Sem querer, sinto que tenho estado a pensar na minha vida. Não dei por isso, mas assim foi. Julguei que somente via e ouvia, que não era mais, em todo este meu percurso ocioso, que um reflexor de imagens dadas, um biombo branco onde a realidade projecta cores e luz em vez de sombras. Mas era mais, sem que o soubesse. Era ainda a alma que se nega, e o meu próprio abstracto observar era uma negação ainda.
Avanço lentamente, morto, e a minha visão já não é minha, já não é nada: é só a do animal humano que herdou, sem querer, a cultura grega, a ordem romana, a moral cristã e todas as mais ilusões que formam a civilização em que sinto.Onde estarão os vivos?
(...)quando o escurecer toma uma evidência de qualquer coisa prematura, e parece que tardámos muito no que fazemos de dia, gozo, mesmo entre o trabalho quotidiano, esta antecipação de não trabalhar que a própria sombra traz consigo, por isso que é noite e a noite é sono, lares, livramento. Quando as luzes se acendem no escritório amplo que deixa de ser escuro, e fazemos serão sem que cessássemos de trabalhar de dia, sinto um conforto absurdo como uma lembrança de outrem, e estou sossegado com o que escrevo como se estivesse lendo até sentir que irei dormir.
Somos todos escravos de circunstâncias externas: um dia de sol abre-nos campos largos no meio de um café de viela; uma sombra no campo encolhe-nos para dentro, e abrigam-nos mal na casa sem portas de nós mesmos; um chegar da noite, até entre coisas do dia, alarga, como um leque [que] se abra lento, a consciência íntima de dever-se repousar.(...)Reabsorvo-me, perco-me em mim, esqueço-me a noites longínquas, impolutas de dever e de mundo, virgens de mistério e de futuro. E tão suave é a sensação que me alheia do débito e do crédito que, se acaso uma pergunta me é feita, respondo suavemente, como se tivesse o meu ser oco, como se não fosse mais que a máquina de escrever que trago comigo, portátil de mim mesmo aberto. Não me choca a interrupção dos meus sonhos: de tão suaves que são, continuo sonhando-os por detrás de falar, escrever, responder, conversar até. E através de tudo o chá perdido finda, e o escritório vai fechar... Ergo do livro, que cerro lentamente, olhos cansados do choro que não tiveram, e, numa mistura de sensações, sofro que ao tentar fechar o escritório se me feche o sonho também; que no gesto da mão com que cerro o livro encubra o passado irreparável; que vá para a cama da vida sem sono, sem companhia nem sossego, no fluxo e refluxo da minha consciência misturada, como duas marés na noite negra, no fim dos destinos da saudade e da desolação.
Sabe a verdade: há muito que ela não tem qualquer mistério .. mas recusa-a: "Ó Verdade, esquece-te de mim!"...
A idade terá, inevitavelmente, influência na melancolia que,cada vez com mais frequência, a invade (Por mais que séneca, terêncio ou herman hesse elogiem a velhice, ninguém gosta de envelhecer...), mas não é o determinante. Atingiu a maturidade plena, e mais do que suficiente, aos 30 anos, portanto, bem poderia ter ficado por aí: andar a somar mais um, ano após ano, provocou a ruína física e nada, rigorosamente nada, lhe acrescentou intelectual ou espiritualmente. Há gente , não o duvida, que aprende durante toda a vida... Ao contrário, ela julga ter aprendido tudo o que é verdadeiramente importante até aos 30, 30 e tal anos...Desde então, acumula tédios, evidências, vazia do prazer de novos ensinamentos, de novas descobertas. Tudo o que lê , é tão só, na sua essência, uma releitura. Tudo o que pensa, mera reformulação de ideias já gravadas anteriormente ... Terá sido esse vazio que a fez refugiar numa infantilidade para muitos incompreensível, que a impeliu a construir emoções e seres inexistentes, numa tentativa de superar uma realidade sem nada ,nada de novo. O amor , ou a convicção dele, terá começado por ser um sucedâneo, uma tentativa espúria de dar algum sentido a este ter de permanecer... Isto não será uma revelação, mas tão só uma simples constatação. Mas nasceu revelação, revelação ficará, mesmo que não o seja...
Por vezes fêmea. Por vezes monja.Conforme a noite. Conforme o dia. Molusco. Esponja embebida num filtro de magia. Aranha de ouro presa na teia dos seus ardis. E aos pés um coração de louça quebrado em jogos infantis...
A aparição de um igual a outro, a duplicção do eu ...
De repente,parou como petrificado,como atingido por um raio,depois virou-se rapidamente para trás,olhando para as costas do transeunte que entretanto passara por ele - virou-se como se alguma coisa o tivess puxado,como se o vento tivesse girado o seu catavento.(...) O homenzinho ia depressa,em passo miúdo. Chegou a uma distância em que o senhor Goliádkin já podia ver em pormenor o seu novo companheiro noctívago - examinou-o e soltou um grito de espanto e terror; as pernas fraquejaram-lhe.(...) O desconhecido parecia-lhe agora ,de certo modo, conhecido. Nem isso teria mal nenhum se o senhor Goliádkin não tivesse reconhecido,reconhecido quase perfeitamente, o homem. Sim, já tinha visto muitas vezes quele homem, já o tinha visto outrora,já o tinha visto, até, havia pouco tempo, mas onde? (...) O senhor Goliádkin reconheceu categoricamente o seu amigo noturno. O seu amigo noturno mais não era do que ele próprio - o próprio senhor Goliádkin , outro senhor Goliádkin , mas absolutamente igual a ele - numa palavra,o que se chama um duplo dele em todos os sentidos.
Cumpriam-se plenamente todos os seus pressentimentos; tudo o que havia temido, tornava-se realidade. Faltou-lhe o alento, e sentiu um vácuo na cabeça. O desconhecido ali estava,sentado na sua frente, também com o chapéu na cabeça e a capa nos ombros. Ria mansinho,olhava para ele, e fazia acenos amistosos com a cabeça. Goliádkin quis gritar, mas não pôde, quis protestar contra aquilo, mas faltaram-lhe as forças. Quedou-se de pé, rígido de espanto, de cabelos eriçados em frente do intruso. Tinha razão para isso. Havia reconhecido o seu visitante noturno, amigo e inimigo ao mesmo tempo. Não era outro senão ele mesmo... O homem que avistava, a rir para ele, era o próprio Goliádkin, a sua imagem, a sua figura, a sua personalidade em todos os sentidos. Mais do que um sósia, era o seu duplo, o desdobramento dele mesmo...
Tanto é o que precisamos de lançar culpas a algo distante quando o que nos faltou foi a coragem de encarar o que estava na nossa frente.
...o que sucede é que tudo me cansa e aborrece, esta maldita rotina, esta repetição, este marcar passo, Distraia-se, homem, distrair-se sempre foi o melhor remédio, Dê-me licença que lhe diga que distrair-se é o remédio de quem não precisa dele...
Talvez rejeição não seja a palavra mais apropriada, o caracol não rejeita o dedo que lhe toca, encolhe-se, Será a maneira que ele tem de rejeitar, Será, No entanto, você, à vista desarmada, não tem nada de caracol, Às vezes penso que nos parecemos muito, Quem, você e eu, Não, eu e o caracol...”
...o senso comum é demasiado comum para ser senso.
De facto, nunca se sabe muito bem para que servem as vitórias, suspirou o professor de matemática, Mas as derrotas sabe-se muito bem para que servem.
...é tanto o que temos para dizer quando nos calamos...
...pensava que o pior de todos os muros é uma porta de que nunca se tem a chave, e ele não sabia onde a encontrar, nem sabia sequer se tal chave existia.
No dia catorze de outubro do ano de dois mil e quinze, não foi a fátima, não dialogou com a virgem maria, não releu vergílio ferreira, mas teve uma aparição: conheceu ,leu e pensou, pela primeira vez, no vocábulo escotomização...
Dicionário inFormal
Escotomização: (fr. scotomisation; ing. scotomization). Em psicopatologia e em psicanálise, recusa inconsciente de perceber uma realidade exterior independente do indivíduo, mas sobre a qual ele projeta desejos e fantasmas subjetivos, contra os quais ele próprio se defende. A realidade que ele observa não passa de projeção de seu ego atormentado sobre a ordem natural dos eventos. Ao escotomizar o real, ele depreza a verdade dos factos que se demonstram.
Palavras simples, que não tinham nada que me devesse impressionar extraordinariamente e, todavia, eu sentia-me agitado como nunca me sentira. Olhava para Georgina como se a visse a primeira vez, e pasmava de a ver tão bela, tão interessante. E uma situação de alma esta que não sei que a descrevessem ainda poetas nem romancistas: desprezam-na talvez, ou não a conhecem. Está sabido que as súbitas impressões causadas por um primeiro encontro sejam as mais interessantes, as mais poéticas. Eu não nego o efeito teatral dessas primeiras e repentinas sensações; mas sustento que interessa mais essoutra inesperada e estranha impressão que nos faz um objeto já conhecido, que víramos com indiferença até ali, e que de repente se nos mostra tão outro do que sempre o tínhamos considerado...
Entravam então no peristilo do Hotel Central - e nesse momento um coupé da Companhia, chegando a largo trote do lado da Rua do Arsenal, veio estacar à porta. Um esplêndido preto, já grisalho, de casaca e calção, correu logo à portinhola; de dentro um rapaz muito magro, de barba muito negra, passou-lhe para os braços uma deliciosa cadelinha escocesa, de pêlos esguedelhados, finos como seda e cor de prata; depois apeando-se, indolente e poseur, ofereceu a mão a uma senhora alta, loira, com um meio véu muito apertado e muito escuro que realçava o esplendor da sua carnação ebúrnea. Craft e Carlos afastaram-se, ela passou diante deles, com um passo soberano de deusa, maravilhosamente bem feita, deixando atrás de si como uma claridade, um reflexo de cabelos de oiro, e um aroma no ar. Trazia um casaco colante de veludo branco de Génova, e um momento sobre as lajes do peristilo brilhou o verniz das suas botinas.[...]Baptista trouxera o chá, o charuto do Alencar acabara; e ele continuava na chaise-longue, como amolecido nestas recordações, e cedendo já, num meio adormecimento, à fadiga do longo jantar... E então, pouco a pouco, diante das suas pálpebras cerradas, uma visão surgiu, tomou cor, encheu todo o aposento. Sobre o rio, a tarde morria numa paz elísia. O peristilo do Hotel Central alargava-se, claro ainda. [...] Eram três horas quando se deitou. E apenas adormecera na escuridão dos cortinados de seda, outra vez um belo dia de Inverno morria sem uma aragem, banhado de cor-de-rosa: o banal peristilo do hotel alargava-se, claro ainda na tarde; o escudeiro preto voltava, com a cadelinha nos braços; uma mulher passava, com um casaco de veludo branco de Génova, mais alta que uma criatura humana, caminhando sobre nuvens, com um grande ar de Juno que remonta ao Olimpo [...]
Foi como uma inesperada aparição - e vergou profundamente os ombros, menos a saudá-la, que a esconder a tumultuosa onda de sangue que sentia abrasar-lhe o rosto. Ela, com um vestido simples e justo de sarja preta, um colarinho direito de homem, um botão de rosa e duas folhas verdes no peito, alta e branca, sentou-se logo junto da mesa oval, acabando de desdobrar um pequeno lenço de renda. Obedecendo ao seu gesto risonho, Carlos pousou-se embaraçadamente à borda do sofá de reps. E depois de um instante de silêncio, que lhe pareceu profundo, quase solene, a voz de Maria Eduarda ergueu-se, uma voz rica e lenta, de um tom de ouro que acariciava. Através do seu enleio, Carlos percebia vagamente que ela lhe agradecia os cuidados que ele tivera com Rosa: e, de cada vez que o seu olhar se demorava nela um instante mais, descobria logo um encanto novo e outra forma da sua perfeição.
Essa “visão química da sociedade” é tão profunda que parece “inundada de uma luz mística”; mas não existe ali absolutamente nada de “místico”; o retrato da realidade é o mais “positivo” possível...
Escapavam-se-lhe da boca sílabas sacudidas como os últimos gorgolejos de uma fonte em agonia: - As Nereidas... As damas...Nereidas... Belas... Nuas... Loiras... Cabelos todos loiros...Foram as únicas palavras que conseguiram arrancar-lhe. Nos dias seguintes, por diversas vezes o ouviram repetir baixinho para consigo: "Cabelos loiros... loiros", como se afagasse seda.Depois, mais nada. Os olhos deixaram de brilhar, mas o olhar tornou-se vago e fixo e adquiriu estranhas propriedades; contempla o sol sem pestanejar;talvez se compraza a fitar esse objecto tão esplendorosamente loiro. Encontrava-me na aldeia durante as primeiras semanas do seu delírio:nem febre, nem o menor sintoma de insolação ou de um ataque. Os pais levaram-no a um mosteiro célebre das redondezas para que fosse exorcizado: deixou-se conduzir com a brandura de um cordeiro doente, mas nem as cerimónias da Igreja, nem as fumigações de incenso,nem os ritos mágicos das velhas da aldeia conseguiram expulsar-lhe do sangue as loucas ninfas da cor do sol. Os primeiros dias do seu novo estado passaram-se num vaivém constante: voltava incansavelmente ao local onde se dera a aparição;
É por ti que escrevo que não és musa nem deusa mas a mulher do meu horizonte na imperfeição e na incoincidência do dia-a-dia Por ti desejo o sossego oval em que possas identificar-te na limpidez de um centro em que a felicidade se revele como um jardim branco onde reconheças a dália da tua identidade azul É porque amo a cálida formosura do teu torso a latitude pura da tua fronte o teu olhar de água iluminada o teu sorriso solar é porque sem ti não conheceria o girassol do horizonte nem a túmida integridade do trigo que eu procuro as palavras fragrantes de um oásis para a oferenda do meu sangue inquieto onde pressinto a vermelha trajectória de um sol que quer resplandecer em largas planícies sulcado por um tranquilo rio sumptuoso
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