A impossibilidade...
Eras todo, nada me hará felizVerás nunca sabrás, soy buena actriz
Nas antemanhãs longínquas o sangue dos dragões da perda, na tarde oblíqua a incerteza dos seus voos chineses — com mandarins supérfluos discutindo estéreis impossibilidades, lá longe, na luz circular do dia shintoísta inquirindo da minha constante indiferença abstracta.
"Raduan Nassar nasceu em 1935 em Pindorama, onde passou a infância. Adolescente, foi com a família para a cidade de São Paulo, tendo estudado direito e filosofia na USP. Exerceu diversas atividades e estreou-se na literatura em 1975, com Lavoura Arcaica.
Tem livros traduzidos em Espanha, França e Alemanha e é considerado um dos maiores estilistas da língua portuguesa. Venceu em 2016 o Prémio Camões."
A chegada - E quando cheguei à tarde na minha casa lá no 27, ela já me aguardava andando pelo gramado, veio me abrir o portão pra que eu entrasse com o carro, e logo que saí da garagem subimos juntos a escada pro terraço, e assim que entramos nele abri as cortinas do centro e nos sentamos nas cadeiras de vime, ficando com nossos olhos voltados pro alto do lado oposto, lá onde o sol ia se pondo, e estávamos os dois em silêncio quando ela me perguntou “que que você tem?”, mas eu, muito disperso, continuei distante e quieto, o pensamento solto na vermelhidão lá do poente(...)e sem dizer uma palavra entramos quase juntos na penumbra do quarto.
Na cama - Por uns momentos lá no quarto nós parecíamos dois estranhos que seriam observados por alguém, e este alguém éramos sempre eu e ela, cabendo aos dois ficar de olho no que eu ia fazendo, e não no que ela ia fazendo, por isso eu me sentei na beira da cama e fui tirando calmamente meus sapatos e minhas meias, tomando os pés descalços nas mãos e sentindo -os gostosamente úmidos como se tivessem sido arrancados à terra naquele instante, e me pus em seguida, com propósito certo, a andar pelo assoalho,(...) ela quem sabe já se abandonava ao desespero, atrapalhando -se ao tirar a roupa, embaraçando inclusive os dedos na alça que corria pelo braço, e eu, sempre fingindo, sabia que tudo aquilo era verdadeiro, conhecendo, como conhecia, esse seu pesadelo obsessivo por uns pés, e muito especialmente pelos meus,(...)que ela de mansinho, muito de mansinho, se achegaria primeiro dos meus pés, que ela um dia comparou com dois lírios brancos.
O levantar / O Banho / O café da manhã/ O esporro/ A chegada...
"Quanto a Kawabata, é difícil pensar que o Nobel tenha representado para ele qualquer graça incitante. Na verdade, nos últimos anos, e enquanto a sua obra era cada vez mais lida por todo o mundo, este escritor em tempos tão prolífico, tendo chegado a presidir durante um longo período ao PEN japonês, escrevia cada vez menos, aproximando-se perigosamente do silêncio que marcou o seu acto final. Ao suicidar-se aos 72 anos, em abril de 1972, saiu sem se dar importância. Não procurou a menor ênfase, um gesto heróico e nem uma nota de suicídio deixou. Ao contrário do espectacular suicídio, dois anos antes, do seu amigo e discípulo, Yukio Mishima, causando choque ao recuperar o seppuku, Kawabata foi encontrado sem vida com uma mangueira de gás na boca." Era-lhe impossível continuar a viver...
Prefácio de mishima
«...o sentimento da limitação e sufocamento começa a apoderar -se do leitor. As técnicas normais de diálogo e descrição dos personagens não têm grande validade em A Casa das Belas Adormecidas, porque as raparigas estão a dormir. Deve ser muito raro na literatura dar um sentido tão ativo da vida através da descrição de figuras adormecidas.»
— Não faça nenhuma brincadeira de mau gosto, por favor. Não vá, por exemplo, enfiar o dedo na boca da menina adormecida recomendara insistentemente a mulher da hospedaria ao velho Eguchi. No andar superior só havia dois QUARTOS, uma sala de oito tatames onde Eguchi e a mulher conversavam e, ao lado, provavelmente um quarto de dormir. Até onde se podia perceber, no andar térreo, pouco espaçoso, também não havia quarto para hóspedes; assim, a casa não poderia ser chamada de hotel. Não havia nenhuma placa com letreiro anunciando uma hospedaria. Além do mais, os segredos daquela casa não permitiriam colocar tal anúncio. Não se ouvia ali nenhum ruído. Além da mulher que recebera o velho Eguchi no portão com cadeado e que continuava à sua frente a conversar, ele não vira nenhuma outra pessoa. Se ela era a propietária ou uma empregada, Eguchi, que estava ali pela primeira vez, não podia precisar. De qualquer forma, seria mais sensato não fazer perguntas desnecessárias.
Eguchi fechou a porta à chave, e depois, afastando a cortina, contemplou a rapariga adormecida. Não era um sono fingido porque ele podia ouvir a sua respiração, que indicava incontestavelmente que ela estava a dormir profundamente. Diante da beleza da rapariga, inesperada, o velho sentiu a respiração parar. A sua beleza não era a única coisa imprevisível. Também o fora a sua juventude. Ela estava de frente para ele, estendida sobre o lado esquerdo, tendo apenas a face a descoberto; o seu corpo era invisível mas não havia dúvidas de que ainda não tinha vinte anos. No peito de Eguchi foi como se um coração novo tivesse aberto as asas.
O pensamento que lhe ocorrera de que aquela podia ser para ele a sua última mulher jovem tinha-a tornado inesquecível, mas ela talvez também não tivesse esquecido Eguchi. Sem que se tivessem profundamente magoado um ao outro e devendo cada um deles guardar segredo para o resto das suas vidas, por certo que nem um nem outro se esqueceriam.
Qu´est-ce que l´OuLiPo? É um grupo , fundado em França, em 1960, cujo nome é o acrónimo de “Ouvroir de littérature potentielle” ( Oficina de literatura potencial). O autor que se dedica à prática desta literatura potencial é como “um rato que constrói em si mesmo um labirinto do qual se propõe sair”. Não se trata de um movimento literário, nem de um seminário científico. O que caracteriza a literatura potencial é o estabelecimento de regras formais, resultantes da obsessão por aplicar, à literatura, princípios matemáticos.
Perec relata a vida de um prédio, através da descrição minuciosa de cada andar, de cada apartamento e de cada divisão com tudo aquilo que ali se contém, objetiva e rigorosamente enunciado.
Certo, a história poderia começar assim, aqui, desta forma, de maneira um tanto lerda e lenta, neste reduto neutro que é de todos e não é de ninguém, onde as pessoas se cruzam quase sem se ver, onde a vida do prédio repercute, distante e regular. Do que se passa por trás das pesadas portas dos apartamentos só se percebem no mais das vezes os ecos perdidos, os fragmentos, os esboços, os contornos, os incidentes ou acidentes que se desenrolam nas chamadas “partes comuns”, esses leves ruídos de feltro que os gastos tapetes de lã vermelha abafam, esses embriões de vida comunitária que se vão sempre deter nos patamares. Os habitantes de um mesmo prédio vivem a apenas alguns centímetros uns dos outros, uma simples divisória os separa, partilham os mesmos espaços que se repetem ao longo dos andares; fazem os mesmos gestos ao mesmo tempo, abrir a torneira, dar a descarga, acender a luz, pôr a mesa, algumas dezenas de existências simultâneas que se repetem de andar em andar, de prédio em prédio e de rua em rua. Eles entrincheiram -se nas suas zonas privativas — pois é assim que se chamam — e gostariam que nada dali saísse, e o pouco que consentem em que saia, o cão na coleira, o menino que vai comprar pão, o recebido ou o expedido, é pela escadaria que sai. Pois tudo o que se passa passa pela escadaria, tudo o que chega chega pela escadaria, as cartas, os comunicados, os móveis que os carregadores trazem ou levam, o médico chamado com urgência, o viajante que volta de longa viagem.É por esse motivo que a escadaria permanece um lugar anónimo, frio, quase hostil. Nos edifícios antigos, havia ainda degraus de pedra, balaústres de ferro fundido, esculturas, tocheiros, às vezes um banquinho para permitir que as pessoas idosas descansassem entre um andar e outro. Nos prédios modernos, há elevadores com os forros cobertos de escritos pretensamente obscenos e escadas ditas “de emergência”, de cimento bruto, sujas e sonoras. Neste prédio aqui, em que há um elevador quase sempre parado, a escadaria é um lugar vetusto, de asseio duvidoso, que de andar em andar se degrada conforme as convenções da respeitabilidade burguesa: tapete duplo até o terceiro andar, simples em seguida, e depois nenhum para os dois andares do alto. Certo, a história vai começar aqui: entre o terceiro e o quarto andares do número 11 da rua Simon-Crubellier.
A mulher sobe as escadas. Em breve, o velho apartamento tornar-se-á uma habitação confortável, liv. duplo + qt., tudo
refor., c/ vista, rua calma. Gaspard Winckler morreu, mas a longa vingança que urdiu com tanta paciência e tanta minúcia, vai levar ainda muito tempo para se cumprir.
«As Cidades Invisíveis apresenta-se como uma série de relatos de viagem que Marco Polo faz a Kublai Kan, imperador dos tártaros. [...] A este imperador melancólico, que percebeu que o seu poder ilimitado conta pouco num mundo que caminha em direção à ruína, um viajante visionário fala de cidades impossíveis, por exemplo, uma cidade microscópica que se expande, se expande até que termina formada por muitas cidades concêntricas em expansão, uma cidade teia de aranha suspensa sobre um abismo, ou uma cidade bidimensional como Moriana. [...] Creio que o livro não evoca apenas uma ideia atemporal de cidade, mas que desenvolve, ora implícita ora explicitamente, uma discussão sobre a cidade moderna. [...] Penso ter escrito algo como um último poema de amor às cidades, quando é cada vez mais difícil vivê-las como cidades.» Italo calvino
Partindo dali e caminhando por três dias em direção ao levante, encontra-se Diomira, cidade com sessenta cúpulas de prata, estátuas de bronze de todos os deuses, ruas lajeadas de estanho, um teatro de cristal, um galo de ouro que canta todas as manhãs no alto de uma torre. Todas essas belezas o viajante já conhece por tê-las visto em outras cidades. Mas a peculiaridade desta é que quem chega numa noite de setembro, quando os dias se tornam mais curtos e as lâmpadas multicoloridas se acendem juntas nas portas das tabernas, e de um terraço ouve-se a voz de uma mulher que grita: uh!, é levado a invejar aqueles que imaginam ter vivido uma noite igual a esta e que na ocasião se sentiram felizes.
O homem que cavalga longamente por terrenos selváticos sente o desejo de uma cidade. Finalmente, chega a Isidora, cidade onde os palácios têm escadas em caracol incrustadas de caracóis marinhos, onde se fabricam à perfeição binóculos e violinos, onde quando um estrangeiro está incerto entre duas mulheres sempre encontra uma terceira, onde as brigas de galo se degeneram em lutas sanguinosas entre os apostadores. Ele pensava em todas essas coisas quando desejava uma cidade. Isidora, portanto, é a cidade de seus sonhos: com uma diferença. A cidade sonhada o possuía jovem; em Isidora, chega em idade avançada.Na praça, há o murinho dos velhos que veem a juventude passar; ele está sentado ao lado deles. Os desejos agora são recordações.
Da cidade de Doroteia, pode-se falar de duas maneiras: dizer que quatro torres de alumínio se erguem-se das suas muralhas flanqueando sete portas com pontes levadiças que transpõem o fosso cuja água verde alimenta quatro canais que atravessam a cidade e a dividem em nove bairros, cada qual com trezentas casas e setecentas chaminés; e, levando-se em conta que as moças núbeis de um bairro se casam com jovens dos outros bairros e que as suas famílias trocam as mercadorias exclusivas que possuem: bergamotas, ovas de esturjão, astrolábios, ametistas, fazer cálculos a partir desses dados até obter todas as informações a respeito da cidade no
passado no presente no futuro; ou então dizer, como fez o cameleiro que me conduziu até ali: “Cheguei aqui na minha juventude, uma manhã; muita gente caminhava rapidamente pelas ruas em direção ao mercado, as mulheres tinham lindos dentes e olhavam nos olhos, três soldados tocavam clarim num palco, em todos os lugares ali em torno rodas giravam e desfraldavam-se escritas coloridas. Antes disso, não conhecia nada além do deserto e das trilhas das caravanas. Aquela manhã em Doroteia senti que não havia bem que não pudesse esperar da vida. Nos anos seguintes meus olhos voltaram a contemplar as extensões do deserto e as trilhas das caravanas; mas agora sei que esta é apenas uma das muitas estradas que naquela manhã se abriam para mim em Doroteia”.
Sem dúvida também em Ipásia chegará o dia em que o meu único desejo será partir. Sei que não devo descer até o porto mas subir o pináculo mais elevado da cidadela e aguardar a passagem de um navio lá em cima. Algum dia ele passará? Não existe linguagem sem engano.
Existe uma contínua vibração luxuriosa em Cloé, a mais casta das cidades. Se os homens e as mulheres começassem a viver os seus sonhos efémeros, todos os fantasmas se tornariam reais e começaria uma história de perseguições, de ficções, de desentendimentos, de choques, de opressões, e o carrossel das fantasias teria fim.
Polo - sempre que descrevo uma cidade digo qualquer coisa de Veneza.
Imperador - Quando te pergunto por outras cidades, quero ouvir-te falar delas. E de Veneza, quando te pergunto por Veneza.
- Para distinguir as qualidades das outras, tenho de partir de uma primeira cidade que está implícita. Para mim é Veneza.
- Deverias então começar todos os relatos das tuas viagens pelo princípio, descrevendo Veneza tal como é, toda, sem omitir nada do que dela recordas.
-As imagens da memória , depois de fixadas com palavras, apagam-se . Talvez eu tenha de perder Veneza toda de uma vez, se falar dela. Ou talvez, ao falar de outras cidades, já venha a perdê-la pouco a pouco.
Às vezes o espelho aumenta o valor das coisas, às vezes anula. Nem tudo o que parece valer acima do espelho resiste a si próprio refletido no espelho. As duas cidades gémeas não são iguais, porque nada do que acontece em Valdrada é simétrico: para cada face ou gesto, há uma face ou gesto correspondente invertido ponto por ponto no espelho. As duas Valdradas vivem uma para a outra, olhando-se nos olhos continuamente, mas sem se amar.
As cidades como os sonhos são construídas de desejos e de medos, embora o fio do seu discurso seja secreto, as suas regras absurdas, as perspetivas enganosas, e todas as coisas escondam outra.
O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno
e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de o perceber. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: tentar saber reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço...
À la manière de A. Caeiro
A mão invisível do vento roça por cima das ervas.
Quando se solta, saltam nos intervalos do verde
Papoilas rubras, amarelos malmequeres juntos,
E outras pequenas flores azúis que se não vêem logo.
Não tenho quem ame, ou vida que queira, ou morte que roube.
Por mim, como pelas ervas um vento que só as dobra
Para as deixar voltar àquilo que foram, passa.
Também por mim um desejo inutilmente bafeja
As hastes das intenções, as flores do que imagino,
E tudo volta ao que era sem nada que acontecesse.
Tive um outro intervalo comigo próprio. Tornei a meditar sem saber em quê. Quando de novo despertei o silêncio era absoluto — logo invisível de todos os meus sonhos idos e das minhas esperanças mortas, e a minha consciência da vida afundava-se lentamente nele, assumindo, à medida que se afundava, noções novas de possibilidades de compreender a vida sob outros aspectos, vagos terrores e interiores.
A invisibilidade...
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