Eternidades...
"O homem guiado pela eternidade..."
Mil quatrocentas e quarenta horas é muito tempo; oitenta e seis mil e quatrocentos minutos é demasiado tempo; cinco milhões cento e oitenta e quatro mil segundos são a eternidade ... A eternidade é a soma do tempo perdido: não é possível destruir o tempo sem magoar a eternidade.
Uma causa Infinita necessariamente produzirá um efeito infinito. Como o efeito, porém, se opõe à causa, será infinito de outra maneira.
Vens a mim
pequeno como um deus,
frágil como a terra,
morto como o amor,
falso como a luz,
e eu recebo-te
para a invenção da minha grandeza,
para rodeio da minha esperança
e pálpebras de astros nus.
Nasceste agora mesmo. Vem comigo.
Leve eu ao menos, para o imenso possível do abismo de tudo, a glória da minha desilusão como se fosse a de um grande sonho, o esplendor de não crer como um pendão de derrota — pendão contudo nas mãos débeis, mas pendão arrastado entre a lama e o sangue dos fracos... mas erguido ao alto, ao sumirmo-nos nas areias movediças, ninguém sabe se como protesto, se como desafio, se como gesto de desespero... Ninguém sabe, porque ninguém sabe nada, e as areias engolfam os que têm pendões como os que não têm...E as areias cobrem tudo, a minha vida, a minha prosa, a minha eternidade. Levo comigo a consciência da derrota como um pendão de vitória.
Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-ás de mim depois
Sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova,
Porque nunca enlaçamos as mãos, nem nos beijamos
Nem fomos mais do que crianças.
E se antes do que eu levares o óbolo ao barqueiro sombrio,
Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti.
Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim — à beira-rio,
Pagã triste e com flores no regaço.
Em suma, que é esta nossa cidade? Que se condensa sob o nome de Alexandria? Num relance, os olhos proporcionam -me a imagem de milhares de ruas poeirentas. Atualmente, as moscas e os mendigos são os donos da cidade – juntamente com aqueles que se deliciam com uma existência intermédia. Cinco raças, cinco línguas, uma dúzia de credos; cinco esquadras cruzando os seus perfis refletidos sobre as águas oleosas do porto. Mas existem mais de cinco sexos e apenas as subtilezas linguísticas do grego demótico nos proporcionam os cambiantes diferenciais. O capital sexual que se esbanja em oferta abundante surpreende pela sua variedade e profusão. E, contudo, não é um lugar de prazer. Os amantes simbólicos do mundo grego cedem lugar a algo subtilmente andrógino e diferente, introvertido.O Oriente não pode desfrutar da doce anarquia carnal – porque o Oriente está para além do corpo. Recordo -me de ter ouvido a Nessim certo dia – creio que o tinha lido em algum lugar – que Alexandria era o grande lagar do amor; os que escapavam eram os doentes, os solitários, os profetas, enfim, todos aqueles que tinham o sexo mutilado.
A morte e a vida morrem
e sob a sua eternidade fica
só a memória do esquecimento de tudo;
também o silêncio de aquele que fala se calará.
O que existe falta
sob a eternidade;
saber é esquecer, e
esta é a sabedoria e o esquecimento.
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Quando eu sonhava, era assim Que nos meus sonhos a via; E era assim que me fugia, Apenas eu despertava, Essa imagem fugidia Que nunca pude alcançar. Agora, que estou desperto, Agora a vejo fixar... Para quê? - Quando era vaga, Uma ideia, um pensamento, Um raio de estrela incerto No imenso firmamento, Uma quimera, um vão sonho, Eu sonhava - mas vivia: Prazer não sabia o que era, Mas dor, não a conhecia...
Sempre caro mi fu quest'ermo colle, E questa siepe, che da tanta parte De l'ultimo orizzonte il guardo esclude.Ma sedendo e mirando, interminati Spazi di là da quella, e sovrumani Silenzi, e profondissima quïete Io nel pensier mi fingo, ove per poco Il cor non si spaura. E come il vento Odo stormir tra queste piante, io quello Infinito silenzio a questa voce Vo comparando: e mi sovvien l'eterno, E le morte stagioni, e la presente E viva, e 'l suon di lei. Così tra questa Immensità s'annega il pensier mio: E 'l naufragar m'è dolce in questo mare.
I try to face the day now in a new way The bottom of a bottle 'Cause every man's a puzzle...
Para se integrar na sociedade, o homem preciso de escolher e representar papéis sociais. Pirandello diz que “a escolha é um imperativo necessário”, que “organiza a nossa harmonia individual, o sentimento de nosso equilíbrio moral”. Mattia Pascal, personagem central deste livro, foi alguém que nunca escolheu nenhum papel, sentindo-se “um forasteiro da vida.”
Mattia não se preparou para o trabalho e seu único emprego foi como funcionário de uma biblioteca há muito tempo abandonada que “certo monsenhor Bocamazza, ao morrer em 1803, decidiu deixar para nosso município.” Ao escrever o livro, Mattia dá -se conta da importância de despertar para o amor ao conhecimento, e supõe que Bocamazza “cultivasse a esperança de que o seu legado pudesse, com o tempo e o conforto que representava, estimular nos seus espíritos o amor pelo estudo.” (...) “aquela liberdade quase extravagante que nos deixava desfrutar, servia para ocultar o abismo que, após a morte da minha mãe, engoliu somente a mim” Decide escrever sua história para “servir de ensinamento a algum leitor curioso que porventura, tornando real a esperança de monsenhor Bocamazza, viesse a esta biblioteca, na qual deixo meu manuscrito, mas com a obrigatoriedade de que ninguém o possa abrir a não ser cinqüenta anos depois da minha terceira, última e definitiva morte.”
E eu não saberia, de verdade, dizer quem sou. Ao menos isto – ele argumentou – que fora da lei e fora daquelas singularidades, alegres ou tristes, com as quais nós somos o que somos, não é possível viver.
Da visibilidade da lepra à"invisibilidade" da loucura...
Será necessário um longo momento de latência, quase dois séculos, para que O novo espantalho, que sucede à lepra nos medos seculares, suscite como ela reações de divisão, de exclusão, de purificação que no entanto lhe são aparentadas de uma maneira bem evidente. Antes de a loucura ser dominada, por volta da metade do século XVII, antes que se ressuscitem, em seu favor, velhos ritos, ela tinha estado ligada, obstinadamente, a todas as experiências maiores da Renascença.
A circulação de loucos, o gesto que os escorraça, a sua partida e o seu desembarque não encontram todo o seu sentido apenas ao nível da utilidade social ou da segurança dos cidadãos. Outras significações mais próximas do rito sem dúvida aí estão presentes; e ainda é possível decifrar alguns de seus vestígios. Assim é que o acesso às igrejas é proibido aos loucos, enquanto o direito eclesiástico não lhes proíbe o uso dos sacramentos, a Igreja não. Em Nuremberg, no decorrer dos anos 1377-1378 e 1381-1397, contam-se 37 loucos colocados nas prisões, dos quais 17 são estrangeiros provenientes de Regensburg, Weissenburg, Bamberg, Bayreuth, Viena, Hungria, No período seguinte, parece que, por uma razão desconhecida, Nuremberg abandonou o seu papel de ponto de encontro e que, pelo contrário. Acontecia alguns loucos serem chicoteados publicamente, e que no decorrer de uma espécie de jogo eles fossem a seguir perseguidos numa corrida simulada e escorraçados da cidade à bastonadas.
Tal é a pior loucura do homem: não reconhece a miséria em que está encerrado, a fraqueza que o impede de aproximar-se do verdadeiro e do bom; não saber que parte da loucura é a sua. Recusar esse desatino que é o próprio signo de sua condição é privar-se para sempre do uso razoável de sua razão. Pois se existe razão, é justamente na aceitação desse círculo contínuo da sabedoria e da loucura, é na clara consciência de sua reciprocidade e de sua impossível partilha. A verdadeira razão não está isenta de todo compromisso com a loucura; pelo contrário, ela tem mesmo de tomar os caminhos que esta lhe traça...
A loucura é um momento difícil, porém essencial, na obra da razão; através dela, e mesmo em suas aparentes vitórias, a razão se manifesta e triunfa. A loucura é, para a razão, sua força viva e secreta...
Finalmente, o último tipo de loucura: a da paixão desesperada. O amor decepcionado no seu excesso, sobretudo o amor enganado pela fatalidade da morte, não tem outra saída a não ser a demência. Enquanto tinha um objeto, o amor louco era mais amor que loucura; abandonado a si mesmo, persegue a si próprio no vazio do delírio. Punição de uma paixão demasiadamente entregue à sua violência? Sem dúvida; mas esta punição é também um apaziguamento; ela espalha, sobre a irreparável ausência, a piedade das presenças imaginárias. Ela reencontra, no paradoxo da alegria inocente, ou no heroísmo das perseguições desatinadas, a forma que se esfuma. Se leva à morte, trata-se de uma morte onde aqueles que se amam não serão nunca mais separados. É a última canção de Ofélia; é o delírio de Aristo em A Loucura do Sábio. Mas é, sobretudo, a amarga e suave demência do Rei Lear.
( "A alma humana é vítima tão inevitável da dor que sofre a dor da surpresa dolorosa, mesmo com o que devia esperar. Tal homem, que toda a vida falou da inconstância e da volubilidade feminina como de coisas naturais e típicas, terá toda a angústia da surpresa triste quando se encontre traído em amor — tal qual, não outro, como se tivesse sempre tido por dogma ou esperança a fidelidade e a firmeza da mulher. Tal outro, que tem tudo por oco e vazio, sentirá como um raio súbito a descoberta de que têm por nada o que escreve, ou que é estéril o seu esforço por ensinar ou que é falsa a comunicabilidade da sua emoção.
Não há que crer que os homens, a quem estes desastres acontecem, e outros desastres como estes, houvessem sido pouco sinceros nas coisas que disseram, ou que escreveram, e em cuja substância esses desastres eram previsíveis ou certos. Nada tem a sinceridade da afirmação inteligente com a naturalidade da emoção espontânea. E isto parece poder ser assim, a alma parece poder assim ter surpresas, só para que a dor lhe não falte, o opróbio não deixe de lhe caber, a mágoa não lhe escasseie como quinhão igualitário na vida. Todos somos iguais na capacidade para o erro e para o sofrimento. Só não passa quem não sente; e os mais altos, os mais nobres, os mais previdentes, são os que vêm a passar e a sofrer do que previam e do que desdenhavam. É a isto que se chama a Vida.")
No início, tudo estava vivo. Os mais pequenos objetos eram dotados de corações pulsantes, e até as nuvens tinham nomes.
Os teus primeiros pensamentos, vestígios de como viveste dentro de ti enquanto criança.Só te recordas de uma parte, fragmentos isolados, breves fulgores de reconhecimento que te surgem inesperadamente em momentos aleatórios – provocados por um cheiro, ou por um toque, ou pela forma como a luz incide sobre alguma coisa no aqui e agora da idade adulta. Pelo menos achas que te recordas, acreditas que te recordas, mas talvez não estejas de todo a recordar-te, ou estejas a recordar-te apenas de uma memória posterior do que julgas ter pensado naquele tempo distante que para ti agora está praticamente perdido.(...)A única prova que tens de que as tuas memórias não são completamente ilusórias é o facto de ocasionalmente ainda caíres no velho modo de pensar. Perduraram vestígios até aos teus sessenta e muitos, o animismo da tua primeira infância não foi completamente purgado da tua mente, e cada verão, quando te deitas de costas na relva, olhas para as nuvens a passar e vê-las tornar-se em rostos, em aves e animais, em estados e países e animais imaginários. As grelhas dos carros ainda te fazem lembrar dentes, e o saca-rolhas ainda é uma bailarina a dançar. Apesar das provas exteriores,ainda és quem eras, mesmo que já não sejas a mesma pessoa.
Até aos teus cinco ou seis anos, talvez até sete, pensaste que as palavras human being se pronunciavam human bean. Intrigava-te que a humanidade fosse representada por um legume tão pequeno e comum, mas de algum modo, reorganizando as tuas ideias para acomodar este mal-entendido, decidiste que a própria pequenez do feijão era o que o tornava importante, que todos começamos no útero da nossa mãe tão pequenos quanto um feijão, e portanto o feijão era o símbolo mais verdadeiro e poderoso da própria vida.
Tinhas doze anos .Foi a última vez que te foste abaixo e choraste frente a um adulto.
A psicologia só foi possível quando se aprendeu a dominar a loucura.
Dupré definia assim a histeria: "Estado no qual o poder da imaginação e da sugestibilidade, unido a esta sinergia particular do corpo e do espírito que denominei psicoplasticidade, resulta na simulação mais ou menos voluntária de síndromes patológicas, na organização mitoplástica de perturbações funcionais, impossíveis de distinguir das dos simuladores" Esta definição clássica designa então como sintomas superiores da histeria, a sugestibilidade, e o aparecimento de perturbações como a paralisia, a anestesia, a anorexia, que não tem, na ocorrência, fundamento orgânico, mas uma origem exclusivamente psicológica.
(" É, não sei se um privilégio se uma doença, a constituição mental que a produz. O certo, porém, é que o autor destas linhas — não sei bem se o autor destes livros — nunca teve uma só personalidade, nem pensou nunca, nem sentiu, senão dramaticamente, isto é, numa pessoa, ou personalidade, suposta, que mais propriamente do que ele próprio pudesse ter esses sentimentos.(...) A cada personalidade mais demorada, que o autor destes livros conseguiu viver dentro de si, ele deu uma índole expressiva, e fez dessa personalidade um autor, com um livro, ou livros, com as ideias, as emoções, e a arte dos quais, ele, o autor real (ou porventura aparente, porque não sabemos o que seja a realidade), nada tem, salvo o ter sido, no escrevê-las, o «medium» de figuras que ele próprio criou. (...)O autor humano destes livros não conhece em si próprio personalidade nenhuma. Quando acaso sente uma personalidade emergir dentro de si, cedo vê que é um ente diferente do que ele é, embora parecido; filho mental, talvez, e com qualidades herdadas, mas as diferenças de ser outrem. Que esta qualidade no escritor seja uma forma da histeria, ou da chamada dissociação da personalidade, o autor destes livros nem o contesta, nem o apoia. De nada lhe serviriam, escravo como é da multiplicidade de si próprio, que concordasse com esta, ou com aquela, teoria, sobre os resultados escritos dessa multiplicidade. Que este processo de fazer arte cause estranheza, não admira; o que admira é que haja coisa alguma que não cause estranheza:")
( "Vou explicar a maneira de composição das figuras que componho em mim. Deve entender-se esta explicação como o desdobramento analítico de um fenómeno mais ou menos inconsciente. Fora impossível compor essas personalidades por um impulso determinado da razão.
Sou, psiquiatricamente considerado, o que se chama um histero-neurasténico. A histero-neurastenia é, vulgarmente, a sobreposição de um estado geral neurasténico a um estado substancial histérico. Em muitos casos o estado neurasténico é adquirido ou sobrevindo. No meu caso, que é o da autêntica histero-neurastenia - a temperamental - os dois fenómenos coexistem de nascença, formam bloco e ao mesmo tempo o não formam, visto que são distintos, pois são distinguíveis. Como, naturalmente, sabe, a histeria (cuja existência como espécie nosológica é contestada por alguns, sem que isso importe para o caso presente) dá, tipicamente, uma oscilação extraordinária da sensibilidade, uma capacidade intensa de sensação e sentimento rápidos, profundos enquanto duram, porém incapazes de se prolongar, a tendência para o devaneio e para a irrealização...")
A psicastenia, a partir dos trabalhos de Janet, é caracterizada pelo esgotamento nervoso com estigmas, orgânicos (astenia muscular, perturbações gastro-intestinais, cefalias); uma astenia mental (fadiga, impotência diante do esforço, desespero em face do
obstáculo; inserção difícil no real e no presente: o que Janet chamava "a perda da função do real"; enfim perturbações da emotividade (tristeza, inquietude, ansiedade paroxística) .
("Acontece-me às vezes, e sempre que acontece e quase de repente, surgir-me no meio das sensações um cansaço tão terrível da vida que não há sequer hipótese de acto com que dominá-lo. Para o remediar o suicídio parece incerto, a morte, mesmo suposta a inconsciência, ainda pouco. É um cansaço que ambiciona, não o deixar de existir — o que pode ser ou pode não ser possível —, mas uma coisa muito mais horrorosa e profunda, o deixar de sequer ter existido, o que não há maneira de poder ser.")
As obsessões: "aparecimento num estado mental habitual de indecisão,dúvida e inquietação, e sob a forma de acessos paroxísticos intermitentes, de obsessões-impulsões diversas" Distingue-se da fobia, caracterizada por crises de angústia paroxística diante de objetos determinados (agorafobia diante dos espaços vazios), a neurose obsessiva, na qual estão sobretudo marcadas as defesas que o doente cria contra sua angústia (precauções rituais, gestos propiciatórios).
Mania e depressão: Magnan denominou "loucura intermitente" esta forma patológica, na qual se vêem alternar, a intervalos mais ou menos longos, duas síndromes entretanto opostas: a síndrome maníaca, e a depressiva. A primeira compreende a agitação motora, um humor eufórico ou colérico, uma exaltação psíquica caracterizada pela verborragia, a rapidez das associações e a fuga das ideias. A depressão, ao contrário, apresenta-se como uma inércia motora tendo com o fundo humor triste, acompanhada de hipoatividade psíquica. Às vezes isoladas, a mania e a depressão estão ligadas mais frequentemente por um sistema de alternância regular ou irregular, do qual Gilbert-Ballet traçou os diferentes perfis.
A paranóia: num fundo de exaltação passional (orgulho, ciúme), e de hiperatividade psicológica, vê-se desenvolver-se um delírio sistematizado, coerente, sem alucinação, cristalizando numa unidade pseudo-lógica temas de grandeza, perseguição e reivindicação. A psicose alucinatória crónica é, também, uma psicose delirante; mas o delírio é mal sistematizado, frequentemente incoerente; os temas de grandeza acabam por absorver todos os outros numa exaltação pueril da personagem; enfim e sobretudo, ele é sustentado por alucinações.
A hebefrenia, psicose da adolescência, é classicamente definida por uma excitação intelectual e motora (tagarelice, neologismos, trocadilhos; maneirismo e impulsos), por alucinações e um delírio desordenado, cujo polimorfismo empobrece paulatinamente.
A catatonia é reconhecida devido ao negativismo do sujeito (mutismo, recusa de alimento, fenómenos chamados por Kraepelin "barreiras de vontade"), a sua sugestibilidade (passividade muscular, conservação das atitudes impostas, respostas em eco), enfim ás reações estereotipadas e aos paroxismos impulsivos (descargas motoras brutais que parecem extravasar todas as barreiras instauradas pela doença).
As psicoses, perturbações da personalidade global, comportam: um distúrbio do pensamento (pensamento maníaco que foge, flui, desliza sobre associações de sons ou trocadilhos; pensamento esquizofrénico, que salta, ultrapassa os intermediários e procede por saltos ou por contrastes) ; uma alteração geral da vida afetiva e do humor (ruptura do contato afetivo na esquizofrenia; colorações emocionais maciças na mania ou na depressão); uma perturbação do controle da consciência, da perspectivação dos diversos pontos de vista, formas alteradas do senso crítico (crença delirante na paranóia, na qual o sistema de interpretação antecipa as provas da sua exatidão, e permanece impermeável a qualquer discussão; indiferença do paranóide à singularidade da sua experiência alucinatória que tem para ele valor de evidência).
Nas neuroses , pelo contrário, semente um setor da personalidade é atingido: ritualismo dos obseCados com respeito a um objeto, angústias provocadas por tal situação na neurose de fobia. Mas o fluxo do pensamento permanece intacto na sua estrutura, mesmo se é mais lento nos psicasténicos; o contacto afetivo subsiste, chegando a ser exagerado até à suscetibilidade nos histéricos; enfim, o neurótico, mesmo quando apresenta obliterações de consciência como o histérico, ou impulsos incoercíveis como o obsecado, conserva a lucidez crítica com relação a seus fenómenos mórbidos.
Classificam-se, geralmente, entre as psicoses, a paranóia e todo o grupo esquizofrénico, com as suas síndromes paranóicas, hebefrénicas e catatónicas; entre as neuroses, a psicastenia, a histeria, a obsessão, a neurose de angústia e a de fobia.
A personalidade torna-se, assim, o elemento no qual se desenvolve a doença, e o critério que permite julgá-la; é ao mesmo tempo a realidade e a medida da doença.
Gostaríamos de mostrar, pelo contrário, que a patologia mental exige métodos de análise diferentes dos da patologia orgânica, e que é
somente por um artifício de linguagem que se pode emprestar o mesmo sentido às "doenças do corpo" e às "doenças do espírito". Uma patologia unitária que utilizasse os mesmos métodos e os conceitos nos domínios psicológico e fisiológico é, atualmente, da ordem do mito, mesmo que a unidade do corpo e do espírito seja da ordem da realidade.
Em psiquiatria, ao contrário, a noção de personalidade torna singularmente difícil a distinção entre o normal e o patológico.
O medo é reação ao perigo exterior, a angústia é a dimensão afetiva da contradição interna.
É através da angústia que a evolução psicológica se transforma em história individual; de facto, é a angústia que , unindo o passado e o presente, os situa um em relação ao outro e lhes confere uma comunidade de sentido; a conduta patológica tinha-nos parecido ter, paradoxalmente, um conteúdo arcaico e uma inserção significativa no presente; é que o presente, prestes a suscitar a ambivalência e a angústia, provoca o jogo da proteção neurótica; mas esta angústia ameaçadora, e os mecanismos que a afastam foram há muito tempofixados na história do sujeito. A doença desenvolve-se, então, no estilo de um círculo vicioso: o doente protege -se por meio dos seus atuais mecanismos de defesa contra um passado cuja presença secreta faz surgir a angústia; mas, por outro lado, contra a eventualidade de uma angústia atual, o sujeito protege-se, apelando para proteções outrora instauradas no decorrer de situações análogas. O doente defende-se com o seu presente contra o seu passado, ou protege-se de seu presente com a ajuda de uma história finda?
(" Esta velha angústia,
Esta angústia que trago há séculos em mim,
Transbordou da vasilha,
Em lágrimas, em grandes imaginações,
Em sonhos em estilo de pesadelo sem terror,
Em grandes emoções súbitas sem sentido nenhum.
Transbordou.
Mal sei como conduzir-me na vida
Com este mal-estar a fazer-me pregas na alma!
Se ao menos endoidecesse deveras!
Mas não: é este estar entre,
Este quase,
Este poder ser que...,
Isto.
Um internado num manicómio é, ao menos, alguém,
Eu sou um internado num manicómio sem manicómio.
Estou doido a frio,
Estou lúcido e louco,
Estou alheio a tudo e igual a todos:
Estou dormindo desperto com sonhos que são loucura
Porque não são sonhos.
Estou assim...
Pobre velha casa da minha infância perdida!
Quem te diria que eu me desacolhesse tanto!
Que é do teu menino? Está maluco.
Que é de quem dormia sossegado sob o teu teto provinciano?
Está maluco.
Quem de quem fui? Está maluco. Hoje é quem eu sou.
Se ao menos eu tivesse uma religião qualquer!
Por exemplo, por aquele manipanso
Que havia em casa, lá nessa, trazido de África.
Era feiíssimo, era grotesco,
Mas havia nele a divindade de tudo em que se crê.
Se eu pudesse crer num manipanso qualquer —
Júpiter, Jeová, a Humanidade —
Qualquer serviria,
Pois o que é tudo senão o que pensamos de tudo?
Estala, coração de vidro pintado! ")
É preciso dizer, sem dúvida, que é neste circulo que reside a essência das condutas patológicas; se o doente está doente, é na medida em que a ligação do presente com o passado não se faz no estilo de uma integração progressiva. Certamente, todo o indivíduo sentiu angústia e erigiu condutas de defesa; mas o doente vive a sua angústia e os seus mecanismos de defesa numa circularidade que o faz defender-se contra a angústia com os mecanismos que lhe estão ligados historicamente, que, por isso, o exaltam ao máximo, e ameaçam incessantemente fazê-la ressurgir. Em oposição à história do indivíduo normal, esta monotonia circular é o traço da história patológica.
Nas formas últimas da esquizofrenia e nos estados de demência, o doente é absorvido pelo mundo da doença. Apreende, entretanto, o universo que deixou como uma realidade longínqua e velada. Nesta paisagem crepuscular, na qual as experiências mais reais — os acontecimentos, as palavras ouvidas, o ambiente — tomam um aspecto fantasmático, parece que o doente conserva ainda um sentimento oceânico da sua doença. Está submerso pelo universo mórbido e tem consciência disto; e, pelo que se pode supor segundo o relato dos doentes curados, a impressão permanece sempre presente na consciência do sujeito, tanto que a realidade só é apreendida disfarçada, caricaturada e metamorfoseada, no sentido restrito do termo, no modo do sonho. Séchehaye, que cuidou e curou uma jovem esquizofrénica, recolheu as impressões que a sua doente experimentara no decorrer do seu episódio patológico: "ter-se-ia dito, narra ela, que a minha percepção do mundo me fazia sentir de um modo mais agudo a estranheza das coisas. No silêncio e imensidade, cada objeto se delineava nitidamente, destacado no vazio, no ilimitado, separado dos outros objetos. Por ser sozinho, sem ligação com o que o cercava, ele punha -se a existir... Eu sentia -me rejeitada pelo mundo, fora da vida, espectadora de um filme caótico que se desenrolava incessantemente ante os meus olhos, e do qual não conseguia participar". E um pouco mais adiante, acrescenta: "As pessoas
aparecem -me como num sonho; não consigo mais distinguir o seu caráter particular". A consciência de doença só é então um sofrimento moral imenso, diante de um mundo reconhecido como tal por referência implícita a uma realidade tornada inacessível.
Esta desrazão, apesar de todas as misérias da psicologia, que está presente e visível nas obras de Hölderlin, Nerval, Roussel e Artaud, promete ao homem que um dia, talvez, ele poderá encontrar-se livre de toda psicologia para o grande afrontamento trágico com a loucura.
A relação que funda filosoficamente toda a psicologia possível só pode ser definida a partir de um momento preciso na história da nossa civilização: o momento em que o grande confronto da Razão e da Desrazão deixou de se fazer na dimensão da liberdade e em que a razão deixou de ser para o homem uma ética para se tornar uma natureza. Então a loucura tornou-se natureza da natureza, isto é processo alienando a natureza e encadeando-a no seu determinismo, enquanto que a liberdade se tornava, ela também, natureza da natureza, mas no sentido de alma secreta, de essência inalienável e da natureza. E o homem, em vez de ser colocado diante da grande divisão do Insano e na dimensão que ele imagina, tornou-se no nível de seu ser natural, isto e aquilo, loucura e liberdade, recolhendo, pelo privilégio de sua essência, o direito de ser natureza da natureza e verdade da verdade.
("Há três estados mentais distintos, se bem que se confundam nas fronteiras, como tudo. Há o estado mental anormal mas não louco, e há o estado mental de loucura. O que é o estado mental normal? É aquele em que há um equilíbrio dos elementos mentais, uma harmonia entre eles, de sorte que os actos do indivíduo se não distinguem dos actos da generalidade dos indivíduos, em tipo, pelo menos, senão em qualidade. É evidente que os elementos mentais variam em grau de homem para homem, e não há elementos mentais igualmente desenvolvidos no mesmo homem. Se assim é, em que consiste a chamada normalidade, ou seja o equilíbrio entre esses elementos, necessariamente mais acentuados uns do que os outros? Como nasce harmonia da desigualdade? Do facto, evidentemente, de que essa desigualdade é limitada, e de que nenhum elemento é a tal ponto deficiente ou excedente, em relação aos outros, que perturbe a harmonia. E o que é perturbar a harmonia? (...)Suponhamos, porém, que o elemento mental emergente, ou por excedência ou por deficiência, é excessivamente emergente. Em vez de estorvar este ou aquele outro elemento mental na sua acção, estorvará mais do que um, e assim, no progresso da escala da anormalidade, a emergência desse elemento irá invadindo o espírito inteiro. Esta invasão do espírito inteiro, por um elemento mental excessivamente deprimido ou exaltado, é o que se chama a loucura. Assim como entre certos estados de anormalidade não há distinção muito fácil, assim entre os estados graves de anormalidade e os estados primitivos da loucura não é, também, fácil a distinção. Ora a invasão do espírito inteiro, pela deficiência ou excedência de um elemento, revela-se de uma de três maneiras diferentes: pela depressão mental, como na idiotia e na demência; pela confusão mental, como nas loucuras cujo distintivo é o delírio ou a perturbação geral do espírito; e pela viciação central do espírito, como na chamada loucura lúcida ou paranóia.
A loucura caracteriza-se, essencialmente, pela perda da adaptação mental ao que chamamos a realidade, ou seja pela incapacidade de distinguir entre os fenómenos subjectivos. A loucura é sonhar acordado sem dar por isso.
»No homem normal, os motivos da acção são normais e as maneiras de executar são normais também. O homem normal é vulgar nos seus motivos e acção e banal na maneira de os executar. No homem anormal, mas não louco, ou os motivos são anormais e a execução é normal, ou os motivos são normais e a execução é anormal. No homem normal há uma adaptação entre o motivo e a execução; no anormal há uma desadaptação; no louco há uma adaptação falsa. No homem normal, os motivos da acção são normais e os processos normais também; há uma adaptação de uns a outros. No homem anormal mas não louco, os motivos são anormais e os processos correspondentemente anormais; há a mesma adaptação entre uns e outros. No louco esta adaptação cessa; e, quer os motivos sejam normais ou anormais, e os processos normais ou anormais, ou temos um motivo normal com um processo anormal, ou temos um motivo anormal com um processo normal, ou temos um motivo anormal com um processo anormal, também, mas não ajustado a esse motivo.")
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