Não é neccessário vivermos ao lado de alguém para nos sentirmos ligados a esse alguém mais do que a qualquer outra pessoa...

sexta-feira, 23 de outubro de 2015

Um olhar sobre a cegueira...

Aula dada por Gonçalo M.Tavares...

Ponto prévio- Luaty Beirão , um exemplo da cegueira política do século XXI...

Ensaio sobre a cegueira - grande criação artística ligada à cegueira.

Causas da cegueira: desatenção;velocidade; aparências; ansiedade/ excitação; falta de atenção( fome,medo); imagens exteriores;silêncio; fundamentalismos( religiosos e lógicos); objetividade; progresso/ tecnologia; muros; paixão( a forma mais bonita de cegueira)...

O disco amarelo iluminou-se. Dois dos automóveis da frente aceleraram antes que o sinal vermelho aparecesse. Na passadeira de peões surgiu o desenho do homem verde. A gente que esperava começou a atravessar a rua pisando as faixas brancas pintadas na capa negra do asfalto, não há nada que menos se pareça com uma zebra, porém assim lhe chamam. Os automobilistas, impacientes, com o pé no pedal da embraiagem, mantinham em tensão os carros, avançando, recuando, como cavalos nervosos que sentissem vir no ar a chibata. Os peões já acabaram de passar, mas o sinal de caminho livre para os carros vai tardar ainda alguns segundos, há quem sustente que esta demora, aparentemente tão insignificante, se a multiplicarmos pelos milhares de semáforos existentes na cidade e pelas mudanças sucessivas das três cores de cada um, é uma das causas mais consideráveis dos engorgitamentos da circulação automóvel, ou engarrafamentos, se quisermos usar o termo corrente.
O sinal verde acendeu-se enfim, bruscamente os carros arrancaram, mas logo se notou que não tinham arrancado todos por igual. O primeiro da fila do meio está parado, deve haver ali um problema mecânico qualquer, o acelerador solto, a alavanca da caixa de velocidades que se encravou, ou uma avaria do sistema hidráulico, blocagem dos travões, falha do circuito eléctrico, se é que não se lhe acabou simplesmente a gasolina, não seria a primeira vez que se dava o caso. O novo ajuntamento de peões que está a formar-se nos passeios vê o condutor do automóvel imobilizado a esbracejar por trás do pára-brisas, enquanto os carros atrás dele buzinam frenéticos. Alguns condutores já saltaram para a rua, dispostos a empurrar o automóvel empanado para onde não fique a estorvar o trânsito, batem furiosamente nos vidros fechados, o homem que está lá dentro vira a cabeça para eles, a um lado, a outro, vê-se que grita qualquer coisa, pelos movimentos da boca percebe-se que repete uma palavra, uma não, duas, assim é realmente, consoante se vai ficar a saber quando alguém, enfim, conseguir abrir uma porta, Estou cego.
Ninguém o diria. Apreciados como neste momento é possível, apenas de relance, os olhos do homem parecem sãos, a íris apresenta-se nítida, luminosa, a esclerótica branca, compacta como porcelana.


Cegueira é não estar atento,o que se pode relacionar com uma folha em branco...Para estar atento é preciso não ter medo, não ter fome... Uma criança com fome e que vive o terror de ser espancada, não vê a beleza... Para ela só existe a fome o o medo...

O que se vê na imagem projetada?
Tudo o que parece ser uma única coisa é constituído por outras coisas: é preciso observar com atenção. A velocidade é inimiga da capacidade de ver.Numa viagem de comboio, à medida que a velocidade aumenta,deixamos de ver, unicamente temos perante os nossos olhos uma espécie de branco, um muro que oculta qualquer paraíso que eventualmente possa existir. Ele está lá, mas não o conseguimos ver por causa da velocidade. A velocidade é inimiga da beleza.
O que se vê na imagem projetada? Uma mercearia? Há um xadrez,uma torrada,um cifão que parecem ser candeeiros, mas nada é o que parece...
Outro tipo de cegueira é não ver os pormenores. Para os ver, é necessário parar, atentar, ver sem ansiedade,sem excitação. Hoje observa-se com exagerada ansiedade, parece que queremos que a próxima imagem nos salve...

A arte surrealista denuncia outra forma de cegueira: a cegueira de quem não vê as imagens interiores.

( " Esta cena é a mais horrível que vi em cinema, tão horrível que não a consigo ver" )
Os surrealistas defendem que devíamos todos ser cegos para podermos ver as nossas imagens interiores.
Exercício - fechar os olhos , ver a estátua do marquês de pombal e depois olhar para a garrafa de água que está em cima da mesa...Para ver nitidamente o marquês de pombal,tenho de deixar de ver a garrafa que está à minha frente...
Há duas maneiras de ser feliz: através do que observamos na realidade ou através das imagens interiores que produzimos. Este segundo processo é tão válido como o primeiro. Há doenças( ?) em que se constrói um mundo imaginário e isso é o máximo da felicidade. Quando se perde a noção da realidade, não há verdade, mas pode haver felicidade. "Na minha opinião, mesmo sendo falsa, a melhor opção é sempre a felicidade."
Não há testemunhos de surrealistas que se tenham cegado, mas tapavam os olhos para ver...numa espécie de jogo da cabra cega.

O que acontece a quem está a ouvir o silêncio?

Ao ouvir o silêncio, num concerto de cage, só se ouve uma tensão enorme - niguém quer interromper o silêncio e depois o silêncio quebra-se com o aplauso do silêncio. Podemos cegar em termos auditivos...


Cada um é para o que nasce...

Três brasileiras cegas cantam sempre o mesmo: oriundas de uma família muito pobre,ganham a vida a cantar e dizem:" Tivemos vários irmãos,todos viam e todos morreram"
"A imagem delas, a dar beijos uma às outras, é quase a de um mito grego moderno..."

Estórias
1- Um músico cego contava que , nos bailes, quando queria convidar uma rapariga para dançar, como fazia o convite com um gesto pouco preciso, se levantavam sempre três raparigas... Assim, ele tinha o privilégio de poder escolher...
2- Quando GMT esteve em Moscovo, a visitar a casa de Tolstoi, a cadeira onde o escritor sempre escrevia tinha os pés cortados. Na verdade, à medida que foi perdendo a visão, para mais se aproximar da mesa e do texto que escrevia, foi cortando os pés à cadeira. Por curiosidade fez as contas e verificou que T acabou a ter de escrever os textos a 1 , no máximo 2 cm, do papel.
3 - Teatro Nō( nô, nou ou noh )japonês
Neste tipo de teatro,existem várias personagens tipo. Uma delas é o Ausente,um ator que fica no meio do palco, à frente.O bom ator é o que consegue que o público não o veja,ou melhor, que os espectadores o vejam como ausente, ele deve conseguir "cegar" quem o observa.
O ator , que desempenha o papel de ausente, é sempre o cabeça de cartaz e é o mais bem pago... O sonho de qualquer ator é vir a ser Ausente.

Cegueiras do nosso século
Fundamentalismo religioso ( Perguntaram-me a tabuada e eu rezei) e fundamentalismo da lógica( Pediram-me uma oração, mas eu só sabia a tabuada)
A Europa, atualmente, é a tabuada: 2xDeus= 6
A cegueira dos que só rezam é um inimigo de peso desde a idade média; agora o inimigo é a lógica, a objetividade pura. Se eu digo, isto é objetivo, estou a afirmar que isto é verdade e que não se discute - cegueira da objetividade. Se eu digo, isto é subjetivo, estou a dizer que isto é só um ponto de vista. A objetividade é sim para Hitler e sim para os judeus.

Cegueira do progresso- fascínio, verdadeiramente infantil, pelo progresso tecnológico, que,raramente, corresponde a progresso humano...


Cegueira imposta

Se erguessem um muro entre nós, claro que não nos veríamos. O grande contraponto da cegueira é a linha do horizonte, uma ficção individual, uma miragem...

"O antídoto da cegueira é a utopia."



Quando a fé move montanhas...

Francis Alys juntou uma centena de estudantes que, num esforço totalmente inútil, conseguiram mover uma montanha um centímetro. Fazer o que não conduz a nada, o que não tem qualqer objetivo...
Outro exemplo consite em empurrar um enorme bloco de gelo, pelas ruas da cidade do México, durante horas e horas, até que o bloco desapareça totalmente.

" Por fim, a Paixão, a forma mais bonita de cegueira..."
Os filmes de Andrei Tarkovski são o inverso da cegueira: "Podemos demorar uma vida a inteira a ver um único filme.."



Tarkovsky não mostra o beijo, mas o ponto de vista do beijo... "Um ponto de vista individual, privado, é o único modo de combater a cegueira."

"Num beijo intenso, fecham-se os olhos: é a única hipótese de cegueira que nos salva..."

Fim da aula...

Talvez quem vê bem não sirva para sentir E não agrada por estar muito antes das maneiras. É preciso ter modos para todas as coisas, E cada coisa tem o seu modo, e o amor também.Quem tem o modo de ver os campos pelas ervas Não deve ter a cegueira que faz fazer sentir. Amei, e não fui amado, o que só vi no fim,Porque não se é amado como se nasce mas como acontece.

Não basta abrir a janela para ver os campos e o rio. Não é o bastante não ser cego para ver as árvores e as flores. É preciso também não ter filosofia nenhuma. Com filosofia não há árvores: há idéias apenas. Há só cada um de nós, como uma cave. Há só uma janela fechada, e o mundo lá fora; E um sonho do que se poderia ver se a janela se abrisse, Que nunca é o que se vê quando se abre a janela.

(Ao anoitecer: De repente, como se um destino médico me houvesse operado de uma cegueira antiga com grandes resultados súbitos, ergo a cabeça, da minha vida anónima, para o conhecimento claro de como existo. E vejo que tudo quanto tenho feito, tudo quanto tenho pensado, tudo quanto tenho sido, é uma espécie de engano e de loucura. Maravilho-me do que consegui não ver. Estranho quanto fui e que vejo que afinal não sou.)


Corifeu - Ó sofrimento horrível de ver-se! Eis o quadro mais horripilante que jamais tenho presenciado em minha vida! Que loucura, - ó infeliz! -caiu sobre ti? Que divindade levou ao cúmulo o teu destino sinistro, esmagando-te ao peso de males que ultrapassam a
dor humana? Oh! Como és infeliz! Não tenho coragem, sequer, para volver meus olhos e contemplar-te assim; no entanto, eu quereria
ouvir-te, interrogar-te, e ver-te! Tal é o arrepio de horror que tu me causas!

Édipo - Ó nuvem sombria, execrável treva que caiu sobre mim, escuridão pavorosa e sem remédio! Ai de mim! Como me traspassam as dores do meu sofrimento e a lembrança de meu infortúnio! ...Tu és o único amigo que me resta, visto que tens pena deste mísero cego... Eu sei que estás aí... Na escuridão em que estou, reconheço tua voz!
Corifeu - Que horrível coisa fizeste, ó Édipo! Como tiveste coragem de ferir assim os olhos? Que divindade a isso te levou?
Édipo - Foi Apolo! Sim, foi Apolo, meus amigos, o autor de meus atrozes sofrimentos! Mas ninguém mais me arrancou os olhos; fui eu mesmo! Desgraçado de mim! Para que ver, se já não poderia ver mais nada que fosse agradável a meus olhos?

Corifeu - Habitantes de Tebas, minha Pátria! Vede este Édipo, que decifrou os famosos enigmas! Deste homem, tão poderoso, quem não sentirá inveja? No entanto, em que torrente de desgraças se precipitou! Assim, não consideremos feliz nenhum ser humano, enquanto ele não tiver atingido, sem sofrer os golpes da fatalidade, o termo de sua vida.

O pior cego é o que não quer ver...

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