Não é neccessário vivermos ao lado de alguém para nos sentirmos ligados a esse alguém mais do que a qualquer outra pessoa...

segunda-feira, 20 de maio de 2019

Rituais...Rezas...

"Tenho vergonha dos rituais..."

Fiquei contente, porque existo. Saí de casa para um grande fim, que era, afinal, chegar a horas ao escritório. Mas, neste dia, a própria compulsão da vida participava daquela outra boa compulsão que faz o sol vir nas horas do almanaque, conforme a latitude e a longitude dos lugares da terra. Senti-me feliz por não poder sentir-me infeliz. Desci a rua descansadamente, cheio de certeza, porque, enfim, o escritório conhecido, a gente conhecida nele, eram certezas. Não admira que me sentisse livre, sem saber de quê. Nos cestos poisados à beira dos passeios da Rua da Prata as bananas de vender, sob o sol, eram de um amarelo grande.Contento-me, afinal, com muito pouco: o ter cessado a chuva, o haver um sol bom neste Sul feliz, bananas mais amarelas por terem nódoas negras, a gente que as vende porque fala, os passeios da Rua da Prata(...)
Esta hora poderia eu bem solenizá-la comprando bananas, pois me parece que nestas se projectou todo o sol do dia como um holofote sem máquina. Mas tenho vergonha dos rituais, dos símbolos, de comprar coisas na rua. Podiam não me embrulhar bem as bananas, não mas vender como devem ser vendidas por eu as não saber comprar como devem ser compradas. Podiam estranhar a minha voz ao perguntar o preço. Mais vale escrever do que ousar viver, ainda que viver não seja mais que comprar bananas ao sol, enquanto o sol dura e há bananas que vender.
Mais tarde, talvez... Sim, mais tarde... Um outro, talvez... Não sei...




"A maneira como o livro está escrito (e traduzido) faz-nos perceber por que razão ganhou o Nobel. Eu notava que a leitura exigia mais de mim. Não era uma leitura tão leve e despreocupada e por vezes sem muita concentração que às vezes outros livros exigem. Relativamente à personagem principal, achei que acabaria por ter muito mais empatia com ela. Não concordo nem me revejo no modo como ela vivia a vida e a profissão. Há até uma situação com o pai que eu fiquei surpreendida com a atitude dele. Não gostei muito do livro. Confesso que não desisti da sua leitura porque acho que devemos experimentar leituras diferentes e experimentar «Nobeis» é uma boa ideia! Além disso, tinha o «compromisso» com o Clube de Leitura e isso eu queria honrar, digamos assim. Mas, senti que a leitura foi um pouco como um «comprimido preso na garganta» e tive que ser muito disciplinado para ter a certeza que conseguiria ler o livro todo antes do dia do Clube. Concluindo: é uma experiência que quero repetir - ler livros que não sejam escolhidos por mim. Abrir horizontes. Descobrir outros autores e outros estilos literários. E quem sabe descobrir que aquele autor que , se calhar não achava que ia gostar, gosto. Ou autores aos quais eu não dava atenção, começo a dar e de outra maneira isso podia não acontecer. Anyway, (quase) tudo é desculpa para ler!"- Opinião de Sara Rodrigues, uma candidata a leitora...


Mil grous ou Chá e amor, é uma narrativa que concilia a intensidade afetiva com uma serenidade / espiritualidade de uma beleza pacificadora... o ritual do chá, o aroma das flores e a simbologia mágica de peças de cerâmica transportam-nos para um mundo tão irreal que, quando um telefone toca, tal referência nos parece completamente anacrónica, apesar de a ação se passar no século XX, após a Segunda Guerra Mundial. O autor recupera valores tradicionais numa sociedade em transformação. Vale mesmo a pena ler : pela beleza do texto e pela capacidade de ser e sentir com delicadeza e elevação.


Viu o sol da tarde como nunca o tinha visto depois da noite com a senhora Ota. O sol da tarde através da janela do comboio(...) O sol vermelho que parecia escorrer pelos ramos. As árvores recortadas em silhuetas quase pretas. O sol que escorria por cima dos ramos afundou-se-lhe nos olhos cansados, e ele fechou-os. Os grous brancos do lenço de Yukiko atravessaram a voar o sol da tarde, que continuava nos olhos dele.

Kikuji ajoelhou-se para queimar incenso diante da urna. Entrelaçou as mãos e fechou os olhos.
Estava a pedir perdão. Mas o amor insinuou-se no pedido, embalando e apaziguando a culpa.(...) E apesar de sentir o toque dela, a sensação era mais auditiva , musical, do que táctil.


Ajoelhou-se diante da jarra Shino e examinou-a apreciativamente, como se deve olhar para os vasos de chá. Um vermelho muito ligeiro parecia evolar-se do vidrado branco. Estendeu a mão e tocou a superfície voluptuosa, calidamente fresca, « Suave como um sonho. Mesmo quem sabe tão pouco como eu, pode apreciar uma boa peça Shino. Como o sonho de uma mulher» , pensara, mas suprimiu as últimas palavras.



É fácil para mim perder-me num passado meio real meio imaginário, sempre que fecho os olhos ao presente...A sombra inspira-me confiança, ao passo que a luz crua da realidade gera a dúvida e a apreensão.

Não havia o direito de brincar com a vida das pessoas. (…) Jean de Gué procedera mal. Fugira da sua vida quotidiana, esquivara-se aos sentimentos que ele próprio havia provocado. Sem a sua ação sobre eles, nenhum desses membros da família teria agido como agira, nessa noite. (…) Jean de Gué fracassara. Ainda era mais falhado do que eu (…). Compreendi que ele não regressaria mais. (…) Podia fazer o que quisesse, sair daquela casa ou ficar.

Nenhum espião em serviço neste país dispunha de tão perfeito disfarce, de tão bela oportunidade para experimentar a fraqueza dos outros – se tal fosse o seu propósito. Qual era o meu? Ontem, conciliar. Hoje, divertir-me. E não havia razão para que os dois se mostrassem incompatíveis

- Quero que sejam felizes (…). Não a felicidade como De Gué a concebe, mas a que está encerrada dentro deles e que eu descobri. (…) Ele é um demónio.
- Nesse ponto enganas-te. (…) Não é um demónio. É um homem como os outros, como tu. (…) Se fosse um demónio, (…) há muito que o teria deixado
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Rezas porque outros rezaram,
E vestes à moda alheia...
Quando amares vê se amas
Sem teres o amor na ideia.


De suave e aérea a hora era uma ara onde orar. Por certo que no horóscopo do nosso encontro benéficos conjuntos culminavam. Tal, tão sedosa e tão subtil, a matéria incerta de sonho visto que se intrometia na nossa consciência de sentir. Cessara por completo, como um verão qualquer, a nossa noção ácida de que não vale a pena viver. Renascia aquela primavera que, embora por erro, podíamos pensar que houvéssemos tido. No desprestígio das nossas semelhanças os tanques lamentavam-se da mesma maneira, entre árvores, e as rosas nos canteiros descobertos, e a melodia indefinida de viver — tudo irresponsavelmente.

Não vale a pena pressentir nem conhecer. Todo o futuro é uma névoa que nos cerca e amanhã sabe a hoje quando se entrevê. Meus destinos os palhaços que a caravana abandonou, e isto sem melhor luar que o luar nas estradas, nem outros estremecimentos nas folhas que a brisa, e a incerteza da hora e o nosso julgar ali estremecimentos. Púrpuras distantes, sombras fugidias, o sonho sempre incompleto e não crendo que a morte o complete, raios de sol mortiço, a lâmpada da casa na encosta, a noite angustiosa, o perfume a morte entre livros só, com a vida lá fora, árvores cheirando a verdes na imensa noite mais estrelada do outro lado do monte. Assim, as tuas agruras tiveram o seu consórcio benigno; as tuas poucas palavras sagraram de régio o embarque, não voltaram nunca naus nenhumas, nem as verdadeiras, e o fumo de viver despiu os contornos de tudo deixando só as sombras, e os engastes, mágoas das águas nos lagos aziagos entre buxos por portões (a vista de longe) Watteau, a angústia, e nunca mais. Milénios, só os de vires, mas a estrada não tem curva, e por isso nunca poderás chegar. Taças só para as cicutas inevitáveis — não as tuas, mas a vida de todos, e mesmo os lampiões, os recessos, as asas vagas, ouvidas só, e com o pensamento, na noite inquieta, sufocada, que minuto a minuto se ergue de si e avança pela sua angústia fora. Amarelo, verde-negro, azul-amor — tudo morto, minha alma, tudo morto, e todos os navios aquele navio sem partir! Reza por mim, e Deus talvez exista por ser por mim que rezas. Baixinho, a fonte longe, a vida incerta, o fumo acabando no casal onde anoitece, a memória turva, o rio afastado... Dá-me que eu durma, dá-me que eu me esqueça, senhora dos Desígnios Incertos, Mãe das Carícias e das Bênçãos inconciliáveis com existirem...


Rezas a Deus ao deitar-te
Pedindo não sei o quê.
Se rezasses ao demónio,
Eu saberia o que é.




A bejeca deixou uma fímbria de branco poroso a ferver no lábio de Abreu. O ar de desdém, basófio e curto, derivava agora, nasalado, pela fresta da comissura: – Alguém mandou olhar? Dois velhos pasmados a uma mesa de canto, queixos pendidos sobre as chávenas de café. Não era o da boina de xadrez, de beiço torto. Era o de bochechas lassas, e olhos aguados, como um buldogue. Abreu ia explicar tudo, mas dava muito trabalho e desistiu. Mordiscou um tremoço, rilhou-o com os molares, em jeito de enjoo, e removeu a vista para o estaladiço do tecto, precisado de pintura. E sempre a dar-lhe, num sussurro bocejado: – Não sabia que o gajo vinha aqui. Tinha ouvido dizer – «quanto vale a aposta?» – que naquela cervejaria de madeirames polidos aviavam torresmos com a imperial. Mas nem pevides davam e os tremoços eram à parte.




I can hardly see in front of me
I can hardly see in front of me
At last I am free...

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