Não é neccessário vivermos ao lado de alguém para nos sentirmos ligados a esse alguém mais do que a qualquer outra pessoa...

segunda-feira, 19 de outubro de 2015

Imprudências e genialidades...

Imprudências...
Quando fui à Grécia, pela primeira vez, abracei uma coluna… Ah, eu nem acreditava! Nesse tempo ia-se de barco para Atenas. Tinha havido grandes tremores de terra e por isso não se podia passar o canal de Corinto. Demos a volta toda ao Peleponeso e chegámos a Atenas ao entardecer. Ao entardecer os últimos raios de sol brilham sobre o Pártenon numa luz mais ou menos rósea – as colunas de mármore vão mudando de cor conforme a hora. É um deslumbramento!... É uma colina íngreme, a colina da acrópole. Quando cheguei à base, quase não podia andar. Abraço uma coluna! Nessa altura podia entrar-se no Pártenon, agora não(...) Talvez fosse parecido a abraçar alguém que se ama muito. Só que a coluna é tão larga, tem um diâmetro tão grande, que não dá para abraçar tudo ao mesmo tempo. Não. Não chorei. Habitualmente não choro. Eu não era o género de lágrimas... Talvez porque fosse predominantemente intelectual a alegria desse encontro.

Tenho tanto sentimento
Que é frequente persuadir-me
De que sou sentimental,
Mas reconheço, ao medir-me,
Que tudo isso é pensamento,
Que não senti afinal.


É legítima toda a violação da lei moral que é feita em obediência a uma lei moral superior. Não é desculpável roubar um pão por ter fome. É desculpável a um artista roubar dez contos para garantir por dois anos a sua vida e tranquilidade, desde que a sua obra tenda a um fim civilizacional; se é uma mera obra estética, não vale o argumento.

Nas tragédias gregas, quando menos se espera, desencadeiam-se desgraças sobre o homem, que ele muitas vezes provocou sem saber. Isto tem que ver com um dos conceitos mais discutidos na «Poética» de Aristóteles: «Hamartia». Discute-se, e discutir-se-á, e há livros só sobre o assunto, o que é que ele entende por «Hamartia». Muitos pensam, e eu também penso, que esta «Hamartia» é um errar por desconhecimento. É o que acontece particularmente no «Rei Édipo», de Sófocles. No fundo, é sempre a ideia das limitações do homem, que não pode ultrapassar a sua medida e tentar igualar-se aos deuses.

άμαρτία significa, etimologicamente, “errar o alvo com o arco e a flecha”. Trata-se, por conseguinte, de um ato inábil, mas não moralmente culpável. Aristóteles, quando fala da μεταβολή, que faz o herói passar da felicidade à desgraça, insiste em que essa mudança não deve nascer de uma deficiência moral, mas de um erro, de uma falta cometida...

Uma das grandes tragédias da minha vida — porém daquelas tragédias que se passam na sombra e no subterfúgio — é a de não poder sentir qualquer coisa naturalmente. Sou capaz de amar e odiar, como todos, de, como todos, recear e entusiasmar-me; mas nem meu amor, nem meu ódio, nem meu receio, nem meu entusiasmo, são exactamente aquelas mesmas coisas que são. Ou lhes falta qualquer elemento ou se lhes acrescenta algum. O certo é que são qualquer outra coisa, e o que sinto não está certo com a vida. Em mim nota-se igual perturbação da certeza do sentimento, mas nem sou calculista nem sou escrupuloso. Não tenho desculpa para sentir mal. Por instinto desnaturo os instintos. Sem querer, quero erradamente...



Orfeu tenta vencer a morte, mas depois não é capaz de se vencer a si próprio. Há quem tenha encontrado outras motivações, além da curiosidade. Os mitos vão recebendo adições e tratamentos diferentes. Na sua formulação que se tornou mais conhecida, que é a das «Geórgicas» de Virgílio, Orfeu não resiste mais e esquece por momentos a condição que a rainha dos mortos lhe tinha tornado obrigatória: não podia olhar para trás antes de chegar à luz do dia. Ele olha e ela desaparece. E depois, em Virgílio, há aquelas últimas palavras de Eurídice: «Não mais tua»...

Há imprudências irremediáveis...Um único registo, talvez uma breve dedicatória , sobreviveu como testemunho silencioso de um amor que perdurou, sem nunca ter existido.

Iamque pedem referens casus evaserat omnis, redditaque Eurydice superas veniebat ad auras, pone sequens (namque hanc dederat Proserpina legem), cum subita incautum dementia cepit amantem,ignoscenda quidem, scirent si ignoscere Manes: restitit, Eurydicenque suam iam luce sub ipsa immemor heu! Victusque animi respexit. Ibi omnis effusus labor atque immitis rupta tyranni foedera, terque fragor stagnis auditus Avernis. Illa “quis et me” inquit “miseram et te perdidit, Orpheus,quis tantus furor? en iterum crudelia retro fata vocant conditque natantia lumina somnus. Iamque vale...

E como agora ele, voltando com seus próprios pés, escapasse de qualquer eventualidade, e a resgatada Eurídice voltava ao mundo superior, seguindo atrás dele (Prosérpina ordenara esta lei), quando uma súbita demência possuiu o incauto amante, se os Manes soubessem perdoar, ela deveria ser perdoada: ele parou e, sob a própria luz, esquece-se agora, ai! de sua Eurídice. E, vencido pelo desejo, olhou para trás. Nesse momento, todo o seu trabalho se tornou vão e o pacto com o cruel tirano foi quebrado, e, por três vezes, um estrondo foi ouvido nas águas do Averno. Ela diz: `Que tão grande loucura me desgraçou a mim, infeliz, e a ti, Orfeu? Eis que mais uma vez os cruéis fados me chamam de volta e o sono oculta os meus lacrimosos olhos. E agora adeus!

... spretae Ciconum quo munere matres inter sacra deum nocturnique orgia Bacchi discerptum latos iuvenem sparsere per agros. tum quoque marmorea caput a cervice revulsum gurgite cum medio portans Oeagrius Hebrus volveret, Eurydicen vox ipsa et frigida lingua, a miseram Eurydicen! Anima fugiente vocabat, Eurydicen toto referebant flumine ripae.

As mães dos cícones, desprezadas pela devoção à amada, entre os ritos sagrados dos deuses e as orgias do noturno Baco, espalharam o corpo despedaçado do jovem pelos vastos campos. Então, também enquanto o trácio Ebro rolava a cabeça arrancada do pescoço marmóreo, carregando-a no meio de sua correnteza, a voz dela e a gelada língua clamavam: `Eurídice! Ah! Mísera Eurídice!`. Com a alma a fugir-lhe a chamava, e as margens ecoavam o nome de Eurídice por todo o rio.

Tens mais que milhares — tens milhões — de razões para estares zangada, irritada, ofendida comigo. Mas a culpa mal tem sido minha; tem sido daquele Destino que acaba de me condenar o cérebro, não direi definitivamente, mas, pelo menos, a um estado que exige um tratamento cuidado, como não sei se poderei ter.

Terrível Bebé: Gosto das suas cartas, que são meiguinhas, e também gosto de si, que é meiguinha também. E é bombom, e é vespa, e é mel, que é das abelhas e não das vespas, e tudo está certo, e o Bebé deve escrever-me sempre, mesmo que eu não escreva, que é sempre, e eu estou triste, e sou maluco, e ninguém gosta de mim, e também porque é que havia de gostar, e isso mesmo, e torna tudo ao princípio, e parece-me que ainda lhe telefono hoje, e gostava de lhe dar um beijo na boca, com exactidão e gulodice e comer-lhe a boca e comer os beijinhos que tivesse lá escondidos e encostar-me ao seu ombro e escorregar para a ternura dos pombinhos, e pedir-lhe desculpa, e a desculpa ser a fingir(..) e enfim, e vou acabar porque estou doido, e estive sempre, e é de nascença, que é como quem diz desde que nasci, e eu gostava que a Bebé fosse uma boneca minha, e eu fazia como uma criança, despia-a, e o papel acaba aqui mesmo, e isto parece impossível ser escrito por um ente humano, mas é escrito por mim,Fernando.

Ai este fernando - demasiado pessoa,demasiado imprudente - é de um ingenuidade enternecedora: só uma adolecente escreveria uma cartinha destas...

Cansada de pensar, de sentir, de ser imprudente,de ser, de não ser...


Genialidades...
É triste pensar assim, mas não há dúvida que o Génio dura mais que a Beleza. É por isso que todos nós nos esforçamos tanto por nos cultivar. Na luta selvagem pela existência, queremos ter algo que dure e por isso enchemos as nossas mentes de entulho e factos, na esperança vã de mantermos o nosso estatuto. O homem perfeitamente bem informado, é esse o ideal moderno. E a mente do homem perfeitamente bem informado é uma coisa medonha. É como uma loja de bricabraque, só mamarrachos e pó, todas as coisas cotadas acima do seu valor.

Uma só coisa me maravilha mais do que a estupidez com que a maioria dos homens vive a sua vida: é a inteligência que há nessa estupidez.


O cenário pretende representar o Lugar Algum, com árvores ao pé das camas, com neve branca no céu azul. Apresentando lareiras dotadas de pêndulos a fim de servir de portas, e palmeiras no pé das camas, para serem comidas por pequenos elefantes trepados nas estantes. Esse cenário resulta de um desejo de provocação, de negação e de destruição do teatro. Teatro destruído pelo próprio teatro. E quando não existe mais nada no palco que tenha vestígio da figuração, da verossimilhança, da coerência, ainda assim existe algo para ser visto: a teatralidade.

Não se identifica com estas formas demasiado bizarras e extravagantes de assumir a diferença, prefere génios sóbrios e discretos,cuja genialidade vem de dentro para fora. Todas as manifestações exteriores de genialidade são apócrifas e de um exibicionismo desagradável e, até ,inestético...



Esse é um génio, é o que é novo é (...) Outro é um deus, e as crianças do mundo não lhe cospem na cara. Queria ser uma pedra, não aspiro a mais, quero Ser uma coisa que não possa ter vergonha nem desespero, Fui rei nos meus sonhos, mas nem sonhos houve, além de mim E a última palavra que se escreve nos livros é a palavra Fim.

A vida consiste no equilíbrio de duas forças, a de integração e a de desintegração, o anabolismo e catabolismo dos fisiologistas. A anulação da força de desintegração (impossível na matéria orgânica) seria a não‑vida (e, é por isso, que é impossível na matéria orgânica); a anulação da força de integração é a morte. Como o espírito é uma coisa viva (e existe ligado a uma outra coisa viva, que é o cérebro e o sistema nervoso, e, enfim, o corpo), no espírito operam, como em toda a vida, estas forças de integração e de desintegração. E, como no corpo, a anulação da desintegração seria a não existência do espírito; e a anulação da integração o que chamamos loucura. Quanto mais alto um organismo na escala evolutiva, mais complexo é esse organismo; quanto mais complexo mais desintegrável, mais são as forças de desintegração que tem dentro de si. Do mesmo modo, quanto mais alto um espírito, tanto mais complexas as forças de desintegração que em si tem. Só por um agente tóxico, ou um traumatismo violento, podem os animais «endoidecer» — isto é, só por uma desintegração anormal. Aparte isso, não são susceptíveis de loucura; a desintegração do seu espírito é simples, a integração faz‑se sempre sem esforço.
Quando num indivíduo se dá um desenvolvimento das faculdades mentais de integração, nem que haja um desenvolvimento paralelo das faculdades mentais de desintegração, esse indivíduo é o que se chama um homem de talento. Não havendo um desenvolvimento mais que normal das qualidades de desintegração, o maior desenvolvimento das de integração não é chamado a operar em plena força; tem plena força, mas opera mais lentamente do que poderia.Quando, porém, com esse grande desenvolvimento das qualidades de integração coexista um desenvolvimento igualmente grande das de desintegração — isto é, uma psiconervose — , as qualidades de integração passam a funcionar rápida e profundamente, para se não deixarem arrastar pelas outras. Dá‑se, pelo equilíbrio hipersão de um fenómeno mórbido, uma hiperharmonia do espírito. A essa hiperharmonia chamamos génio.


O génio, o crime e a loucura provêm, por igual, de uma anormalidade, representam, de diferentes maneiras, uma inadaptação ao meio. Se repousam, porém, sobre um igual fundo degenerativo, se o génio constitui, de por si, uma espécie nosográfica — são coisas que não sabemos. Manifestação especial de epilepsia larvada, como precipitadamente quis Lombroso, ou manifestação de uma diatese degenerativa, o certo é que o génio é, de sua natureza, uma anormalidade. Sucede que a imaginação simplista das multidões não destrinça de instinto entre o que na personalidade do homem superior constitui, ou representa, superioridade, e o que nela resulta de concomitante, ou intercorrente, anormalidade psíquica, patentemente tal. No fundo, esta intuição espontânea é justa. Na personalidade tudo se liga? se interrelaciona. Não podemos “separar”, salvo por um processo analítico conscientemente truncador da realidade, na personalidade de Goethe, por exemplo, a modalidade específica da sua ideação literária e a tendência alucinativa que, como se sabe, obriga a autoscopia externa; nem podemos separar na personalidade de Shakespeare a intuição dramática de, por exemplo, a inversão sexual.
A grande multidão de fascinados inferiores, incapazes de criar (...), falhos de inibição e de senso crítico, na impossibilidade de (... ) imitar os poemas de Musset ou os de Verlaine, podem contudo, com maior aproximação, plagiar ao primeiro o copo [?] gigantesco com que se embriagava quotidianamente, e ao segundo a sua incurável vagabundagem e amoralidade de degenerado típico. Quem não pode fazer versos como Baudelaire pode, porém, tingir os cabelos de verde. [...]



O génio é o conseguimento, pela inteligência racional, do que é próprio conseguir só pela inteligência analógica ou intuitiva, e, por outra, o conseguimento pela inteligência intuitiva do que é próprio conseguir só pela inteligência racional. Tem-se dito, muitas vezes, que o génio é como um prenúncio da humanidade futura. Mais justo fora dizer que é um prenúncio do estado futuro da humanidade, em que se opere a fusão das duas inteligências, ao mesmo tempo que se opera superiormente a vera fusão, no novo Cristo, das duas Naturezas. Para conseguir, pela inteligência racional, o que verdadeiramente só a inteligência intuitiva consegue, é preciso atingir um estado de inteligência em que (1) se vive na abstracção com a mesma vitalidade da alma com que se vive no concreto, (2) se consiga raciocinar sem preconceito mas prisão à pessoa, fazendo a razão, não, como no homem natural, por desenvolvido que esteja, a serva esclarecida da emoção e do desejo, senão, não só a dominadora, mas a liberta dele, (3) se possa imaginar com a inteligência, (...) (3) se erga a inteligência acima da unidade, vivendo a contradição logicamente como começou a fazê-lo Hegel, seguindo de longe e com maiormente, o traço dado, um pouco ocultamente, mas também um pouco empiricamente, por Heraclito.

Às vezes, quando ergo a cabeça estonteada dos livros em que escrevo as contas alheias e a ausência de vida própria, sinto uma náusea física, que pode ser de me curvar, mas que transcende os números e a desilusão. A vida desgosta-me como um remédio inútil. E é então que eu sinto com visões claras como seria fácil o afastamento deste tédio se eu tivesse a simples força de o querer deveras afastar. Vivemos pela acção, isto é, pela vontade. Aos que não sabemos querer — sejamos génios ou mendigos — irmana-nos a impotência. De que me serve citar-me génio se resulto ajudante de guarda-livros? Agir, eis a inteligência verdadeira. Serei o que quiser. Mas tenho que querer o que for. O êxito está em ter êxito, e não em ter condições...

À minha incapacidade de viver chamariam génio, à minha cobardia, requinte.
Está saturada de génios...

Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e erróneo nesta terra?


Tu não o sabes, tu não sabes que o não sabes, tu não queres saber nem não saber. Despiste de propósitos a tua vida, nimbaste de irrealidade a teu mostrar-te, vestiste-te de perfeição e de intangibilidade, para que nem as Horas te beijassem, nem os Dias te sorrissem, nem as Noites te viessem pôr a lua entre as mãos para que ela parecesse um lírio. Desfolha ó meu amor sobre mim pétalas de melhores rosas, de mais perfeitos lírios, pétalas de crisântemos (...) cheirosas à melodia do seu nome. E eu morrerei em mim a tua vida, Virgem que nenhum abraço espera, que nenhum beijo busca, que nenhum pensamento desflora.

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Génio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho génios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicómios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...



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