Impetos...
Outra vez, num dos seus ataques repentinos, /.../ empurrou-me para o vão de uma escada. Não percebi o que era; até pensei que fosse ele que, na sua timidez, tivesse visto alguém e não quisesse que nos vissem juntos. Mas, sem eu esperar, agarrou-me com toda a força e beijou-me: um beijo enorme, enorme!( relato de Ofélia)
Não quero, Cloe, teu amor que oprime, Porque me exige amor. Quero ser livre.
Não só quem nos odeia ou nos inveja Nos limita e oprime; quem nos ama Não menos nos limita...
Ophelinha:
Para me mostrar o seu desprezo, ou, pelo menos, a sua indiferença real, não era preciso o disfarce transparente de um discurso tão comprido, nem da série de «razões», tão pouco sinceras como convincentes, que me escreveu. Bastava dizer-mo. Assim, entendo da mesma maneira, mas dói-me mais. (...)
Quem ama verdadeiramente não escreve cartas que parecem requerimentos de advogado. O amor não estuda tanto as coisas, nem trata os outros como réus que é preciso «entalar».
Porque não é franca para comigo? Que empenho tem em fazer sofrer quem não lhe fez mal — nem a si, nem a ninguém —, a quem tem por peso e dor bastante a própria vida isolada e triste, e não precisa de que lha venham acrescentar, criando-lhe esperanças falsas, mostrando-lhe afeições fingidas, e isto sem que se perceba com que interesse, mesmo de divertimento, ou com que proveito, mesmo de troça.
Reconheço que tudo isto é cómico, e que a parte mais cómica disto tudo sou eu.
Eu-próprio acharia graça, se não a amasse tanto, e se tivesse tempo para pensar em outra coisa que não fosse no sofrimento que tem prazer cm causar-me sem que eu, a não ser por amá-la, o tenha merecido, e creio bem que amá-la não é razão bastante para o merecer. Enfim... 1.3.1920.
Fernando Pessoa
Oh, querida Ofélia! Meço mal os meus versos; careço de arte para medir os meus suspiros; mas amo-te em extremo. Oh! até ao último extremo, acredita!
Doubt thou the stars are fire, Doubt that the sun doth move, Doubt truth to be a liar, But never doubt I love. O dear Ophelia, I am ill at these numbers. I have not art to reckon my groans, but that I love thee best, oh, most best, believe it. Adieu. Thine evermore, most dear lady, whilst this machine is to him, Hamlet.
Quanto a mim... O amor passou. Mas conservo-lhe uma afeição inalterável, e não esquecerei nunca – nunca, creia – nem a sua figurinha engraçada e os seus modos de pequenina, nem a sua ternura, a sua dedicação, a sua índole amorável.
Uma história banal, demasiado banal, mas que foi, para ela, neste momento, uma re-revelação: o seu outro eu já a tinha lido há muitos anos...
O Fernando era muito ciumento, mas não se zangava, não dizia nada; sofria.(...) Um dia disse-me: -- «Hoje, pela primeira vez, tive ciúmes dos olhos do meu primo». «Porquê?», perguntei. «Porque eles viram-te e eu não te vi». Isto passou-se numa segunda-feira e eu por acaso no domingo tinha encontrado o primo dele na rua.
Gostou da ideia de ter ciúmes dos olhos...
Um dia faltou a luz no escritório. O Freitas não estava e o Osório, o «grumete», tinha saído a fazer um recado. O Fernando foi buscar um candeeiro de petróleo, acendeu-o, e pô-lo em cima da minha secretária.Um pouco antes da hora de saída, atirou-me um bilhetinho para cima da secretária, que dizia: «Peço-lhe que fique». Eu fiquei, na expectativa. Nessa altura, já eu me tinha apercebido do interesse do Fernando por mim, e eu, confesso, também lhe achava uma certa graça...Lembro-me que estava em pé, a vestir o casaco, quando ele entrou no meu gabinete. Sentou-se na minha cadeira, pousou o candeeiro que trazia na mão e começou a declarar-se como Hamlet a Ofélia...Fiquei perturbadíssima, como é natural, e, sem saber o que havia de dizer, acabei de vestir o casaco e despedi-me precipitadamente. O Fernando levantou-se, com o candeeiro na mão, para me acompanhar até à porta. Mas, de repente, pousou-o sobre a divisória da parede; sem eu esperar, agarrou-me pela cintura, abraçou-me e, sem dizer uma palavra, beijou-me, beijou-me, apaixonadamente, como louco.Surgem assim os primeiros versos que me dedicou:
Fiquei louco, fiquei tonto,
Meus beijos foram sem conto,
Apertei-a contra mim,
Enlacei-a nos meus braços,
Embriaguei-me de abraços
Fiquei louco e foi assim...
É estranha esta faceta de Fernando Pessoa,mas...devo confessar... será que tenho ciúmes da menina Ofélia??
Impetos...
Foi, decerto, uma boa relação neurótica, com algo de maníaco, como são os amores que, por norma, duram toda uma vida: exactamente o contrário de certas paixões libertadoras, arrebatadoras e todas baseadas na relação carnal. Não: esta relação foi, sem o ser, um matrimónio e, como tal, nutriu-se de hábitos, de decoro, de dedicação e de mesquinhez. Não arrebatou nada. Simplesmente esgotou-se na pura ideia ou na pura estrutura matrimonial, prescindindo do tálamo. Mas, no fim de contas, o que tem o sexo a ver com isto? Para Pessoa foi isto a essência do amor, não a sua realização no plano pragmático, tal como o ortónimo a teorizara já em poesia: "O amor é que é essencial/ O sexo é só um acidente. / Pode ser igual/ Ou diferente. / O homem não é um animal: / É uma carne inteligente, / Embora às vezes doente."
Nem quero recordar o meu primeiro beijo... foi uma experiência tão horrível que nunca, nunca a contei... "Elas" não conseguiram perceber o secretismo de que envolvi tal evento...Se"elas" sonhassem quem foi o infeliz contemplado... Por acaso esteve quase tentada a contar à C, mas, mesmo passado estes anos todos, não consegui.
Bem mais felizardos foram fernando pessoa, a menina Ofélia e a menina que mascava chiclet de mentol!!!
Prazeres momentâneos
A memória é o meu verdadeiro avaliador de livros. Se, passado um tempo, não consigo recordar nada, absolutamente nada, de um livro de que gostei bastante, é sinal de que ele se transformou num mero título, com X páginas em branco... Recordo o autor, a dimensão, a capa, mas o seu conteúdo tornou-se uma inexistência.
Repego nele, abro-o, e surge a prova inequívoca de que o li: inúmeros sublinhados e comentários, percorridos com ansiedade e angústia. Como é possível não se recordar de nada ? Começo a reler e ressurge a volúpia do texto. Houve fundamento suficiente para gostar do livro... Como é possível não fazer a mínima ideia da intriga, dos dilemas das personagens, do desenlace?
Há livros que são como encontros meramente físicos. Pode existir uma efémera sensação de prazer, mas não fica marca, é descartável, usa-se e deita-se fora. São como amores de praia: termina o verão e termina o amor...
( Ahah... Como é possível ter gostado disto?!)
Quando era uma ingénua adolescente, achava que, se tivesse alguma intimidade com um rapaz ,esse momento ficaria perpetuamente inscrito na minha memória...Em parte também por isso, esperou tanto tempo pelo objeto merecedor do privilégio de ficar ad aeternum a fazer parte da sua vida... Como me enganava: o contacto físico não deixa qualquer vestígio, esquece-se, é um instante fugaz que logo cessa de ter significado. É como a leitura de certos livros: boa enquanto dura, mas esvai-se rapidamente, não se entranha...
O que a memória ama fica eterno: seja um ser,seja um livro...
Ao reler nuno camarneiro, mais uma vez gostei, chega a ter frases deliciosas, dignas de um oscar wilde, mas intui que nada, além da emoção momentânea, ficará gravado em mim.
Yotu boli allsem remo...
A vida prejudica a expressão da vida. Se eu vivesse um grande amor nunca o poderia contar.Só o que não se vive se recorda para sempre...
A menina fernanda - foi menina fernanda pelo menos até aos 60 anos,idade em que lhe perdeu o rasto- prostituta na rua direita, que vivia perto da casa da sua avó materna, tinha um namorado, talvez o seu chulo, o único homem de quem ela gostava. Como lhe fazia impressão que o seu filhito passasse tantas horas sozinho, sempre que estava em casa da avó, ia buscar o miúdo, acabando por me tornar amiga da menina fernanda.Já não se lembro a que propósito, um dia ela contou-lhe que nunca, mas nunca, tinha dado um beijo aos clientes,fazia tudo o que eles quisessem,até " as coisas mais porcas", mas beijos só ao seu homem: era a sua prova de amor...
Tu já desapareceste,já deixaste há muito de carregar a tua cruz, como eufemisticamente designavas a tua profissão...Ao rememorar o teu dolorido testemunho, pensou que gostarias de saber que és etiqueta de um blogue de uma senhora doutora que nunca precisou de ter clientes para criar o filho, mas que aprendeu contigo que um beijo, daqueles que percorrem o corpo todo, que retiram por completo a capacidade de pensar,é infinitamente mais importante do que qualquer outro contacto. Não recorda, com grande mágoa , o seu primeiro encontro de lábios, foi um acaso sem significado, uma coisa momentânea... No entanto, nunca esqueceu o primeiro beijo que poderia ter dado. Esse foi tão inolvidável como a queda ,a curva na estrada ou as memórias de adriano...Durante o ato sexual pensa-se em nós, no nosso prazer, no momento fisicamente libertador em que tudo aquilo acabe ... Num beijo,idealizado e desejado por longo tempo, o mundo pára, a vida pára,ausentamo-nos de nós, e só existem dois seres ,únicos, ligados para sempre, por uma magia inebriante...
Sempre que um livro relata a inefável envolvência que se transmite num beijo, arquivo essa descrição, sendo a minha preferida , esta de joyce:
Fechou os olhos, abandonando-se, de corpo e alma, sem consciência de outra coisa que não fosse a pressão tenebrosa dos seus lábios que se entreabriam suavemente. A sua pressão exercia-se tanto sobre o seu cérebro como sobre os seus lábios, como se fossem o veículo de um vago discurso; e, entre eles, sentiu uma pressão desconhecida e tímida, mais tenebrosa que o enlanguescimento do pecado, mais suave do que um som ou um perfume.
Wise thass thq m fesen ise du m gido dreso kibas, exrect,shanaofmbio...
Quero o meu primeiro beijo não quero ficar impune e dizer-te cara a cara muito mais é o que nos une que aquilo que nos separa
Se um beijo dado pode ser inolvidável, um beijo sonhado é tão perene como uma obra de arte...
Talvez inicie uma nova mensagem com o tema beijo, mas, como poderei não o fazer,não quer omitir uma distinção que existia em latim: osculum( na face) ;basium(nos lábios)...Em português, o ósculo fixou-se como registo erudito e o beijo generalizou-se, perdendo a exclusiva conotação erótica,celebrizada por catulo, o primeiro poeta romântico, séculos antes de a palavra romantismo ter surgido...
Vivamus, mea Lesbia, atque amemus, rumoresque senum severiorum omnes unius aestimemus assis! Soles occidere et redire possunt: nobis cum semel occidit brevis lux, nox est perpetua una dormienda. Da mi basia mille, deinde centum, dein mille altera, dein secunda centum, deinde usque altera mille, deinde centum. Dein, cum milia multa fecerimus, conturbabimus illa, ne sciamus, aut ne quis malus invidere possit, cum tantum sciat esse basiorum.
Entusiasmos...
Através de um daqueles testes palermas ( que, secretamente, faz...), que enxameiam as redes sociais, fui informada que a palavra que melhor me define é entusiasmos... Por acaso, achei piada ao plural, que torna mais viável o diagnóstico... se sou dada a entusiasmos, considero-me superior...
Entusiasmo - é uma palavra com uma etimologia fascinante... do grego en + theos, entusiasmado é o estado de quem tem um deus dentro de si, o que explicaria a capacidade realizativa e a energia , quase divina, que o entusiasmo confere...
Não basta a agudeza intelectual para descobrir uma coisa nova. Faz falta entusiasmo, amor prévio por essa coisa. O entendimento é uma lanterna que necessita ser dirigida por uma mão, e a mão necessita ir mobilizada por um anseio pré-existente para este ou outro tipo de possíveis coisas. Em definitivo, somente se encontra o que se busca e o entendimento encontra porque o amor busca. Por isso todas as ciências começaram por ser entusiasmos de amadores. A pedanteria contemporânea desprestigiou esta palavra; mas amador é o mais que se pode ser com respeito a alguma coisa, pelo menos é o germe todo. E o mesmo diríamos do diletante - que significa o amante. O amor busca para que o entendimento encontre. Grande tema para uma longa e fértil conversa...demonstrar como o ser que busca é a própria essência do amor!
O meu entusiasmo é resultante de um estado que a neurologista designou , nunca percebeu se a brincar se a sério, por "prozáquico". Produzo, ocasionalmente, uma substância que origina um efeito absolutamente similar ao Prozac, fármaco que, obviamente, conheço, mas nunca experimentei, embora chegasse a ser colocada a hipótese de eu consumir às escondidas... Talvez por isso meu entusiasmo, o meu deus privativo, manifesta-se sem razão ou motivação conhecida, desencadeando um estado de excitação, que me pode provocar colapsos emocionais , explosões interiores, desencadeadoras de períodos de amnésia, momentâneos: O cérebro entra num frenesim produtivo que me esgota , deixando-me abatida, sem saber quem sou nem o que fiz...
Já me submeteram a mil exames, à procura de um qualquer defeito de fabrico , justificativo desta peculiaridade, mas nada... Sempre que se der a coisa, corro para o médico e depois logo se vê, mas, até agora, nunca se viu nada... Também , verdade seja dita, escuso de exagerar, pois o meu "apagão" total só ocorreu uma vez: não sabia quem era, não reconheci a casa, não fazia a mínima ideia sobre o que tinha feito: um vazio total, nunca recuperado. Os meus entusiasmos mais frequentes só originam um súbito cansaço, uma espécie de dormência entorpecedora, mas sem amnésia... Já deixou de falar deles porque odeio fazer ressonâncias magnéticas, uma verdadeira tortura, nada entusiasmante...
Fico sempre um pouco assustada quando me entusiasmo, mas gosto-me: há uma acutilância que me torna genial, o meu pensamento flui a um ritmo alucinante que me fascina e, sobretudo, sinto uma confiança enorme nas minhas capacidades, acredito na concretização de tudo o que idealizo. Vivo momentos de uma euforia inebriante... A neurologista lamenta nunca me ter tido acesso, no auge do entusiasmo, mas para para que isso fosse possível, teria de ficar internada à espera , o que é impensável, pois não há uma regularidade previsível .
Se calhar, a minha mãe é que tinha razão, ao considerr-me "chanfrada" ... Certamente é só isso e nada mais há a saber...
( Não percebo nada: acabei de ler que, medicamente, os colapsos não existem, parece que as inexistências me perseguem...Apesar de não existirem, existe a perturbação que em mim provocam ,tal como fantasmas...)
Comecei a ler sem qualquer entusiasmo, por uma obrigação a que não se devia sentir obrigada, mas que me obrigou a sentir-me como tal.
Tornei-me no que sou hoje aos doze anos de idade, num dia frio e enevoado do Inverno de 1975. Recordo-me do momento exacto, eu estava escondido atrás de uma parede de lama decrépita, a espreitar para o beco deserto perto do riacho gelado. Foi há muito tempo, mas hoje sei que não tem razão quem diz que é possível enterrar o passado. Porque mesmo que o enterremos, ele tanto esgravata a terra que acaba por regressar. Quando olho para trás, vejo que passei vinte anos a fitar aquele beco vazio.
Nos dezoito anos que vivi naquela casa, entrei nos aposentos de Hassan e Ali apenas uma meia dúzia de vezes. Quando o Sol se punha atrás das colinas, acabava-se a brincadeira e Hassan e eu seguíamos cada um o seu caminho. Eu subia a rua ladeada de roseiras até à casa do meu pai, Hassan ia para a cabana de lama onde tinha nascido e passaria o resto da vida.
Um deus visitou- a. Todavia... afinal, foi um entusiasmo absurdo.
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