Tinha-nos parecido filosoficamente evidente que o suicídio era um direito de todas as pessoas livres: um ato lógico , quando confrontadas com uma doença terminal ou com a senilidade; heroico quando confrontadas com a tortura ou as mortes evitáveis de outros; fascinante na fúria do amor desiludido.
Vivemos com suposições fáceis,não vivemos? Por exemplo,de que a memória é igual aos acontecimentos mais o tempo. Mas tudo é muito mais acidental do que isso.
Aproximamo-nos do fim da vida - não, não da vida em si, mas de outra coisa: o fim de qualquer possibilidade de mudança dessa vida.
Meu querido Sá-Carneiro:
Acrescente-se-lhe o grande sofrimento que você — sem querer, é claro — me causou com a sua terrível crise. Não sei se você avalia bem até que ponto eu sou seu amigo, a que grau eu lhe sou dedicado e afeiçoado. O facto é que a sua grande crise foi uma grande crise minha, e eu sentia, como já lhe disse não só pelas suas cartas, como, já de antes, telegraficamente, pela «projecção astral» (como eles dizem) do seu sofrimento. Acrescente a estas duas graves razões para eu me apoquentar esta outra — que, à parte tudo aquilo, estou atravessando agora uma das minhas graves crises mentais. E imagine você que, para isto não ser tudo, essa crise mental é de várias espécies ao mesmo tempo, e por diversas razões.
Meu querido Amigo.
A menos de um milagre na próxima segunda-feira, 3 (ou mesmo na véspera), o seu Mário de Sá-Carneiro tomará uma forte dose de estricnina e desaparecerá deste mundo. É assim tal e qual – mas custa-me tanto a escrever esta carta pelo ridículo que sempre encontrei nas «cartas de despedida»... Não vale a pena lastimar-me, meu querido Fernando: afinal tenho o que quero: o que tanto sempre quis – e eu, em verdade, já não fazia nada por aqui... Já dera o que tinha a dar. Eu não me mato por coisa nenhuma: eu mato-me porque me coloquei pelas circunstâncias – ou melhor: fui colocado por elas, numa áurea temeridade – numa situação para a qual, a meus olhos, não há outra saída. Antes assim. É a única maneira de fazer o que devo fazer. Vivo há quinze dias uma vida como sempre sonhei: tive tudo durante eles: realizada a parte sexual, enfim, da minha obra – vivido o histerismo do seu ópio, as luas zebradas, os mosqueiros roxos da sua Ilusão. Podia ser feliz mais tempo, tudo me corre, psicologicamente, às mil maravilhas, mas não tenho dinheiro. [...]
O que é um fim?
1.O que termina;cessação;morte;desaparecimento;termo...
2.Objetivo para o qual se tende; intenção;finalidade...
O fim cessação conflitua com o fim objetivo; se existe fim objetivo, não há motivo para existir fim cessação. Não será? Tudo tem, afinal, um fim, mas que fim, qual deles?
Escravo do temperamento como das circunstâncias, insultado pela indiferença dos homens como pela sua afeição a quem supõem que sou — (…) os insultos humanos do Destino.
Não compreendera ainda até que ponto os dias podiam ser ao mesmo tempo curtos e longos.Longos para viver, sem dúvida, mas de tal modo distendidos que acabavam por se sobrepor uns aos outros e perder o nome. As palavras ontem e amanhã eram as únicas que conservavam o sentido.
Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei. Depois de amanhã... Só depois de amanhã...Tenho sono como o frio de um cão vadio. Tenho muito sono. Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã... Sim, talvez só depois de amanhã...
Meu querido Sá-Carneiro:
Acrescente-se-lhe o grande sofrimento que você — sem querer, é claro — me causou com a sua terrível crise. Não sei se você avalia bem até que ponto eu sou seu amigo, a que grau eu lhe sou dedicado e afeiçoado. O facto é que a sua grande crise foi uma grande crise minha, e eu sentia, como já lhe disse não só pelas suas cartas, como, já de antes, telegraficamente, pela «projecção astral» (como eles dizem) do seu sofrimento. Acrescente a estas duas graves razões para eu me apoquentar esta outra — que, à parte tudo aquilo, estou atravessando agora uma das minhas graves crises mentais. E imagine você que, para isto não ser tudo, essa crise mental é de várias espécies ao mesmo tempo, e por diversas razões.
Meu querido Amigo.
A menos de um milagre na próxima segunda-feira, 3 (ou mesmo na véspera), o seu Mário de Sá-Carneiro tomará uma forte dose de estricnina e desaparecerá deste mundo. É assim tal e qual – mas custa-me tanto a escrever esta carta pelo ridículo que sempre encontrei nas «cartas de despedida»... Não vale a pena lastimar-me, meu querido Fernando: afinal tenho o que quero: o que tanto sempre quis – e eu, em verdade, já não fazia nada por aqui... Já dera o que tinha a dar. Eu não me mato por coisa nenhuma: eu mato-me porque me coloquei pelas circunstâncias – ou melhor: fui colocado por elas, numa áurea temeridade – numa situação para a qual, a meus olhos, não há outra saída. Antes assim. É a única maneira de fazer o que devo fazer. Vivo há quinze dias uma vida como sempre sonhei: tive tudo durante eles: realizada a parte sexual, enfim, da minha obra – vivido o histerismo do seu ópio, as luas zebradas, os mosqueiros roxos da sua Ilusão. Podia ser feliz mais tempo, tudo me corre, psicologicamente, às mil maravilhas, mas não tenho dinheiro. [...]
O que é um fim?
1.O que termina;cessação;morte;desaparecimento;termo...
2.Objetivo para o qual se tende; intenção;finalidade...
O fim cessação conflitua com o fim objetivo; se existe fim objetivo, não há motivo para existir fim cessação. Não será? Tudo tem, afinal, um fim, mas que fim, qual deles?
Escravo do temperamento como das circunstâncias, insultado pela indiferença dos homens como pela sua afeição a quem supõem que sou — (…) os insultos humanos do Destino.
Não compreendera ainda até que ponto os dias podiam ser ao mesmo tempo curtos e longos.Longos para viver, sem dúvida, mas de tal modo distendidos que acabavam por se sobrepor uns aos outros e perder o nome. As palavras ontem e amanhã eram as únicas que conservavam o sentido.
Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei. Depois de amanhã... Só depois de amanhã...Tenho sono como o frio de um cão vadio. Tenho muito sono. Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã... Sim, talvez só depois de amanhã...
Depois de amanhã parece-me uma boa decisão. Depois de amanhã ... Depois de amanhã, posso adiar o fim para depois de amanhã e o desaparecimento será sempre só depois de amanhã; o fim de tudo eternamente adiado para depois de amanhã...Sempre depois de amanhã. Não gosto de ontem, não gosto de hoje, não gosto de amanhã, só depois de amanhã...
A primeira noção clara que tive deste meu terrível desinteresse por mim mesmo e por o que antigamente considerara mais meu, foi quando um dia, estando longe de casa, ouvi um rebate de fogo que me pareceu na freguesia. Ocorreu-me que fosse em minha casa, onde, aliás, não fora. E, ao passo que, antigamente, um pavor de se poderem perder meus manuscritos me haveria tomado toda a alma, notei, com pasmo duplo, que a possibilidade de o fogo ser em minha casa me deixara indiferente, quase feliz na ideia de que, destruídos esses manuscritos, se me simplificaria a vida. Antigamente, a perda dos meus manuscritos, de toda a obra fragmentária mas cuidada da minha vida, reduzir-me-ia à loucura; já agora a contemplava como um incidente casual do meu destino, não como um golpe mortal que aniquilasse, por lhe aniquilar as manifestações, a minha própria personalidade.
Comecei então a compreender como por fim cansa de tudo o esforço contínuo da perfeição inatingível, e compreendi os grandes místicos e os grandes ascetas, que reconhecem na alma a futilidade da vida. Que iria de mim naqueles papéis escritos? Antes, eu diria «tudo»; hoje diria, ou «nada», ou «pouco», ou «uma coisa estranha».Tornara-me objectivo para mim mesmo. Mas não podia distinguir se com isso me achara ou me perdera
Aguardo, equânime, o que não conheço —
Meu futuro e o de tudo.
No fim tudo será silêncio, salvo
Onde o mar banhar nada.
Como se esta grande cólera me tivesse limpo do mal, esvaziado da esperança, diante de uma noite carregada de sinais e de estrelas, eu abria-me pela primeira vez à terna indiferença do Mundo. Por o sentir tão parecido comigo , tão fraternar, senti que fora feliz e que ainda o era. Para que tudo ficasse consumado, para que se sentisse menos só, faltava-me desejar que houvesse muito público no dia da minha execução e que os espectadores me recebessem com gritos de ódio.
Time moves slow When you're all alone And the time moves slow When you're out on your own And the time moves slow When you're missing a friend And the time moves slow When you came to the end...
This is the end Beautiful friend This is the end My only friend, the end Of our elaborate plans, the end Of everything that stands, the end No safety or surprise, the end I'll never look into your eyes... again...
Fim
Meteu o revólver na boca e estremeceu ao senti-lo frio contra o céu da boca. Mas lembrou-se, não sem prazer [...], que assim se tinha suicidado Antero de Quental. Tirou o revólver e manteve-o na mão, descaída esta sobre a colcha, ao longo da perna.
Passaram assim por ele instantes sem tempo, de vida oca e neutra. Acordado para si, reparou de repente que o sol cessara, que tudo era cor de cinza, remoto, alheio, sem paladar para a vista.
Veio-lhe pela alma dentro o sentimento da inevitabilidade, da necessidade da
morte. Era como se ela estivesse chegando, [...] numa hora, como um comboio,
e ele simplesmente à espera. Uma última coisa qualquer caira-lhe da alma - já nem era lúcido. Parára-lhe o saber-se (...)Tornou a meter o revólver na boca. D'esta vez sentiu o frio do cano d'encontro o palato como quem sente uma coisa que não é nada, um pouco da cara d'encontro à mão. A apatia era absoluta. Tornara-se outro. Era a morte já.
Faltava o gesto último. Custou-lhe por ser simplesmente um gesto.
Tudo isto passou n’um minuto cheio de cinza de vida. Pouco a pouco ela foi morrendo em si.
Com o último ver dos olhos semicerrados viu só em torno a si uma bruma de vida…
Tudo era indeciso e sem fim.
Fechou os olhos e puxou o gatilho…
Queria ser uma pedra, não aspiro a mais, quero Ser uma coisa que não possa ter vergonha nem desespero, Fui rei nos meus sonhos, mas nem sonhos houve, além de mim E a última palavra que se escreve nos livros é a palavra Fim
A morte é a curva da estrada, Morrer é só não ser visto. ...A nossa morte é um assunto que interessa mais aos vivos do que a nós próprios...Enquanto nós existimos, não há espaço para a morte, quando a morte chega, deixa de haver espaço para nós. Entre nós e a morte não há nenhuma relação real. A morte não teria nada a ver connosco...o que também explicaria a total serenidade e indiferença, irresponsabilidade e inocência egoísta com que todos os seres a encaram.
A desilusão é só mais um passo Há que saber perder Ceder o espaço Se a desilusão é tudo o que penso Há que saber lembrar O que mereço O que mereço ...A mentira não chega ao fim A mentira não chega ao fim Olha-me mas não de frente Olha-me e a toda a gente A mentira não chega ao fim Quem me dera nunca ter sido senão o menino que fui...
Meu sono bom porque tinha simplesmente sono e não ideias que esquecer!
Meu horizonte de quintal e praia!
Meu fim antes do princípio!
Estou cansado da inteligência. Passaram assim por ele instantes sem tempo, de vida oca e neutra. Acordado para si, reparou de repente que o sol cessara, que tudo era cor de cinza, remoto, alheio, sem paladar para a vista. Veio-lhe pela alma dentro o sentimento da inevitabilidade, da necessidade da morte. Era como se ela estivesse chegando, [...] numa hora, como um comboio, e ele simplesmente à espera. Uma última coisa qualquer caira-lhe da alma - já nem era lúcido. Parára-lhe o saber-se (...)Tornou a meter o revólver na boca. D'esta vez sentiu o frio do cano d'encontro o palato como quem sente uma coisa que não é nada, um pouco da cara d'encontro à mão. A apatia era absoluta. Tornara-se outro. Era a morte já. Faltava o gesto último. Custou-lhe por ser simplesmente um gesto. Tudo isto passou n’um minuto cheio de cinza de vida. Pouco a pouco ela foi morrendo em si. Com o último ver dos olhos semicerrados viu só em torno a si uma bruma de vida… Tudo era indeciso e sem fim.Fechou os olhos e puxou o gatilho Há quanto tempo me fecho
À chave dentro de mim.
E é porque já não me queixo
Que as queixas não têm fim.
Sem dúvida teve um fim a minha personalidade. Sem dúvida porque se exprimiu, quis dizer qualquer coisa Mas hoje, olhando para trás, só uma ânsia me fica — Não ter tido a tua calma superior a ti-próprio, A tua libertação constelada de Noite Infinita. Não tive talvez missão alguma na terra...
Aguardo, equânime, o que não conheço —
Meu futuro e o de tudo.
No fim tudo será silêncio, salvo
Onde o mar banhar nada.
A arte suprema tem por fim libertar — erguer a alma acima de tudo quanto é estreito, acima dos instintos, das preocupações morais ou imorais. A arte nada tem com a moral, quanto ao fim; tem, quanto ao conteúdo. Toda a arte deve dar prazer — o tipo de prazer é que varia. A arte inferior dá prazer porque distrai, liberdade porque liberta das preocupações da vida; a arte superior menor dá prazer porque alegra, liberdade porque liberta da imperfeição da vida; a arte superior dá prazer porque liberta, liberdade porque liberta da própria vida.
A lâmpada nova
No fim de apagar
Volta a dar a prova
De estar a brilhar.
Assim a alma sua
Deveras desperta
Quando a noite é nua
E se acha deserta.
Vestígio que ergueu
Sem ser no lugar
De onde se perdeu...
Nasce devagar
Amei-te e por te amar Só a ti eu não via... Eras o céu e o mar, Eras a noite e o dia... Só quando te perdi É que eu te conheci...(...)Meu sentir meu anseio Meu jeito de pensar... Eras minha alma, fora Do Lugar e da Hora... Hoje eu busco-te e choro Por te poder achar Não sequer te memoro Como te tive a amar...Nem foste um sonho meu... Porque te choro eu? Não sei... Perdi-te, e és hoje Real no [...] real... Como a hora que foge, Foges e tudo é igual A si-próprio e é tão triste O que vejo que existe. E hoje pergunto em mim Quem foi que amei, toquei Com quem perdi o fim Aos sonhos que sonhei… Procuro-te e nem vejo O meu próprio desejo… Que foi real em nós? Que houve em nós de sonho?[...] Tu e eu lado a lado... Isto... e isto acabado... Como houve em nós amor E deixou de o haver? Amámo-nos deveras? Amamo-nos ainda? [...] Hoje que te deixei É que sei que te amei...Somos a nossa bruma…[...]
Quem me dera nunca ter sido senão o menino que fui...
Meu sono bom porque tinha simplesmente sono e não ideias que esquecer!
Meu horizonte de quintal e praia!
Meu fim antes do princípio!
Estou cansado da inteligência.
Se ao menos com ela se percebesse qualquer coisa!
Mas só percebo um cansaço no fundo, como baixam internas
Aquelas coisas que o vinho tem e amodorram o vinho.
Before I disappear Whisper in my ear Give me something to echo In my unknown futures ear My dear The end Comes near I'm here But not much longer My dear The end Comes near I'm here But not much longe...
Quando um homem morre, ele se reintegra em sua respeitabilidade a mais autêntica, mesmo tendo cometidos loucuras em vida. A morte apaga, com sua mão de ausência, as manchas do passado e a memória do morto fulge como diamante... Quincas, ao morrer, voltara a ser aquele antigo e respeitável Joaquim Soares da Cunha, de boa família, exemplar funcionário da Mesa de Rendas Estadual, de passo medido, barba escanhoada, paletó negro de alpaca, pasta sobre o braço, ouvido com respeito pelos vizinhos, opinando sobre o tempo e a política, jamais visto nem botequim, de cachaça caseira e comedida.
Há leitores que consideram este retrato de quincas, antes de ser livre, um primor. É entediante: são palavras que não acrescentam nada à imagem que, de imediato , se constrói, assim que se lê nome e apelidos, precedidos de "antigo e respeitável"... As apreciadíssimas descrições minuciosamente realistas são exasperantes e só necessárias para leitores incapazes: palavras, sobre palavras...
Eis uma verdade sacrílega que, em público, não pode ser revelada: eça, jorge amado, garcia marquez e quejandos são escritores menores porque dizem, dizem, explorando o fácil, o imediato e o mais do que óbvio...Gastam palavras com minudências evidentes, estatelando nos seus romances uma pretensa realidade real...
Pátroclo é um herói sem vida própria: uma mera projeção de aquiles, uma eterna personagem secundária... Aquiles era filho de uma deusa e é mais fácil ser-se herói quando se é divino. Pátroclo era herói apenas pela sua virtude, pela pureza da sua aretê....Quem amou, além de aquiles? Que tipo de amor? Filial? Fraterno? Romântico? Sexual? Terá sido amado por aquiles? Pátrocolo só tem princípio e fim...
Aquiles amou-o também distraidamente — ama-se sempre o nosso duplo. Mas, só quando pátroclo morre, aquiles chora , dolorosa e convulsivamente. Lágrimas que pátroclo já não sentiria, lágrimas que lhe poderiam ter permitido morrer com a ilusão de ser amado, mas o destino não lhe concedeu, sequer, um fugaz momento de volúpia, antes da libertação definitiva da sua alma. Pátroclo foi morto porque heitor o confundiu com aquiles. Será que este equívoco o elogiou? O facto é que a trágica morte de pátroclo vai desencadear um impiedoso desfile de mortes...
Se aquiles e pátroclo repartiram, intimamente, o leito, nunca se saberá. Muitos, entre os quais Sócrates, acreditaram que não; tantos outros asseveraram que sim. É-Me, pessoalmente, indiferente a resposta. Uma certeza tenho como indesmentível: aquiles chora de raiva, aquiles não suporta a afronta de destruirem pátroclo; aquiles sentiu-se humilhado; aquiles não chorou por amor...
- Nobre filho de Peleu, é triste e desoladora a notícia que te trago! Pátroclo foi morto em combate...Ao ouvir tais palavras, Aquiles atirou-se ao chão e arrancou os cabelos em desespero. Abundantes lágrimas inundavam-lhe as faces e não cessava de suspirar e lamentar-se profundamente...
Por amor a aquiles, também a escrava briseida chora, embora silenciosamente, o fim de pátroclo: a dignidade obriga-a a ocultar o que sente... O sofrimento de quem não tem , sequer, o direito de chorar é , talvez, o mais intenso...
Antínoo estava morto... Se pensou proteger-me com aquele sacrifício, deve ter-se julgado bem pouco amado para não sentir que o pior dos males seria perdê-lo...Resisti ;lutei contra a dor como contra uma gangrena.A morte é horrenda, mas a vida também.
Contemplemos juntos, um instante ainda, as praias familiares, os objectos que certamente nunca mais veremos...Procuremos entrar na morte de olhos abertos...
Era em Adriano fria a chuva fora. Jaz morto o jovem No raso leito, e sobre o seu desnudo todo, Aos olhos rasos de Adriano, cuja dor é medo, A umbrosa luz do eclipse-morte era difusa. Jaz morto o jovem, e o dia semelhava noite Lá fora. A chuva cai como um exausto alarme Da Natureza em acto de matá-lo. Memória de que el' foi não dava já deleite, Deleite no que el' foi era morto e indistinto. Ó mãos que já apertaram as de Adriano quentes, Cuja frieza agora as sente frias! Ó cabelo antes preso p'lo penteado justo! Ó olhos algo inquietantemente ousados! Ó simples macho corpo feminino qual O aparentar-se um deus à humanidade! Os lábios cujo abrir vermelho titilava Os sítios da luxúria com tanta arte viva! Ó dedos que hábeis eram no de não ser dito! Ó língua que na língua o sangue audaz tornava!
A minha vida é um barco abandonado (...) Ah! falta quem o lance ao mar, e alado Torne seu vulto em velas; peregrino Frescor de afastamento, no divino Amplexo da manhã, puro e salgado. Morto corpo da ação sem vontade Que o viva, vulto estéril de viver, Boiando à tona inútil da saudade. Os limos esverdeiam tua quilha, O vento embala-te sem te mover, E é para além do mar a ansiada Ilha...
Quando nos iremos, ah quando iremos de aqui?
Quando, do meio destes amigos que não conheço,
Do meio destas maneiras de compreender que não compreendo,
Do meio destas vontades involuntariamente
Tão contrárias à minha, tão contrárias a mim?!
Duas vezes, naquela minha adolescência... longínqua... gozei a dor da humilhação de amar. Do alto de hoje, olhando para trás, para esse passado, que já não sei designar nem como longínquo nem como recente, creio que foi bom que essa experiência da desilusão me acontecesse tão cedo. Não foi nada, salvo o que passei comigo.(...) Cedo de mais obtive, por uma experiência, simultânea e conjunta, da sensibilidade e da inteligência, a noção de que a vida da imaginação, por mórbida que pareça, é contudo aquela que calha aos temperamentos como é o meu. As ficções da minha imaginação podem cansar, mas não doem nem humilham. Às amantes impossíveis é também impossível o sorriso falso, o dolo do carinho, a astúcia das carícias. Nunca nos abandonam, nem de qualquer modo nos cessam.
Viu-a desaparecer com mágoa, com rancor, com humilhação, mas também com um grande alívio, um repouso fundo da respiração da alma, por fim restituída a si mesma. E sentiu, com todo o subtil da intuição, que ela deveria estar sentindo isso mesmo agora, mas deveria estar sorrindo um pouco mais...
Sentiu a grande humilhação de ter sido estimado ... A própria troça fora melhor, porque a troça fora da mulher, mas a estima era da natureza através dela.
Quando a canção chegou ao fim, Kraus deu um passo em frente, afastando-se do semicírculo que havíamos formado, e disse lentamente mas com uma solenidade tanto maior." Dorme, descansa tranquilamente, querida Fraulein.(...) E agora adeus, Instituto Benjamenta
As a free-fall advances I'm the moron who dances Ahhahhhahhhahhhahhahh I was teething on roses I was in guns and noses Ahhahhhahhhahhhahhahh Under the withering white sky's a humiliation...
No fim de tudo dormir. No fim de quê? No fim do que tudo parece ser..., Este pequeno universo provinciano entre os astros, Esta aldeola do espaço, E não só do espaço visível, mas até do espaço total.
O, du lieber Augustin, alles ist hin... Lembrou-se da professora de alemão, a cantar com um entusiasmo verdadeiramente contagiante, com o ponteiro a fazer de batuta... Recordou uma pessoa bonita e ensaiou um desenvolvimento não humilhante para estes fins...
Me and you and you and me No matter how they toss the dice It had to be The only one for me is you And you for me...
Tenho vontade de vomitar, e de me vomitar a mim... Tenho uma náusea que, se pudesse comer o universo para o despejar na pia, comia-o. Com esforço, mas era para bom fim. Ao menos era para um fim. E assim como sou não tenho nem fim nem vida.
E foi uma torrente de energia ofendida que se pôs em movimento. Infelizmente, o fantasma, que aparecia e desaparecia no mesmo instante, escondera-se covardemente de novo por detrás da mancha atordoadora. Os cornos ávidos, angustiados, deram em cor. Mais palmas ao dançarino. Parou. Assim nada o poderia salvar. À suprema humilhação de estar ali, juntava-se o escárnio de andar a marrar em sombras.(...) Desesperado, tornou a escarvar o chão, agora com as patas e com os galhos. O homem! Mas o inimigo não desistia. Talvez para exaltar a própria vaidade, aparentava dar-lhe mais oportunidades. (...)Humilhado, com o sangue a ferver-lhe nas veias, escarvou a areia mais uma vez, urinou e roncou, num sofrimento sem limites. Miura, joguete nas mãos dum zé-ninguém!(...) Mesmo assim, quase sem tino e a saber que era em vão que avançava, avançou. Deu, como sempre na miragem enganadora. Renovou a investida. Iludido, outra vez. Parou. Mas não acabaria aquele martírio? Não haveria remédio para semelhante mortificação? Num último esforço, avançou quatro vezes. Nada. Apenas palmas ao actor. Quando? Quando chegaria o fim de semelhante tormento? Subitamente, o adversário estendeu-lhe diante dos olhos congestionados o brilho frio dum estoque. Quê?! Pois poderia morrer ali, no próprio sítio da sua humilhação?! Os homens tinham dessas generosidades?! Calada, a lâmina oferecia-se inteira. Calmamente, num domínio perfeito de si, Miura fitou-a bem. Depois, numa arremetida que parecia ainda de luta e era de submissão, entregou o pescoço vencido ao alívio daquele gume.
Chamo-me Clarisse e vou morrer. Mas, entretanto conheci um tipo cínico que era médico e resolvera os seus problemas de consciência escolhendo uma especialidade cujos clientes não tinham uma migalha de esperança à sua frente.
Pedia-me aqueles nadas que reanimam uma vida. Enfim: a torpe ilusão de que poderia haver um erro ou uma possibilidade. Mas nem só Clarisse necessitava dessa ilusão, embora fosse eu, que também dela necessitava, a última pessoa que a doença pudesse burlar. Não era apenas a magreza, o embaciado amarelento da face, os olhos que começavam a parecer desmedidos, isolados numa paisagem desabitada... No entanto, à medida que essa decadência se acentuava, menos eu a queria admitir. Pela primeira vez, por assim dizer, nessa revolta das vísceras, eu fazia a violenta descoberta da morte – através de uma pessoa viva. Durantes as minhas longas vigílias de cigarros trespassava-me o eco de longínquas vozes.
Esperava pela liberdade de começar, pelo momento de se tornar real, esperava a hora de esquecer quem ele era e se tornar a pessoa que estava a interpretar, mas em vez disso estava ali parado, completamente vazio, atuando do modo que se faz quando não se sabe o que se está a fazer. Não conseguia dar e não conseguia reter; não tinha fluidez e não tinha reserva. A atuação tornou-se uma tentativa, repetida noite após noite, de se conseguir livrar de um fardo ...Ele perdera a magia. O impulso esgotara-se. Ele nunca havia fracassado no teatro, tudo o que fizera sempre fora vigoroso e bem-sucedido, e então aconteceu esta coisa terrível: ele não conseguia representar. Subir ao palco tornou-se uma agonia. Em vez da certeza de que teria um desempenho maravilhoso, sabia que ia fracassar. A coisa aconteceu três vezes seguidas, e na última vez ninguém mostrou interesse, ninguém foi. Ele não conseguia comunicar com a plateia. O seu talento havia morrido.
Até não muito tempo atrás, existia uma maneira pré-fabricada de ser velho, tal como havia uma maneira pré-fabricada de ser jovem. Hoje em dia, nenhuma das duas funciona mais. Houve um grande conflito a respeito do que é permissível — e uma grande revolução. Não obstante, será que um homem de setenta anos de idade ainda deve continuar a envolver-se com o aspecto carnal da comédia humana? Ser desavergonhadamente um velho nada monástico, ainda suscetível às excitações humanas? Não é essa condição que outrora era simbolizada pelo cachimbo e pela cadeira de balanço. Talvez ainda seja uma espécie de afronta para muita gente você não se pautar pelo antigo relógio da vida. Tenho consciência de que não posso contar com o respeito virtuoso dos outros adultos. Mas o que é que eu posso fazer quando constato que, pelo menos no meu caso, nada, nada se aquieta, por mais que a gente envelheça?
- Mas tenho de ir. Alguém tem de estar com ela.
- Pensa nisso. Pensa. Porque, se fores, estás liquidado.
Consuelo, sem cabelo e sem os seus inebriantes seios, já não era apenas um corpo, era muito mais do que um animal: o fim originou um novo início...
Consuelo agora conhece a ferida da idade. Envelhecer é inimaginável para todos, menos para os idosos...Consuelo já não mede o tempo como os jovens, assinalando para trás, para quando tudo começou. Para os jovens, o tempo é feito do que é passado, mas para Consuelo o tempo é agora a medida do futuro que lhe resta. Agora mede o tempo contando para a frente. Conta o tempo pela proximidade da morte. A ilusão quebrou-se, a ilusão metronómica, o pensamento reconfortante de que,ti-tac, tudo acontece no seu devido tempo. A sua noção de tempo é agora igual à minha, acelerada e mais desamparada , até, do que a minha...
Durante quarenta anos fez o que era necessário fazer. Andou atarefado, e a natureza, que é a besta, mudou-se para uma caixa. Agora essa caixa está aberta. Ser reitor, ser pai, ser marido, ser intelectual, professor, ler livros, dar lições, corrigir textos, dar notas, tudo isso acabou. Evidentemente que já não é a vigorosa besta lúbrica que foi. Mas o que resta da besta, o que resta dessa coisa natural, é com isso que ele está agora em contacto, com o que resta. E sente-se feliz por isso, sente-se grato por estar em contacto com o que resta. Sente-se mais do que feliz: sente-se emocionado, e já está ligado, profundamente ligado a ela, por causa dessa emoção. Não é de família que se trata, a biologia já não lhe serve para nada. Não é família, não é responsabilidade, não é dever, não é dinheiro, não é uma filosofia partilhada ou o amor à literatura, não são grandes discussões de ideias. Não, o que o liga a ela é a emoção. Amanhã descobrem-lhe um cancro e acabou-se. Mas hoje, agora, tem essa emoção.
A pancada atinge-o do lado direito,violenta,surpreendente e dolorosa, como uma faísca eléctrica, projectando-o da bicicleta.
Acorda num casulo de ar morto. Tenta soerguer-se mas não é capaz; é como se estivesse encerrado em cimento. Rodeia-o uma brancura ininterrupta: tecto branco, lençóis brancos, luz branca; e também uma brancura granulosa como pasta de dentes velha que parece revestir-lhe a mente...
As noites são intermináveis. Sente demasiado calor, demasiado frio; tem comichão na perma... De noite e de dia o tempo arrasta-se. O relógio está parado mas o tempo não.
Dirá alguma coisa sobre ele, essa preferência nata preto e branco e matizes de cinzento, essa falta de interesse pelo novo? Seria disso que as mulheres sentiam a falta nele, em particular a sua mulher: cor, abertura?
A história que contou a Marijana foi que guardava fotografias antigas por fidelidade aos seus objectos, os homens, mulheres e crianças que ofereciam os seus corpos à lente do estranho. Mas isso não é a verdade integral. Guarda-as por fidelidade às fotografias em si, às reproduções fotográficas, a maioria delas sobreviventes, únicas. Dá-lhes um bom lar e vela, tanto quanto consegue, tanto quanto alguém pode, por que elas tenham um bom lar depois de ele desaparecer. Talvez, por seu turno, algum estranho ainda por nascer vá rebuscar o passado e guarde uma fotografia sua, do extinto Rayment da Doação Rayment.
Deslizar pelo mundo: era assim, em tempos idos, que se costumava designar vidas como a sua: velando pelos seus interesses, prosperando calmamente,sem chamar a atenção... Uma oportunidade desperdiçada.
Uma vida circunscrita. ... Pode uma vida tornar-se e tal modo circunscrita que já não valha a pena ser vivida? Há homens que saem da prisão,depois de anos a olharem para a mesma parede nua,sem que o pessimismo se apodere da sua alma. O que te de tão especial perder um membro?
Todo o amor que ele pudesse ter tido alguma vez pelo seu corpo «desapareceu há muito. Não tem interesse em consertá-lo,em fazê-lo voltar a alguma eficiência ideal. O homem que ele era não passa de uma recordação, e uma recordação que se dissipa rapidamente. Ainda tem a sensação de ser uma alma com uma vida anímica não diminuída...
Não sabe se alguma vez gostou da paixão, ou a aprovou.Paixão: território estrangeiro; uma afecção cómica mas inevitável como a papeira, que a pessoa espera ter quando ainda é jovem, numa das suas formas mais brandas, menos ruinosas,para não a contrair com maior gravidade mais tarde. Cães avassalados pela paixão a acasalar,com sorrisos infelizes na cara,com a língua de fora.
A cabeça da escrevinhadora poisa,a descansar,na almofada...Ele parece estar a tornar-se o tipo de pessoa que adormece cedo e acorda quando ainda está escuro; ela parece ser o tipo de pessoa que fica acordada até tarde,inventando as suas fantasias pela noite fora. Como poderiam eles ir morar juntos?
- Não...Isto não é amor. É algo diferente. É algo menor.
- Mas que vou eu fazer sem si?
Ela parece estar a sorrir, mas os seus lábios tremem também.
- Isso é consigo... Mas ,quanto a mim, quanto ao presente: adeus.
E curva-se para diante e beija-a três vezes, da maneira formal que lhe ensinaram em criança - esquerda direita esquerda.
De acordo com uma lenda escandinava, o último homem a morrer, no último dia do ano, torna-se automaticamente, o cocheiro da morte....
Já viram com certeza gravuras representando a Morte, e viram-na sempre a andar a pé. Razão porque o cocheiro de que vos falo não é a Morte em pessoa, mas apenas o seu criado. Compreendem que uma personagem tão importante só se digna recolher a fina flor da colheita, e é ao seu cocheiro que confia a tarefa de juntar as pobres ervinhas que crescem à borda dos fossos.(...) Mas compreendem agora do que é que o meu camarada tinha medo. Era de morrer precisamente à meia noite, na véspera do Ano Novo, e de se tornar o cocheiro da Morte. Suponho que imaginava ouvir durante todo o dia o coche funerário a chiar e a baloiçar sobre as estradas. E, imaginem, parece que morreu no ano passado, precisamente na noite de S. Silvestre.
- E mesmo à meia-noite?
- Sei, apenas que morreu à noite, mas ignoro a hora. Poderia, aliás, ter-lhe predito que havia de morrer nesse dia, tal era o medo que tinha. Se uma ideia parecida se apoderasse de vocês, eram capazes de ir também.
A certeza — isto é, a confiança no carácter objectivo das nossas percepções, e na conformidade das nossas ideias com a «realidade» ou a «verdade» — é um sintoma de ignorância ou de loucura. O homem mentalmente são não está certo de nada, isto é, vive numa incerteza mental constante; quer dizer, numa instabilidade mental permanente; e, como a instabilidade mental permanente é um sintoma mórbido, o homem são é um homem doente...
Quando eu morrer batam em latas,
Rompam aos saltos e aos pinotes,
Façam estalar no ar chicotes,
Chamem palhaços e acrobatas!
Que o meu caixão vá sobre um burro
Ajaezado à andaluza...
A um morto nada se recusa,
Eu quero por força ir de burro
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