Não é neccessário vivermos ao lado de alguém para nos sentirmos ligados a esse alguém mais do que a qualquer outra pessoa...

sábado, 13 de abril de 2019

Seres raros...

2004

Escrevo para responder à estranheza de estar vivo, ao incómodo da existência.(...) a leitura é a única coisa indispensável à escrita (...) até porque a minha escrita é , em muitos casos, uma resposta ao desafio que alguns autores colocam com as suas obras.

O livro não é um passatempo, não substitui nem deve substituir a televisão; deve ter um papel na investigação da linguagem e de sabotagem dos preconceitos e dos lugares-comuns (...) pretendo escrever sempre sem pressões extra-literárias, não tenciono adaptar o ritmo de escrita ao ritmo de consumo ou ao tempo médio de vida do livro nas livrarias.

Muito do que só agora está a ser publicado começou a ser escrito há 15 anos.(...) Queria ter já algum trabalho feito, poder olhar para ele e decidir o que queria publicar.

Nos livros pretos, existe um desencanto, entendido no sentido de quebra do canto, interrupção da canção.


2010



Não é a crença de ser crente. Quero perceber o que é ser crente. Vejo a crença como ‘um a mais’. Perante um crente, nunca me sinto mais reflexivo ou racional. Fico numa situação de inferioridade. A crença é um dos pontos centrais do meu trabalho. Um crente tem uma energia e uma força que eu não tenho. Os meus livros falam das máquinas, mas em confronto com a crença. Em “Aprender a Rezar na Era da Técnica”, parti de uma imagem que nunca aparece no livro – um homem a rezar ao lado de uma máquina industrial de grandes dimensões, em funcionamento, e dois sons a competir: o som da máquina e o som da oração. (...)Choca-me a intrusão da tecnologia no espaço religioso. Na catedral do México ouvi uma oração gravada. Sinto que são dois mundos incompatíveis. Não gosto de ver uma aparelhagem numa igreja. É uma invasão. Mas ao mesmo tempo é impressionante como as orações resistem em microfones quando elas surgiram do meio da natureza. É interessante pensar nesses espaços no meio das cidades – estão no meio de qualquer coisa que é a tecnologia. São esconderijos do antigo. Gosto de ver terra nas igrejas, e há pouco disso. Podia haver outro espaço religioso, sem religião. Uma espécie de jardim japonês fechado. Nunca estive tão próximo da crença como agora. (...)
Há um regresso mais político da religião, mas a religião nunca esteve ausente. Há uma personagem do Hans Christian Anderson a quem pedem para rezar, e ele só se lembra da tabuada. Depois pedem-lhe a tabuada, e só se lembra da oração. Continua a haver um conflito entre quem acredita que se vai salvar pela oração e quem pensa que vai ser a tabuada, a racionalidade, a tecnologia. No final do século XX; o cientista era a figura mais forte, fazia com que as pessoas morressem mais tarde. (...)


Gosto de elementos que nos digam ‘mais devagar’. Devagar, devagar, devagar... Um livro que mantém a velocidade do mundo exterior não oferece muito.

2011

Comecei a escrever a Viagem em 2003, e só saiu em 2010.(...) Gosto muito da ideia de escrever instintivamente, sem saber para onde estou a ir.

Qualquer livro sério entra no mundo com uma outra velocidade que não a velocidade do mundo normal. Entra neste mundo, com uma lentidão de outros tempos. E por isso é que me parece que os livros, em geral, são cada vez mais necessários. A aceleração é tanta na vida comum que o livro é quase como um conselho, como alguém que sussurra, no meio da balbúrdia: mais devagar, mais devagar.

Uma Viagem à Índia narra as aventuras de Bloom, que foge de Lisboa porque cometeu um crime. O livro conta as aventuras mais ou menos burlescas, mais ou menos trágicas, por vezes aventuras mentais, de uma personagem do século XXI – um individualista. Ele quer fugir porque cometeu um crime, mas quer nessa fuga aprender. Aprender enquanto foge, eis o seu desígnio.
É de certa maneira a última micro-utopia deste Bloom, no século XXI, que é o século que vem depois das grandes tragédias e do fim de todas as grandes utopias do século XX. Quem ler o livro verá que até esta última micro-utopia esbarrará com uma decepção. E por isso, o regresso a Lisboa de Bloom, depois da decepção na Índia. Volta outro. É um regresso perigoso, pois aí é já alguém que perdeu a última esperança, que já não tem qualquer expectativa. Mas a personagem Bloom tem várias contradições. É uma personagem meio desastrada, que se vai livrando de pequenas armadilhas, quase sem saber como.

Realmente o que me interessa sempre é olhar para os comportamentos humanos. Como agem e reagem as pessoas. Como falam e como se calam. Como actua o medo e a violência. Agrada-me também pensar nas situações fortes, como a doença, a loucura – tudo isso me interessa. E julgo tudo isto muitas vezes é acompanhado com um certo distanciamento, com uma ironia, com uma forma de mostrar que há sempre uma saída, nem que seja pelo humor – mesmo que humor negro. Quando faço uma viagem e ando pelas cidades que não conheço, olho sempre para as pessoas e para a forma como agem.

2013
" É preferível um anjo e uma pedra do que dois anjos." S. Tomás de Aquino

" Um livro tem de ser diferente do mundo real." GMT

2015
"Encontro entre pessoas de gerações diferentes" / "O cinema é um processo de acumulação benigna de fotografias"


2017

Penso que o material de um escritor não são os géneros literários, mas sim o alfabeto, em primeiro lugar. É essa a sua matéria. Como a matéria de um pintor são as tintas, e de um escultor que trabalhe a pedra é a pedra. E depois os humanos, os acontecimentos, etc. “Não me parece que a ideia de género literário traga algo de bom para a criação. A criação deve partir daquele material base e não de uma lógica taxonómica de receção.

A velocidade é uma forma mansa de violência, mas não deixa de ser uma violência. Acima de uma certa velocidade deixamos de ver o que está lá fora, deixamos de ver por completo, cegamos. Mesmo em termos políticos.
Escrevi uma vez que a democracia é o reino da lentidão. E ainda bem, acrescento. Por vezes, a lentidão da democracia irrita-nos, claro. O tempo que demora uma lei a ser mudada, a ser cumprida. Mas essa é a parte natural da democracia, a precaução, uma certa sensatez que resulta da discussão. O diálogo nunca é rápido, atrasa sempre. Dialogar não é decidir, é adiar a decisão. Adiar a decisão para encontrar lá à frente aquilo que se acredita ser a melhor decisão. Por isso tenho muito medo quando as democracias aceleram os processos, entrando numa velocidade estonteante. Devemos desconfiar sempre de uma democracia que aprova novas leis a grande velocidade. É um sinal perigoso.


2018

"Escrever deve ser um verbo intransitivo." Barthes



"Cada livro deve criar um novo género literário." GMT

2019
Angola
... acredito que há memórias que não são racionais. Há a história dos cheiros. Tenho amigos que vieram com a mesma idade e que dizem que o regresso a Angola foi comovente. O meu organismo começa a ter alguma vontade política de regressar. Começo a ter esperança de que Angola se torne um país sensato e entusiasmante. Estou a preparar-me para esse regresso, como alguém que vai conhecer um familiar, de quem se afastou, ou por quem foi abandonado ou abandonou, quando era criança. Existe um certo receio.

Viagens
Para o bem e para o mal, as viagens começam antes de se chegar ao destino. Antigamente uma marcha acontecia a um ritmo muito lento, o de um barco ou de um animal. Hoje, na linha reta que traçamos entre a partida e a chegada, o meio desaparece, embora ainda existam viagens muito lentas, e por isso mais atentas ao percurso. O destino é agora o sítio onde se começa, não o sítio aonde se chega.

Algumas viagens tornara-se uma espécie de confirmação.
Antes aborrecia-me viajar, mas a viagem tornou-se importante para o meu trabalho e para conhecer o comportamento humana.

Eficácia / Afetividade
A velocidade da tecnologia já não é humana, abre um espaço que pode ser perigoso ou não controlável. A partir de uma certa velocidade deixamos de ver, a cegueira é fisicamente comprovável e é simbolicamente interessante.
A minha descoberta tem que ver com aquela aceleração, com os momentos em que estou realmente louco, quando escrever e pensar coincidem.
Ser humano é a nossa mão tremer.

"Ser humano é a nossa mão tremer."


Escrever / Ler
A escrita resulta da necessidade de isolamento, e a leitura também está ligada a essa necessidade. Hoje, escrever ou ler é quase um luxo. É ficar só, sem ninguém à volta, sem estar ligado à internet. A ideia de estar isolado tornou-se rara. (...) nas sociedades “supertecnológicas” quem consegue passar três ou quatro horas sozinho, sem estar ligado à internet, está a introduzir ou a manter séculos passados no século XXI. É como se a pessoa transportasse uma mochila às costas e levasse nela o século XVIII ou o século XIX — os últimos em que a presença corporal era o essencial. Hoje, ler e escrever são quase processos de resistência, revolucionários. Não estar ligado à internet, estar sozinho, implica ultrapassar uma quantidade de obstáculos. Não sendo a escrita um processo espiritual é um processo de abdicação. O contacto com a internet é o mais fácil.

A escrita não é um processo espiritual, é um processo de abdicação.

Ser professor
Gosto muito do contacto com as pessoas, e também não é bom depender apenas da literatura ou da arte. Para mim, o espaço da arte é o da liberdade absoluta. Faço o que tenho necessidade e nunca imponho outro critério que não seja o da liberdade, o da vontade, o da necessidade. Quando revejo, por exemplo, corto, corto e corto. E altero. Às vezes estou a cortar frases e sinto que esse corte vai eliminar cem leitores, e mais outro, e já perdi mais 20 leitores, porque o texto se torna mais denso. Se eu por acaso dependesse economicamente da literatura provavelmente iria pensar: “Será que corto?” E eu corto mesmo muito.



Fito-me frente a frente.
Conheço que estou louco.
Não me sinto doente.
Fito-me frente a frente.

Evoco a minha vida.
Fantasma, quem és tu?
Uma coisa erguida.
Uma força traída.

Neste momento claro,
Abdique a alma bem!
Saber não ser é raro.
Quero ser raro e claro.




«A noite de 11 de fevereiro de 1963, diz-se, foi a mais fria daquele ano. A poetisa americana Sylvia Plath vivia na casa que tinha pertencido a Yeats, em Primrose Hill, Londres. Deitou os filhos no quarto do 1º andar, esperou que eles adormecem, abriu-lhes a janela do quarto, calafetou as portas, deixou pão com manteiga e leite na mesa de cabeceira desceu para a cozinha, enfiou a cabeça no forno do fogão e abriu o gás.

O suicídio fez dela, que era apenas uma jovem de 30 anos, um mito. Não entre os académicos ou os intelectuais, mas entre as feministas inglesas e americanas do final dos anos 60. A sua poesia tornou-se secundária ao que foi a sua vida conjugal com o famoso poeta Ted Hughes, as traições, os maus tratos, a solidão, os desencontros fizeram dela a bandeira perfeita da luta feminista: a bela, jovem e promissora poetisa mata-se devido à infidelidade conjugal. E assim, Sylvia Plath começou a ser lida não como a talentosa que era — e é — mas como uma vítima. No filme Annie Hall, Woody Allen resume a história de forma lapidar: “Uma boa poetisa cujo trágico suicídio foi interpretado como ‘romântico’ por uma mentalidade adolescente.”




Esta romantização do suicídio e das doenças mentais, uma das perversidades recorrentes nas artes e na literatura, teve muito pasto na vida de Sylvia e depois na dos que a rodeavam, desde Ted aos dois filhos do casal. À medida que a fama de Ted Hughes crescia, crescia também a Sylvia e continuava a ler-se a sua obra e a sua morte apenas como uma reacção à infidelidade masculina. Ou, se quisermos: morreu por um amor não correspondido e vilipendiado, o que a torna igual a qualquer heroína da Danielle Steel.

Sendo indiscutivelmente uma grande poetisa, será que se não tivesse morrido teria tido a mesma consagração? Até que ponto se tornou consagrada pelas razões erradas? Leram-na e lêem-na como um acto de justiça e de afirmação feminista ou como autora? Ou melhor: lêem-na por aquilo que foi ou por aquilo que a fizeram representar? Será que, inconscientemente, Sylvia deu o golpe de marketing perfeito?

Sendo indiscutivelmente uma grande poetisa, será que se não tivesse morrido teria tido a mesma consagração? Até que ponto se tornou consagrada pelas razões erradas? Leram-na e lêem-na como um acto de justiça e de afirmação feminista ou como autora? Ou melhor: lêem-na por aquilo que foi ou por aquilo que a fizeram representar? Será que, inconscientemente, Sylvia deu o golpe de marketing perfeito?

Antes de ser um ícone dos movimentos feministas dos anos 60/70, antes de ser um mito da poesia anglo-saxónica do século XX, de ser um filme de Hollywood, de ser até o nome de uma cor de batôn, de ter o rosto pendurado em shopping bags de algodão e T-shirts, antes mesmo de ser protagonista de uma saga familiar trágica de contornos shakespearianos, foi apenas uma miúda loira que nasceu em 1932 em Boston, EUA, com um talento precoce para a palavra e um temperamento melancólico.

Os gregos chamavam à melancolia a bílis negra e não é crível que a ciência já tenha descoberto o gene que a determina, se é hereditária, contagiosa. Sabe-se que pode ser mortal. Sabe-se que esta espécie de perda fatal, esta falta sem objecto definido que habita tantos de nós, está na génese da arte, do conhecimento, mas também do crime, dos impérios. Uns transformam-na em obra, outros sucumbem-lhe. A melancolia é um sentimento antagónico ao colectivo e é ela que, tantas vezes, nos permite resistir ao apelo frenético das cidades reais e virtuais, que nos faz buscar a solidão essencial à leitura, ao estudo, à imaginação.

No entanto, a melancolia não é sinónimo de depressão, nem sequer de tristeza, ainda que o nosso tempo tenda a colocar tudo dentro do mesmo saco Apenas nem todos tem o dom de transformar a dor, a angústia, até a demência (como Hölderlin, Robert Walser, Ângelo de Lima) em grande arte.

I am terrified by this dark thing
That sleeps in me;
All day I feel its soft, feathery turnings, its malignity. ”
(S.Plath, Elm)

Sylvia teve esse dom. Não era apenas uma mulher melancólica, em busca da beleza do que teria podido ser, em busca de um “Eu” onde habitassem intactas todas as possibilidades. Não era certamente uma flaneur, estava mais próxima dos misticismos exaltantes (como a bibliomancia e a astrologia) que da contemplação átona. Com episódios depressivos desde a adolescência, Sylvia começou por fazer da poesia um acto de resistência contra essa ausência precoce: o pai, morto devido à diabetes quando ela tinha 9 anos. Aos 11, ela publica o primeiro poema. Aos 20, faz a primeira tentativa de suicídio e tem o primeiro internamento psiquiátrico.

Soon, soon the flesh
The grave cave ate will be
At home on me”
(S. Plath, Lady Lazarus)

Em 1955 foi estudar para Inglaterra onde conheceu e casou com o também poeta inglês Ted Hughes, uma relação conturbada que espelhava a sua ambivalência mais próxima do trágico onde as forças contraditórias são insuperáveis. Não há síntese dramática, vínculo afectivo ou moral que detenha o que o destino preparou para nós. Terá Sylvia, eventualmente, tentado encontrar em Hughes o amante e a família que lhe permitiram organizar uma paisagem para a sua existência no mundo tal como a poesia?» Joana Emídio Marques

Esta manhã nem mesmo as nuvens entre o sol podem pôr estas
saias.
Nem a mulher na ambulância
De coração vermelho a florescer assombrosamente através do
casaco –

Uma oferenda, uma oferenda de amor
Jamais pedida
Nenhum céu

Esmaiado e em chamas
Pondo a trabalhar o seu monóxido de carbono, nenhuns olhos
Estáticos, em sentido sob chapéus de coco.

Ó meu Deus, o que sou eu
Possam as últimas bocas gritar alto
Numa floresta de gelo, num amanhecer de centáureas.


É desmoralizador observar duas pessoas a sentirem-se cada vez mais atraídas uma pela outra,especialmente quando se é a única pessoa a mais na sala.

O silêncio deprimia-me. Não era o silêncio do silêncio. Era o meu próprio silêncio.

Não há nada como vomitar na companhia de outra pessoa para nos tornarmos de imediato velhas amigas.

Escolher um significava perder os outros.

Bastava pensar que ela era um animal, como todas as outras, para estragar tudo. Por isso, se porventura viesse a amar uma mulher, jamais iria para a cama com ela.

Era sempre a mesma história: via um homem à distância mas mal ele se aproximava, percebia que ele não servia para mim.

O casamento e os filhos constituem uma certa forma de lavagem ao cérebro, que depois nos deixa paralisadas, como uma escrava num estado totalitário privado.

«O meu projeto de morrer é o meu ofício».
Escreveu Daniel Faria, o poeta a quem a morte aconteceu com apenas 28 anos,completaria hoje 48 anos.


"Daniel Faria nasceu em Baltar, em 1971. Estudou Teologia na Universidade Católica, licenciando-se em Estudos Portugueses. Após os estudos, optou pela vida monástica e ingressou no Mosteiro Beneditino de Singeverga. Publicou em vida os livros Uma Cidade com Muralha (1991), Oxálida (1992), A Casa dos Ceifeiros (1993), Explicação das Árvores e de Outros Animais (1998) e Homens Que São Como Lugares Mal Situados (1998), aos quais se seguiram, de publicação póstuma, Legenda para uma casa habitada e Dos Líquidos, ambos no ano 2000. O poeta morreu após um acidente doméstico em 1999, pouco antes de terminar o seu noviciado..."


Daniel Faria: o rapaz raro, Alexandra Lucas Coelho 14 de Julho de 2001.

" Poucos poemas em língua portuguesa nos últimos 20 anos terão o impacto verdadeiro dos de Daniel Faria. O seu último livro, "Dos Líquidos", publicado no início deste ano, já foi póstumo.

Sophia de Mello Breyner Andresen foi, para ele, o princípio da poesia. E quando chegou a vez de Sophia o ler, disse: "Versos que põem o mistério a ressoar em redor de nós." Essa é a síntese, tudo o que importa. É da poesia que partimos, mesmo quando vamos de casa em casa, à volta da vida. Para saber um pouco mais, para voltar a não saber. Vale só por isto, a aproximação a uma biografia. Quando lhe pediram um auto-retrato, Daniel Faria (1971-1999) escreveu que era "um rosto que há-de vir".(...)

Era muito sossegado, tinha muita paz, conversava-se com ele e ele dava paz." Paulo, irmão mais velho três anos - com a mesma diferença, os mais novos são Miguel e depois Clara - conta que "se lhe dessem a escolher entre ficar em casa ou ir para a praia, o Daniel ficava em casa." A praia, durante anos, em Agosto, era a da Luz, na Foz, Porto. "Ele não gostava, mas ia", acrescenta a mãe, "e voltava com búzios, conchas, caramujos, pedras. Depois fazia coisas, fazia presépios..." A paixão das pedras durou toda a vida. Cada amigo em viagem lhe foi trazendo uma. As mais pequenas e preciosas continuam na sua cela do Mosteiro de Singeverga, as maiores em casa dos pais. E o lugar de todas será o da palavra, tantas são as que vemos nos poemas.(...) Fernanda Cunha recorda que "desde o jardim de infância" ele dizia que queria ser padre: "Eu sorria. Mas ele foi sempre dizendo, na escola, na catequese." Até que, no fim do ciclo, pediu para ir para o seminário. "Ainda lhe perguntámos se não queria fazer primeiro o liceu, aqui. Ele ficou calado, a pensar, e depois disse: se não têm nada contra, prefiro ir já.(...) Aqui, o grande anfitrião foi o Padre Manuel Mendes, professor de português e apaixonado leitor, que lhe deu a ler Sophia e Eugénio de Andrade. "Contou-me que fazia poemas desde o ciclo. Tínhamos um jornalzinho, ele começou a escrever com entusiasmo e a passar esse entusiasmo aos outros. Era sereno, mas muito curioso, sempre a querer ir mais longe, a querer lidar com as coisas difíceis."Este padre e amigo - de quem Daniel se dizia herdeiro, no amor à poesia - não tem memória de uma adaptação difícil: "Ele era muito independente em relação à família. Desabrochou ali em Baltar como uma forma rara, e no seminário encontrou um espaço para crescer. Era muito bom aluno, gostava dessa vida regrada com horas para tudo, em que tinha tempo para ler, foi descobrindo música, teatro, marionetas, amigos com outras experiências."O enérgico colega de camarata Fernando Mota - hoje pároco em Santo Tirso - lembra que "o Daniel não se afirmou logo, não era um jogador de futebol, por exemplo, ficava a ver-nos, mas sempre se integrou".Fernando Nuno, colega de então e amigo de sempre - hoje, professor de filosofia no Porto -, recorda-se de "admirar o Daniel à distância, primeiro, e depois de ler por causa dele os contos de Sophia, "As Memórias de Adriano", da Yourcenar, o Michel Tournier, o "Crime e Castigo", de Dostoiévski, Raul Brandão..." Isto, algures entre os 12 e os 15 anos.O Padre Mendes confirma que nele "acontecia tudo muito cedo, muito depressa", chega a dizer que, apesar da diferença de idades, gostava de o ouvir "como um conselheiro".Do Bom Pastor, onde esteve três anos, Daniel segue para o Seminário de Vilar, no centro do Porto, onde, até ao 12º ano frequentará o liceu Rodrigues de Freitas. Começa a compor poemas torrencialmente, e a partilhá-los. Dá livros inteiros: "Traço Branco", "Pórtico", assinados ora Daniel Augusto, ora com pseudónimos como Germano Serra, quando se tratava de participar em concursos. Entre versos inocentes sobre o Porto, os pescadores, o campo, o amor, emergem já duas presenças: a morte e Deus. Conta-se que a professora de português, Rosa Maria Valente, de quem ele gostava muito, pensava a princípio que eram copiados.Literárias, não literais, seriam, de acordo com a memória de amigos, as inspiradoras dos versos de amor. "Não me lembro de conversarmos sobre raparigas, sempre achei que ele queria ser padre", relembra o jovem Padre Mota, "eu dizia-lhe que achava fascinante ter uma família, casar, e ele respondia que não tinha vocação nenhuma para casar. Gostava do seu mundo, de o partilhar, mas creio que a ideia de estar para sempre com alguém lhe fazia impressão. No entanto, lidava muito naturalmente com as raparigas." Reforça o Padre Mendes: "Era como se nunca tivesse sentido esse estremecimento do desejo, como se o lado carnal, de êxtase, que encontramos depois nos poemas, lhe tivesse sido dado como um arquétipo. Tinha uma enorme liberdade com as pessoas e as coisas." "Era sereno", conclui Fernando Nuno, "não por uma ausência do desejo, simplesmente não havia conflito."Com os amigos, constrói Daniel, no último ano de Vilar, e nos anos seguintes do Seminário da Sé (1989-94), a sua família de todos os dias, numa entrega e dedicação cada vez mais profunda. Os testemunhos dos próximos revelam uma capacidade de dádiva luminosa e inventiva, de que centenas de bilhetes, cartas, poemas, desenhos, colagens são vestígios apenas mínimos.De Fernando Nuno, tornou-se amigo fiel a partir de um episódio provavelmente único na sua biografia, uma bebedeira de geropiga: "Foi no último ano de Vilar, tínhamos ido passar um fim de semana fora, e estava um frio terrível. Havia uma garrafa de geropiga, e ele, como nunca bebia, ficou logo num estado lastimoso e acabou por vomitar no saco-de-cama. Eu emprestei-lhe o meu, e dormi só vestido, sem nada para tapar. Apanhei uma gripe feroz, que durou semanas." A partir daí, foi como ganhar um irmão: "Ele era de uma timidez paradoxal. Para um acto rotineiro, como ler nas celebrações, entrava-me no quarto a tremer meia hora antes, tinha horror a falar em público, apesar de cativar toda a gente quando falava. E depois, nas situações difíceis era de uma coragem incrível." Como no episódio da Rua Escura, uma viela do bairro da Sé, no Porto, dominada por toxicodependentes, no caminho entre o seminário e a faculdade de Teologia: "Normalmente eles não se metiam connosco. Mas uma vez, um segurou-me, a pedir dinheiro, a dizer que era seropositivo, com as mãos cheias de sangue. Os meus colegas viam aquilo e continuavam a descer. O Daniel foi o único que parou. Aproximou-se e disse: 'Então, há algum problema?' O rapaz fugiu." Nessa "entrega quase obsessiva aos amigos", segundo Fernando Nuno, "dizia que a melhor coisa que lhes podia dar era a poesia, e por isso escrevia para nós, muito, e assim se iam fazendo os livros." Foi justamente para este amigo que Daniel concluiu "Oxálida" (1992), seu primeiro volume publicado. O original, com as maravilhosas colagens coloridas, está hoje guardado no Mosteiro de Singeverga [ver reprodução nestas páginas]: "Um dia deixou-mo no quarto, simplesmente. E metia-me poemas debaixo da porta, nas férias escrevia-me quase todos os dias, quando fui para Braga estudar Filosofia mandava-me cartas com traduções de fragmentos dos pré-socráticos, traduzia do grego e ainda acrescentava os seus próprios fragmentos."O segundo livro publicado, "A Casa dos Ceifeiros" (Associação de Estudantes da Faculdade de Teologia do Porto, 1993) - reúne pelo menos uma dezena de poemas que podem permanecer -, também começou assim, como um original com colagens, para um amigo. Mas não eram só as palavras, ressalva Fernando Nuno: "Ele dava tudo. Íamos ao quarto dele e era o essencial, alguns livros de poesia, as pedras... tinha pouco e dava tudo. Uma vez houve uns jogos florais em Braga e eu disse-lhe para concorrer. Fez logo um conto e um poema e ganhou nas duas categorias, aí uns 200 contos. E depois queria que eu ficasse com o dinheiro! Então passou a concorrer aos prémios para comprarmos uma casa aos nossos colegas que iam ser ordenados, chegámos a ir ver uma ao Marão... enchia-me de livros, de discos, tinha de me zangar com ele... era assim, vivia tudo muito intensamente." João Pedro - hoje padre, a estudar em Roma - era outra porta sob a qual Daniel passava poemas. E em Julho de 1991, como presente do primeiro passo para o sacerdócio, recebe um pote de barro: "Estava tapado com uma rolha de cortiça, e lá dentro, sobre 20 ou 30 búzios, havia um rolo de máquina de calcular aí com uns 100 metros, manuscrito. Era um poema." Chama-se "O País de Deus", permanece inédito e é, um pouco desdobrado, o que podem ver na capa deste Mil Folhas."A poesia, nele", recorda este amigo, "era a respiração, o veículo, o laço com os amigos. Iniciou-me em Drummond de Andrade, Rosalia de Castro, Álvaro de Campos, o primeiro livro de Eugénio que li foi ele quem mo deu."Fernando Nuno recorda-se de estar a estudar no quarto, com o Daniel a ler poesia em cima da cama: "Era bom aluno, mas não demasiado aplicado. A grande paixão dele era Herberto Helder. E depois Rilke, Hölderlin, Dante. Tinha uma capacidade surpreendente de absorção, era capaz de ler um poema e de o reproduzir imediatamente em voz alta. Um período, resolveu ler os Nobel todos, recitava-me a "Divina Comédia" e, quando lhe ofereci os "Cantos" de Ezra Pound pôs toda a gente a dizê-los." "Foi uma leitura épica", entusiasma-se Joaquim Santos - agora director espiritual no Bom Pastor. "O Daniel tinha sempre projectos fantásticos, queria ler as obras completas de Shakespeare... O Rilke, na tradução do Paulo Quintela, era fundamental para ele, como o Herberto. E depois Luiza Neto Jorge, Eugénio, Ramos Rosa, Sophia, Ruy Belo, Lorca. Foi com ele que conhecemos Drummond, Guimarães Rosa..."Os amigos, sobretudo Joaquim Santos e Fernando Nuno, retribuíam com música. Ouviam, com ele, Arvö Part, Hildegard von Bingen, Meredith Monk, John Tavenor, Keith Jarret, Jan Garbarek, Monteverdi "em doses intensas", "muito Bach". E o círculo de descobertas ia sendo alargado, literalmente, pelo projecto que Daniel animou no seminário, enquanto frequentava Teologia: o Círculo de Leitura(s). Joaquim Santos ainda guarda esses minuciosos papéis coloridos, moldados em triângulos, em esferas, que Daniel compunha, como quem convida a escutar: Rosalia de Castro, Cecília Meireles, Manuel Bandeira, Drummond, ou, numa sessão histórica, Eugénio de Andrade, que nunca tinha posto os pés num seminário.A ida de Eugénio, em Fevereiro de 1991, recorda Fernando Nuno, "foi uma autêntica batalha campal" para Daniel: "Ficou exausto, havia oposições dentro do seminário, isso angustiou-o imenso. Depois correu muito bem, o Eugénio só não entrou na capela, lembro-me que se admirou por jogarmos futebol sem batina..." Eugénio de Andrade resume essa inédita aventura como "uma tarde divertidíssima" em que optou - "hoje já não o faria" - por ler alguns dos seus poemas mais "perturbadores": "Quando o Daniel veio convidar-me, aceitei com a condição de poder falar de tudo o que me passasse pela cabeça. E assim foi. Achei-o simpatiquíssimo, suspeitei que escrevia versos, mas ele não me disse nada. Havia nele uma transparência, um entusiasmo na fala que acabou por me levar, de degrau em degrau, ao seminário."A conquista de Eugénio não foi a única luta que Daniel, na sua vontade do melhor, travou no Seminário da Sé. Fernando Mota, que protagonizava "Crime na Catedral", a peça de T. S. Eliot que Daniel procurou encenar em 1994, fala "de alguma incompreensão" entre os superiores: "Ele empenhou-se imenso naquilo, quis um palco vindo de fora..." Julgava-se que seria emprestado, mas afinal era alugado, e houve uma conta inesperada para pagar. E depois, o grande impulsionador das experiências cénicas de Daniel, Padre Carlos Moreira Azevedo - hoje vice-reitor da Universidade Católica - acabou por voltar 'in extremis' ao seminário (onde fora director espiritual) para finalizar a encenação. O que também terá sido avaliado como pouco ortodoxo. Fernando Nuno sublinha que "o Daniel sofreu imensa pressão, até recriminação, nessa luta por investimentos invulgares".E cada dia somado a cada hora / não completa o tempo. Em 1994, a um ano de se tornar sacerdote, Daniel decide sair do seminário e passa a frequentar a Faculdade de Letras do Porto. Tem concluída a parte curricular de Teologia - a tese, sobre a meditação da Paixão na poesia do frade arrábido Agostinho da Cruz (1540-1619), só viria a ser defendida em 1996 - e a certeza de que não quer ser pároco.Esta desistência não surpreende os mais próximos. Na memória de Joaquim Santos, vinha já desde o primeiro ano do Seminário da Sé a atracção pela vida monástica. Não a escondeu à família. "No segundo ano da Sé", situa a mãe, "disse-me que estava a pensar ir para os beneditinos, que se sentia chamado. Defendia a vida de pobreza, em comunhão. Aconselhei-o a acabar o curso."João Pedro fez o mesmo: "Ele foi a um retiro em Singeverga. Quando voltou, queria logo ser monge. Parecia-me uma radicalidade para a qual ele podia não dar resposta. Mas ele achava-se sem vocação para padre." Fernando Nuno, que saiu do seminário na mesma altura, recorda que "a ideia de ficar responsável por uma comunidade aterrorizava o Daniel". Fernando Mota também o tentou dissuadir: "Não o queríamos perder, tínhamos tanto orgulho nele. Eu achava que a Igreja não tem tanta qualidade que se possa dar ao luxo de desperdiçar uma pessoa assim." Mas mais do que a timidez, ou o receio de não saber liderar uma paróquia, havia essa primeira fulguração da vida no Mosteiro Beneditino de Singeverga. "Quando o Daniel veio em retiro, em 1990", lembra Dom Abade Luís Aranha, "tinha já esse desejo de vida monástica, o gosto do silêncio, da oração, da contemplação, da humildade. O apagamento, uma vida escondida. E a busca de Deus, em comunhão fraterna. Veio muito aqui, nesse ano, depois decidiu continuar o seminário. Mas sempre pensei que ele ia voltar." Carlos Azevedo tem uma carta em verso, datada de 27-12-91, na qual Daniel pede: "Não me deixes ser monge/ e diz a deus que se cale/ diz a deus que não chame/ pede a Deus como eu peço/ que não me roube os amigos/ que seria como roubar/ as flores todas dos montes/ e às crianças as suas cantigas." O que dá ideia da fractura aberta, desde a visita ao mosteiro. E se os anos seguintes foram de acalmia, segundo Carlos Azevedo, quando Daniel sai do seminário já tinha decidido ser monge: "Disse-lhe então: 'Tens que levar muita gente contigo, é bom que faças o curso de letras.' Achava que tinha de haver um espaço antes, em que conhecesse pessoas, se enriquecesse intelectualmente."Daniel aceita a sugestão do seu antigo director espiritual, que o acolhe então na casa da Paróquia do Marquês, no Porto. Para retribuir a hospedagem, dá cataquese e toma conta da portaria da igreja. Aos fins de semana, continua a fazer pastoral em Marco de Canaveses, actividade que já vinha do tempo de Teologia e através da qual conhecera um dos seus maiores amigos, Nuno Higino, o padre também poeta que ousou sonhar a nova igreja do Marco como "uma casa de Siza ou de Sophia". "A igreja estava em construção. E havia um grupo de teatro com jovens, que eu animava. Mas o Daniel tinha muitíssimo mais talento, e começou a ensaiar com eles. Chegava ao sábado à tarde, de comboio, trabalhavam, e depois ficávamos a conversar noite dentro, sobre poesia. Às vezes, punha os jovens todos a ler poemas, incentivava-os a escrever. Tinha uma capacidade inventiva, estava sempre a imaginar coisas inesperadas." A convite de Nuno Higino, viajou Daniel a Nova Iorque e à ilha do Sal, Cabo Verde. "Em Nova Iorque ficou entusiasmado com o formigueiro do metro, das ruas, com os museus, as livrarias e os esquilos em Central Park. No Sal, apanhou um escaldão e ficou como um Cristo." Para a paróquia do Marco, Daniel encenou "As Artimanhas de Scapin" e "Auto da Barca do Inferno". Do laço que o uniu a esse grupo - em Natais, Páscoas, acampamentos nas férias - diz o afecto até às lágrimas de Rosália Monteiro, uma das jovens actrizes. Escutem-na, sem interrupções: "A primeira vez que o vi foi quando ganhou uns jogos florais da paróquia. Subiu ao palco e parecia um anjo, uma pessoa muito leve. Depois, viveu connosco, e no meio da nossa algazarra não precisava de falar alto, toda a gente se calava. Ele tinha uma grandeza humana e espiritual, mostrava-nos sempre o outro lado quando éramos mesquinhos, utilizava muito a palavra 'belíssimo' para pequenas coisas que nós, sem ele, não víamos. Chamávamos-lhe o nosso grande mestre. Rezávamos, íamos ao café, a um bar, às vezes à praia, à noite, e ele parecia alguém frágil com muita gente à volta. Mas a fragilidade dele era uma grandeza para nós. Perante a humildade não há palavras, e ele não falava muito: comunicava muito. Não o vejo numa paróquia a resolver problemas: um dia, levou-nos a Singeverga, e foi aí que o comecei a ver: 'O Daniel vai ser monge.' Mostrou-nos aquilo com uma alegria."No Porto, durante a semana, além das aulas, Daniel ia muito ao cinema - entre os favoritos, Bergman, Tarkovski, Dreyer, ou Lars von Trier, pelo menos "Ondas de Paixão", que viu três vezes - e ao teatro, com Carlos Azevedo.Um dos seus professores favoritos na faculdade era Adriano Carvalho, que dava literatura espanhola. "O Daniel, num entusiasmo, ia ensaiando a pronúncia, pelo corredor lá de casa." Com Arnaldo Saraiva - antes, seu convidado no seminário, para falar de Drummond - estudou, dois anos, literatura brasileira: "Dei-lhe 17, foi a nota mais alta. Era muito discreto nas aulas, nunca mostrava que sabia, e sabia." Vera Vouga, a professora de quem se tornou mais próximo, confirma essa discrição nas aulas de Introdução aos Estudos Literários: "Não sabia que tinha aquele poeta ali. Quando pedi aos alunos que fizessem uma espécie de auto-retrato, o texto dele chamou-me a atenção. Emprestei-lhe a tradução das "Elegias" de Rilke da Assírio, uma outra de Blake, mas ele falava pouco. Só soube do que escrevia muito mais tarde, já ele estava em Singeverga."Desse tempo pré-mosteiro, a "amiga electiva" - como a descreve Fernando Nuno, o único dos companheiros de seminário que a terá conhecido - é uma colega que com ele se cruzava em duas cadeiras e a quem chamaremos apenas Isabel: "A primeira vez que o vi foi em 1995, numa aula de literatura portuguesa. Ele leu um poema de Antero de Quental e eu olhei para trás, a ver quem era. Nunca tinha ouvido nada assim. No fim da aula fui falar com ele. Como morávamos os dois no Marquês, começámos a ir e vir juntos." E Daniel mostrou-lhe o que escrevia: "Era diferente de todos os homens que eu conhecia, do meu namorado, dos meus amigos. Com ele, podia partilhar tudo, e ficava maravilhada a ouvi-lo. Aparecia-me à porta para irmos ao cinema, ofereceu-me um CD da Adriana Calcanhotto, que ele adorava, lia-me poemas das "Flores do Mal", a última página da "Divina Comédia", em italiano, as coisas dele. Eu pensava que ele ia escrever sempre. Quando veio a minha casa anunciar-me que ia para Singeverga, falou com tanta vontade... Fiquei feliz, mas para mim foi terrível pensar que ia ficar sem ele. Falei-lhe na faculdade, ele tinha sido convidado para assistente... Mas não queria nada disso, e eu já sabia, ele tinha-me falado do mosteiro. Costumava dizer-me que há pessoas que estão nesta vida para escolher e outras para serem escolhidas. Ele tinha sido escolhido. Acho que nunca teve dúvidas."O Padre Nuno, capelão do hospital de São João e amigo de Daniel, vê as coisas assim: "A diferença entre monge e padre é a mesma que entre anjo e homem, a maior parte do anjo é por dentro, a maior parte do homem é por fora. O Daniel estava para monge, não para outra coisa. Era uma lâmina impressionante, penetrava o sentido das coisas e não se deixava aprisionar, não criava dependências."E nunca mais acabarás de regressarA 1 de Agosto de 1997, O Padre Mendes - o de Eugénio e Sophia - recebeu um postal de Daniel com um envólucro de papel vegetal em que, na diagonal, estava cem vezes escrito: "Em Outubro entro em Singeverga."Os poemas de "Homens que São Como Lugares Mal Situados" - o mais límpido dos seus livros - surgiram quase sem emendas nesse Verão, em "estado de graça", segundo o próprio Daniel. Tinha acabado de confirmar que seria monge.O Mosteiro de Singeverga, a 15 quilómetros de Santo Tirso, é um edifício dos anos 50 cercado por campos: pomares, videiras, milho, um bosque. Nesta época do ano, sabe bem o fresco e a sombra, quando se entra. Aqui moram 33 monges. Vemos dois, um mais velho - Dom Abade Luís Aranha - e um mais jovem, sorridente - Frei Bernardino. Caminham dentro do hábito negro como se deslizassem. Levam-nos ao Claustro: "O Daniel gostava muito de aqui estar", diz Dom Abade. Frei Bernardino faz o inventário das flores: camélias, rosas, azáleas, e, subindo alta, entre todas, uma magnólia branca, com a copa frente a uma janela do terceiro andar. Será a "magnólia de verdade a todo o redor" do último ciclo de poemas de Daniel, dos mais belos que escreveu? A que não é de Luiza Neto Jorge, não "como a dela uma magnólia pronunciada", mas a que cresce mesmo, "como um livro entre as mãos"? A janela do terceiro andar: sim, é a da cela de Daniel. Lá dentro, asseguram (não nos é permitido ver), está quase tudo como ele deixou: a poesia de Luiza junto à cama (com o cancioneiro de Garcia de Resende, a Regra de São Bento, e manuais de literatura), a poesia de Santa Teresa d'Ávila e de São João da Cruz em cima da mesa (onde foi encontrado o manuscrito de "Dos Líquidos", o terceiro livro da Fundação Manuel Leão, publicado postumamente), as pedras-cristal em caixinhas na estante pequena, os papéis e os livros (uns 300) na estante grande, a roupa no armário. Há ainda - relata Frei Bernardino - um pequeno rádio, em que ele escutava a Antena 2 e a TSF, e todo o material das colagens: papéis variados, cartolinas, cordel, madeiras.Como passava os dias Daniel, fora da oração e da escrita? Resume Dom Abade: "Fazia as limpezas, as vindimas, a oficina, a engarrafar licor, como todos, além das aulas de Regra de São Bento. E começava no restauro e encadernação de livros, até foi a um mosteiro de Barcelona ver como faziam." Além disso - acontecimento em Singeverga - montou um teatro. Nove monges numa peça de Reis (5.1.99) com textos de Sophia e dele próprio. Participação especial de Dom Abade: "Pôs-nos todos a trabalhar. Escreveu, ensaiou, encenou. Era um rapaz muito exigente nas suas responsabilidades, de uma profundidade, um querer saber, uma inteligência rara. Dizia que estava no lugar certo. E nós também achávamos."Cá fora, todos também achavam. A mãe: "A gente ia lá, e ele sempre com aquela paz, com aquela felicidade." Nuno Higino: "Tinha encontrado um lugar bem situado." Fernando Mota: "Terminava onde sempre esteve."Fernando Nuno ressalva que "era uma comunidade envelhecida com padres a mais e monges a menos" e que "a princípio ele teve algum receio de perda de um certo ideal monástico de contemplação e recolhimento." Mas depois, "já se sentia feliz, confiante, e menos ansioso com a sua própria escrita." Carlos Azevedo acredita que se Daniel continuasse vivo "ia dar um novo alento ao Mosteiro, levar gente nova." Isto, porque os dois monges mais jovens são os que já conhecemos, com 26 anos, Frei Bernardino, e logo a seguir, com 50 anos, Dom Abade. A média de idades rondará os 65 anos.No fim do primeiro Inverno em Singeverga - como ainda estava a acabar letras, durante a semana dormia no Mosteiro de São Bento da Victoria, no Porto - dá-se o episódio que levou à edição dos dois primeiros livros comercializados no mercado, "Explicação das Árvores e Outros Animais" e "Homens Que São Como Lugares Mal Situados": perde uma disquete com os dois textos e assusta-se com a ideia de alguém os publicar primeiro."Perguntou-me o que havia de fazer", lembra Carlos Azevedo, a cuja família pertence a Fundação Manuel Leão, "discutimos várias editoras, tinha de ser rápido, e ninguém o conhecia. Por isso, propus-lhe fundar uma colecção de poesia." Assim foi. Reproduziram-se as colagens de "Oxálida" e "A Casa dos Ceifeiros" para oferecer no bolso da contracapa de cada volume, Daniel escolheu o corpo de letra - "muito pequeno, para os versos compridos não partirem" -, e à beira do Verão de 1998 os livros estavam cá fora. Sendo logo dois, de um estreante, numa editora desconhecida, tiveram pouco eco imediato, mas foram passando de mão em mão.E, com permissão de Dom Abade, Daniel correspondeu a alguns convites para falar do que era e escrevia. Assim, foi à Fundação Eugénio de Andrade ou à Associação de Jornalistas e Homens de Letras do Porto - a pedido da qual escreveu um auto-retrato invulgar, no Outono antes de morrer.A morte aproximou-se na madrugada de um dia que para os católicos é o do Corpo de Deus, 3 de Junho, tinha Daniel 28 anos. Segundo o relato de Dom Abade: "Ele levantou-se à uma da manhã para ir à casa de banho. Estava uma grande chuvada, a janela estava aberta, a porta bateu, apanhou-lhe um dedo, ele caiu e bateu com a parte de trás da cabeça. Chamou um colega, que lhe limpou o sangue, e foi-se deitar. Às quatro da manhã telefonou-me para o quarto a dizer que não se sentia bem. Fomos logo para o hospital de Santo Tirso, de onde o mandaram para o São João do Porto. Fizeram-lhe uma TAC, que acusou traumatismo craniano. À cautela, internaram-no em observação. Vim-me embora tranquilo. Às sete da tarde telefonam-me a dizer que tinha entrado em coma.""Foi uma das experiências mais dolorosas da minha vida", recorda o Padre Nuno, capelão do hospital, "desde que o Daniel me entrou por ali que eu não estava tranquilo, fui-o visitando durante a tarde. E quando vou, mais uma vez, vi aquele reboliço. Ele tinha acabado de entrar em coma, e estavam a descer com ele para uma nova TAC. Dei-lhe a extrema-unção a correr, corredor fora. E depois foi uma espera terrível, durante a cirurgia." Demorou seis horas, a operação, sem que os médicos conseguissem estancar a hemorragia que entretanto avançara. Segundo Celeste Dias, a médica responsável pela unidade de cuidados intensivos, a segunda TAC revelou um edema, um coágulo de sangue no cérebro. A cirurgia seria para o retirar, mas o nível de plaquetas estava tão baixo - "nunca soubemos se por um problema que o Daniel já tivesse, ou se devido ao próprio traumatismo craniano" - que se formava sempre um novo coágulo. Ainda houve segunda intervenção, o coma manteve-se, e, ao fim de seis dias, a 9 de Junho, foi decretada a morte cerebral.O que agora parece unir os que amavam Daniel é a estranha paz que se sobrepôs à primeira, violenta dor. Padre Nuno: "Senti uma angústia, mas também uma pacificação. Porque ele morreu perfeitamente cumprido." Padre João Pedro: "Passadas três semanas, fui com o Padre Nuno ao Mosteiro de Ossera, na Galiza, buscar um poema que ele fizera para um frade de quem ficara amigo, no ano anterior [ver reprodução nesta página]. Quando lhe contámos da morte do Daniel, disse: 'Tinha de ser. Estava maduro.' Via-o como um anjo. É um pouco essa imagem que guardo: não uma perda irreparável, mas uma presença, mesmo física, aquilo a que nós chamamos a comunhão dos santos." Rosália Monteiro: "A morte sempre viveu com ele, nunca esteve longe, como está de nós. Acredito que o Daniel se entristece e alegra connosco, que está aqui."Isabel: "Não o vejo como um anjo, mas como um homem com uma missão, que cumpriu."Quem leia a sua poesia, há-de parar muito, pensando que ele pressentia a morte como quem espera uma libertação. Parar em versos como: "Pensa que morrerás/ No chão/ À tua porta/ E nunca mais acabarás/ De regressar".Fernando Nuno conta que ele pedia "ajuda-me a viver", ou "faz-me durar", "como se nós, os amigos, o salvássemos, fôssemos o rosto através do qual ele via a transparência". De volta à primeira casa, sabendo que o seu dia de nascimento foi Sábado Santo, talvez se leia de forma mais clara o que, meses antes de morrer, escreveu no auto-retrato já aqui referido: "É um rosto com os olhos, os lábios, o pensamento, todo o retrato à procura do silêncio ressuscitado, como Sábado Santo esperando em seu coração, em sua garganta, em suas mãos, em cada sopro do barro, o canto novo (...). Eu já sabia que o lugar era a pedra, mas só depois fiz da pedra o meu lugar. Encontrei como entrar nela pelo seu lado aberto, descansar em sua pulsação até não ser mais ninguém. A completa presença na única presença, para ser, à sua semelhança, tudo em todos."No lugar da pedra estão os livros.(São devidos agradecimentos às 18 pessoas entrevistadas neste percurso. Mas, em particular a Nuno Higino, Manuel Mendes e Vera Vouga. A Rosa e Isabel. Por último, agradeço a José Tolentino Mendonça, que num claro dia de Junho me falou na poesia do Daniel. A citação de Sophia, no início é de "Legenda Para Uma Casa Habitada", álbum de homenagem a Daniel Faria, editado pela Paróquia de Marco de Canaveses.)"




2020

Admiro os seres que têm capacidade de procurar beleza.
São raros. Tão raros....
O que os move?
A procura do divino?

Tarde Vos amei,
ó Beleza tão antiga e tão nova,
tarde Vos amei!
Eis que habitáveis dentro de mim,
e eu, lá fora, a procurar-Vos!

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