração em paz."

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