Não é neccessário vivermos ao lado de alguém para nos sentirmos ligados a esse alguém mais do que a qualquer outra pessoa...

quinta-feira, 22 de outubro de 2015

Língua, Prosa, Poesia...

Uma língua, num instante dado, ainda não existe, noutro instante depois já poderemos identificá-la, reconhecê-la, dar-lhe nome. Entre esses dois instantes, por assim dizer unívocos, é grande a dificuldade de apurar até que ponto o que há-de ser já está sendo, ou se o que foi já se transformou bastante para que seja possível antecipá-lo como forma do que será. É a mil vezes repetida metáfora da crisálida, vida entre duas vidas, simultaneamente criadora. Assim se terá feito a passagem do latim ao português, com aquela crisálida linguística pelo meio a tentar chegar aos mesmos significados através doutros significantes.
Abusando dos privilégios generalizadores do ficcionista, em quem sempre habita alguma animadversão contra a inamobilidade dos factos, tenho afirmado que bem mais importante que o facto em si é o momento em que ele se produz, e que, sem uma compreensão geral de quanto no tempo os envolve, os factos tornam-se, não raro, ininteligíveis, apenas os salvando de se tornarem em enigmas o seu próprio peso bruto, que acaba por constituí-los como evidências mais ou menos incontornáveis. É por isso que alusões à hora, ao instante, ao momento, à época regressam com insistência a uma reflexão que deveria orientar-se unicamente para a situação actual, uma vez que é do actual estado da língua portuguesa que me propus ocupar. Ainda que, confesso-o, me fosse de grande gosto, além do proveito que me traria, saber que causas se congregaram para que o português escrito, e presumo que também o falado, atingisse um tão alto grau de beleza no século XVII, por exemplo, e que enfermidades o atacaram depois e o trouxeram, com algumas intermitências fulgurantes (Almeida Garrett em primeiro lugar), a esta outra crisálida em que se está preparando não sei que insecto, por todos os indícios, provavelmente, um mutante.
Porém, muito mais do que saber que maleitas terão surgido nesse e noutros passados, importaria averiguar as causas, e propor os remédios, se ainda os há, para a acelerada degradação que está corroendo a língua portuguesa, essa que tanto nos envaidece chamar língua de Camões, sem nos perguntarmos se o mesmo Camões não a cuspiria da sua boca. Eu sei, ai de mim, que os optimistas são doutro parecer: dizem eles que a língua portuguesa não precisou de quem a cuidasse durante todos estes séculos e nem por isso se finou, que uma língua é um ser vivo e, como tal, eminentemente adaptável, que essa capacidade de adaptação é a própria condição da vida, e que, outra vez metaforicamente falando, depois de bem baralhados os naipes, sempre estarão na mesa as mesmas cartas, isto é, haverá língua portuguesa bastante para que os portugueses saibam do que estou a falar. Oxalá. Mas eu, se é preciso dizê-lo, por deformação original de espírito ou cepticismo que veio com a idade, não sou optimista. A convivência pacífica nunca foi a característica principal das coexistências linguísticas: por modos mais ou menos sub-reptícios sempre se estabeleceram modalidades de cerco, sempre se delinearam manobras de penetração, mas os vagares da História e a rudimentaridade das técnicas de comunicação, no passado, retardaram e alargaram os processos de envolvimento, absorção e substituição, o que nos permitia, sem maior inquietação, considerar que tudo isso era da ordem do natural e do lógico, como se na torre de Babel tivesse ficado traçado o destino de cada língua, vida, paixão e morte, triunfo e derrota, ressurreição nunca.
Ora, as línguas hoje, batem-se. Não há declaração de guerra, mas a luta é sem quartel. A História, que antes não fazia mais que andar, voa agora, e os actuais meios de comunicação de massa excedem, na sua mais simples expressão, mesmo o poder imaginativo daqueles que, como o autor destas linhas, fazem precisamente da imaginação o seu instrumento de trabalho. Tecnicamente, a única diferença entre Homero e nós é que ele, segundo consta, falava apenas, e nós, mesmo quando falamos, temos uma escrita a informar o nosso discurso. Claro que desta guerra de falantes e escreventes não se esperam, apesar de tudo, resultados definitivos em pouco tempo. A inércia das línguas é um factor de retardamento, mas as consequências derradeiras, verificáveis não sei quando, mas previsíveis, mostrarão, então demasiado tarde, que o emurchecimento prematuro daquela árvore anunciava já extinção de toda a floresta.
Línguas que hoje se apresentam como apenas hegemónicas em superfície tendem a penetrar nos tecidos profundos das línguas subalternizadas, sobretudo se estas não souberem, a tempo, encontrar em si próprias uma força vital que lhes permitisse resistir ao desbarato a que, de forma quase sistemática, se vêem sujeitas, agora que as comunicações no nosso planeta são o que são. Num livro que escrevi há alguns anos, chamado Viagem a Portugal, dei a um breve capítulo da parte consagrada ao Algarve o título “ O português tal qual se cala”. Não preciso de explicar porquê. Hoje, uma língua que não se defende, morre. Não de morte súbita, já o sabemos, mas irá caindo aos poucos num estado de agonia desesperada que poderá levar séculos a consumar-se, dando em cada momento a ilusão de que continua viva, e por esta maneira afagando a indolência ou mascarando a cumplicidade, consciente ou não, dos seus suicidários falantes.
O quadro é, evidentemente, sombrio. Não faltará entre nós quem alegue, para contrariá-lo, a nova possibilidade de renovação e florescimento da língua portuguesa que nos é oferecida pelos países de África que, miraculosamente, no acto da sua independência, decidiram adoptar o português para sua língua oficial. Foi um acontecimento de grande importância, sem dúvida, mas que não seria prudente sobrestimar: mais do que uma decisão motivadamente sociocultural, foi um gesto de política pragmática que o futuro virá a confirmar ou não, quer por força das razões próprias, quer pela pressão envolvente das línguas periféricas. Acresce ainda que seria um acto de inadmissível abdicação entregar a outrem responsabilidades que são conjuntamente nossas, de nós, portugueses, que, sendo certo que não merecemos mais do que outros a língua por termos sido os criadores dela, também seguramente a não merecemos menos, quer nos direitos, quer nos deveres. Aliás, a frente principal da luta pela sobrevivência da língua portuguesa está no próprio país de origem: se nele se perder, há muitas probalidades de que venha a perder-se nos outros lugares do mundo que a falam. Não esqueçamos que as línguas se cercam umas às outras, não esqueçamos que a língua inglesa as cerca a todas e a todos nos cerca.
Uma reflexão mais, esta sobre o ensino da língua nas nossas escolas. Não quero duvidar da competência de quem ensina nem da vontade de saber que morará no espírito de quem aprende, mas interrogo-me com apreensão sobre os motivos do baixíssimo nível de conhecimentos e da confrangedora inépcia com que gerações de estudantes de todos os graus lidam com a nossa língua quando a escrevem e quando a falam. Dizem que se trata de um fenómeno mundial, dizem-me que também no estrangeiro o erro de ortografia é rei e pouco lhe vai faltando para ser lei. Será, assim, mas evidentemente não é dos males alheios que poderemos esperar a cura das nossas próprias doenças. A escola, que tão mal ensina a escrever, não ensina, de todo, a falar. A aprendizagem elementar da fala e o desenvolvimento do falar estão entregues às famílias, ao meio técnico e cultural em que a ciência vai crescer, o que em si mesmo não é um mal, uma vez que assim costuma decorrer todo o processo de aprendizagem, pelo exemplo e pela exemplificação, sucessivos e constituidores. Mas a escola, não intervindo, como efectivamente não intervém, no processo edificador da fala, demite-se de uma responsabilidade em que deveria ser parte privilegiada, e, pelo contrário, vai receber o influxo negativo dos surtos degenerativos externos, assim “oficializando”, indirectamente, o errado e o vicioso contra o harmonioso e o exacto. E é facilmente verificável que a escola, não só não ensina a falar, como fala mal ela própria.


Amor é prosa Sexo é poesia..

Amor é um Sexo é dois...

A diferença entre poesia/ prosa origina afirmações absurdas, que, tal como os poetas portugueses, proliferam na internet. Só um exemplo: A prosa é o género que se centra em questões lógicas e racionais, é a captação do não eu, ou seja, a prosa trata de assuntos sociais, de emoções de outras pessoas ou simplesmente retrata objetos..Que descaramento: assim, leve e despudoramente, se nega o estatuto de obra em prosa a grande parte do universo literário romanesco...


Temos como abstracção máxima da matéria o espaço com as suas 3 dimensões; do pensamento, a palavra, com as suas três dimensões também, que são a ideia, a imagem e o ritmo, porque toda palavra representa uma ideia, projecta uma imagem e tem um som. A escultura e a poesia, a idealização humana do espaço e a idealização humana da palavra, são pois as duas únicas artes grandes... Na prosa o ritmo existe; na poesia o ritmo é.

Se repararmos em quais são as coisas essenciais da poesia, facilmente nos convenceremos de que são coisas em que não é preciso tocar para reformar a arte. Uma é a construção, outra é a Weltanschauung.


A poesia é a emoção expressa em ritmo através do pensamento, como a música é essa mesma expressão, mas directa, sem o intermédio da ideia.Musicar um poema é acentuar-lhe a emoção, reforçando-lhe o ritmo.

A arte, que se faz com a ideia, e portanto com a palavra, tem duas formas — a poesia e a prosa. Visto que ambas elas se formam de palavras, não há entre elas diferença substancial. A diferença que há é acidental, e, sendo acidental, tem que derivar-se daquilo que é acidental, ou exterior, na palavra. O que há de exterior na palavra é o som; o que há, pois, de exterior numa série de palavras é o ritmo.
Poesia e prosa não se distinguem? pois, senão pelo ritmo. O ritmo corresponde, é certo, a um movimento íntimo da alma; mas, como esse movimento íntimo se manifesta no ritmo, escusamos de atender a ele, ou a qual ele seja, no estudo do ritmo, e no da diferença entre a poesia e a prosa.
O ritmo consiste numa graduação de sons e de faltas de som, como o mundo na graduação do ser e do não-ser. Quer isto dizer que o ritmo consiste numa distribuição de palavras, que são sons, e de pausas, que são faltas de som. As palavras, como existem, compete um ritmo de variação, dependente da extensão das palavras, da sua acentuação, da sua qualidade e quantidade silábica, e também do sentido, quer próprio, quer dependente das outras palavras, que lhes são contexto. As pausas, como não existem, compete tão-somente um ritmo de extensão; isto é, a pausa, como não é mais que a falta de uma coisa (o som) não tem variante senão a sua duração. A pausa é mais longa ou mais breve; só isto.
Na prosa, que é a linguagem falada escrita, estas pausas são dadas por uma coisa a que se chama a pontuação, e a pontuação é determinada exclusivamente pelo sentido. Da pausa grande do parágrafo à pausa menor do período, à menor ainda do subperíodo (dada pelo ponto e vírgula, os dois pontos, ou o traço) ou à mínima, da vírgula, toda a pausa da prosa se deriva da significação do que se diz. O mais que nos é permitido variar, por arbítrio nosso, na pontuação, é num estabelecimento um pouco carregado de vírgulas, numa abertura de parágrafos onde poderia havê-lo só de períodos, ou em outras coisas assim. Mas, em todos os casos, essas pontuações não deverão tender para acentuar o sentido; nunca poderão quebrá-lo ou interrompê-lo, porque a prosa, sendo a linguagem falada escrita, é, por isso mesmo, o reflexo da ideia, para cuja emissão a palavra falada existe.
Se, porém, quisermos acentuar o ritmo para além da ordem lógica, em virtude de em nós a emoção, que produz a entonação (e o canto), predominar sobre a ideia propriamente dita, abriremos pausas artificiais no discurso; e essas pausas são artificiais porque a emoção, quanto à ideia, é externa (visto que não é a ideia), e portanto artificial.
Como estas pausas artificiais não podem ser designadas por pontuação, pois a pontuação designa as pausas naturais, temos que designá-las por qualquer coisa que, marcando-as acentuadamente, todavia as marca como artificiais. Isto fazemos dispondo o discurso em linhas separadas, sendo a pausa indicada pela passagem de linha. A este género de discurso se chama poesia. A pausa de fim de verso é independente do sentido, e é tão nítida como se ali houvesse pontuação. Erram pois contra toda a substância da poesia os que lêem ou dizem versos, correndo-os de um para outro quando não há pontuação no fim de uma linha. O discurso poético é exposto em linhas precisamente para que se faça uma pausa, artificial embora, onde a linha termina. A poesia é assim a prosa feita música, ou a prosa cantada; o artifício da música é conjugado com a naturalidade da palavra.
Nos princípios da poesia, é o próprio ritmo musical que estabelece estas pausas; a pausa da voz que canta acentua a pausa do fim de verso. Mais tarde, por um processo ainda vagamente musical, que é o quantitativo, dá-se a cada verso um igual valor musical, e a voz conhece por antecipação onde a linha acaba, sendo-lhe dada assim uma guia para a leitura. Mais tarde, dispensa-se essa base musical, mas, para que a guia não falte, estabelece-se um sistema de referências pelo qual se sabe onde termina o verso, e esse sistema é a rima. Mais tarde ainda, fixo já o verso em determinadas medidas, quantitativas pelas sílabas que não pela quantidade, a rima dispensa-se, é o chamado verso branco — o regular. Finalmente, se chega ao justo critério do verso de que basta marcar pela volta de linha que o discurso esta escrito em verso para se dever ler como tal, para efectivamente ser tal.
Assim se chega ao critério moderno do verso, em que não há exigência de quantidade, de sílabas certas, nem de rima. A linha isolada é uma unidade rítmica. A qualidade rítmica depende, como aliás dependeu sempre, do poeta.
Assim, a diferença entre a prosa e o verso, sem desaparecer, longe até de desaparecer, acentua-se tal qual é, sem mais nada. O verso é a prosa artificial, o discurso disposto musicalmente. Não é outra a diferença entre as duas formas da palavra escrita.

Às três subespécies da poesia lírica — a heróica, a elegíaca e a lírica propriamente dita — atribuíam os antigos a protecção de três musas, Calíope para a primeira, Érato para a segunda, e para a terceira Polímnia.
A poesia lírica pode exprimir directamente os sentimentos e as emoções do poeta, sem deles querer tirar conclusões gerais, ou lhes atribuir maior sentido que o de serem simples emoções e sentimentos: é esta a poesia propriamente, ou simplesmente, lírica. A esta é que Polímnia rege. Pode também a poesia lírica exprimir não sentimentos ou emoções do poeta, senão o conceito que forma desses sentimentos, ou dos alheios: é esta, propriamente, a poesia elegíaca, que não há mister que seja triste, como o uso vulgar do nome ordinariamente indica. Desta poesia Érato é a musa. Pode, por fim, a poesia lírica dedicar-se a exaltar ou a deprimir a pessoa ou os feitos de outrem, não tanto os comentando, quanto os elevando ou diminuindo: é esta, em seus dois ramos, a poesia heróica e a satírica. A estas legitimamente rege Calíope, se bem que lhe não dessem os antigos a regência da sátira.


Conhece-se a poesia lírica pelo facto de ser quase desprezível a ideação ou o sentimento para existir uma boa poesia lírica. Assim o «Ai flores, ai flores do verde pino» ou o «Levantou-se a velida» de D. Dinis, rei de Portugal, são poesias líricas maravilhosas, conquanto contenham uma insignificante base ideativa ou mesmo emocional. É o lirismo puro. Claro está que, dentro d'este lirismo, a poesia será tanto maior quanto mais ideia e emoção contém.

Há poesia em tudo — na terra e no mar, nos lagos e nas margens dos rios. Há-a também na cidade — não o neguemos — facto evidente para mim enquanto aqui estou sentado: há poesia nesta mesa, neste papel, neste tinteiro; há poesia na trepidação dos carros nas ruas em cada movimento ínfimo, vulgar, ridículo, de um operário que, do outro lado da rua, pinta a tabuleta de um talho.
O meu sentido interior de tal modo predomina sobre os meus cinco sentidos que — estou convencido — vejo as coisas desta vida de modo diferente do dos outros homens. Existe para mim — existia — um tesouro de significado numa coisa tão ridícula como uma chave, um prego na parede, os bigodes de um gato. Encontro toda uma plenitude de sugestão espiritual no espectáculo de uma ave doméstica com os seus pintainhos que, com ar pimpão, atravessam a rua. Encontro um significado mais profundo do que os terrores humanos no aroma do sândalo, nas latas velhas jazendo numa montureira, numa caixa de fósforos caída na valeta, em dois papéis sujos que, num dia ventoso, rolam e se perseguem rua abaixo. E que poesia é espanto, admiração, como de um ser tombado dos céus em plena consciência da sua queda, atónito com as coisas. Como de alguém que conhecesse a alma das coisas e se esforçasse por rememorar esse conhecimento, lembrando-se de que não era assim que as conhecia, não com estas formas e nestas condições, mas de nada mais se recordando.


A prosa, que é predominantemente expressão de ideias, nasce directamente da palavra. O verso, que é predominantemente expressão de emoções, nasce directamente da voz. Por isso os primeiros versos não eram ditos mas cantados. A expressão de uma ideia chamar-se-á propriamente explicação, porque expor uma ideia é explicá-la; a expressão de uma emoção chamar-se-á propriamente ritmo, porque expor uma emoção é tirar-lhe o pensamento sem lhe tirar a expressão, vocalizá-la sem a dizer.

O poeta entrega-nos a sua essência, mas a prosa toma a forma de todo o corpo e de toda a mente.

Todos esses que aí estão
atravancando meu caminho,
eles passarão...
eu passarinho.


Flores amo, não busco. Se aparecem
Me agrado ledo, que há em buscar prazeres
O desprazer da busca.
A vida seja como o sol, que é dado,
Nem arranquemos flores, que, arrancadas
Não são nossas, mas mortas.


- Gosto muito de bater na cabeça das pessoas com uma certa força.
- Gosta?
- Sim, agrada-me. Dá-me prazer. Uma pessoa vai a passar e eu chamo-a: ó, desculpe, Vossa Excelência?!
- E ela - a Excelência - vai?
- Sim. Quem não gosta de ser chamado à distância por Vossa Excelência? Apanho sempre, primeiro, as pessoas pela vaidade… é a melhor forma.
- E quando a pessoa-Excelência chega ao pé de Vossa Excelência, o que acontece?
- Ela aproxima-se e pergunta-me: o que pretende? E eu, com toda a educação e não querendo esconder nada, digo: gostava de bater com certa força na cabeça de Vossa Excelência. É isto que eu digo, apenas. Nem mais uma palavra.



– Detenho-me, sim, diante de um quadro belo. E fico ali com os dois olhos fixos, sentado, a olhar uma hora para ele, para o quadro belo… dois dias, duas semanas… duas semanas a olhar para um quadro belo. Como se fosse um tonto, entende?
– Entendo perfeitamente, Excelência. Como se fosse um tonto.
– E um tonto, peço desculpa por este parêntesis, porque apreciar o que é belo durante algum tempo é sensato… agora apreciar o que é belo durante muito tempo deixa de o ser. Parece estranho, mas é mesmo assim.
– Muito bem, Excelência.
– Mas deste exemplo concluo o seguinte.
– Conclui? Já?
– Eu gosto de dar um exemplo e de concluir logo a seguir. É uma metodologia pessoal.
– Sim?
– Sim. É bem mais habitual, diga-se, primeiro concluir-se e depois, de vez em quando, dar-se um exemplo… ou mesmo, quem sabe, apresentar argumentos.
– A sua metodologia, portanto, Excelência, nos tempos que correm é quase…
– Revolucionária?
– Revolucionária, sim. Apresentar um exemplo e logo depois a conclusão.
– De facto, para os tempos que correm, é uma metodologia cautelosa e lenta.
– Mas bem rápida, se compararmos com os tempos antigos.
– O mais habitual agora é argumentar-se através de conclusões.
– Exactamente.
– Eu concluo logo na primeira frase. O meu interlocutor conclui na sua primeira frase. E ficamos assim. Duas frases, duas conclusões. Um diálogo de eficácia absoluta.
– No fundo, utilizamos conclusões como se fossem argumentos e assim poupamos tempo uns aos outros.
– Em vez de trocarmos argumentos, trocamos conclusões. Não há tempo para mais.
– Estive ali a trocar conclusões – eis, portanto, o que deveríamos dizer. E não estive ali a trocar argumentos.
– Muito bem, em frente! Conclua, Excelência.
– Pois bem, concluo então com a conclusão abrupta, gosto delas.
– Gosta?


O que é escrever? Disponibilidade amorosa das palavras para se ligarem umas às outras - a função do escritor é individualizar as palavras...

Os deuses concedem
Poucos mais prazeres
Que estes, que são nada.
Mas também concedem
Não querermos outros.


Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído Num baixo mar enganador de espuma; E o grande sonho despertado em bruma, O grande sonho - ó dor! - quase vivido... Momentos d'alma que desbaratei... Templos aonde nunca pus um altar... Rios que perdi sem os levar ao mar... Ânsias que foram mas que não fixei...



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