Where were you when I was burned and broken? (...) Where were you when I was hurt and I was helpless?
Messing with my mind..
You may call it suicide But i'm being born again...
À semelhança de muitas outras pessoas que vivem sós e, por esse motivo, passam a maior parte do seu tempo tendo os próprios pensamentos como principal companhia, tenho-me tornado nos últimos anos um cismador meditabundo diariamente dedicado a remoer sozinho ideias, leituras, manias, reminiscências e projeções fantasiosas sobre o futuro. Pode ser que se dê o caso de me pôr a falar sozinho em voz alta, mas por enquanto a escrita ainda surge aos meus olhos como o melhor canal de extravasamento para este tipo de cogitação supranumerária: pois há um momento em que o ‘disco’ mental está cheio e é preciso deslocar de lá a acumulação de cismações, de modo a criar espaço para novos pensamentos e para novos caminhos de reflexão…
Ela não tem a escrita como "canal de extravasamento", portanto, só lhe resta coisificar-se...
Coisificar-se. Estar e não ser. Estar, como um objeto. Como pessoa não e viável.Conseguir ser apenas uma coisa, apesar de ter atividade mental. Ser coisa, mas ter consciência de que o é. Não tem tendências suicidas: até gosta de estar, mas cansou-se de ser... Coisificar-se é a solução: as coisas não sofrem; as coisa são utilizadas pelos seres, sem que isso lhes cause mágoa ou humilhação; as coisas podem ser utéis. Ela gosta de coisas, todos gostamos de qualquer coisa. Se for uma coisa, haverá certamente quem lhe dê préstimo. Que coisa gostaria de ser? Um livro? Não. Até porque um livro não é um coisa, é uma materialização linguística do ser que o escreveu. Uma estante. Sim, uma estante parece-lhe bem. Também poderia coisificar como secretária...Tem de ser coisa ligada a livros e a tarefas nobres. Uma panela, nunca. Ser panela ainda é pior do que ser pessoa...Para que a coisa possua alguns dos seus traços definidores, não deverá ser facilmente transportável: há-de desempenhar a sua função , de modo mais ou menos permanente, no mesmo espaço.É , e pretende continuar a ser, sedentária, estática,reflexiva. Que penoso ser,por exemplo, porta - moedas: ter nas entranhas a coisa mais suja que existe, sair todos os dias de casa, permanentemente a ser aberto e fechado. Porta - moedas, nunca. Estante continua a apresentar-se-lhe como uma boa hipótese. Uma estante nunca é esquecida nem perdida nem roubada, ao contrário de um porta-moedas ou similar. Pode-se mudar a estante de espaço, pode-se gostar de lá colocar livros e passar a utilizá-la para outro fim completamente diferente, mas ninguém muda de estante "como quem muda de camisa". As estantes, mesmo que deixem de causar o entusiasmo inicial, o impacto desencadeado a primeira vez que se ergueram ,serenas e altaneiras, na sua nova vida, lá permanecem, quietas e silenciosas, como a etimologia o impõe. Este argumento é decisvo para quem desistiu de ser, mas pretende estar... A coisa-estante é formada a partir do particípio presente do verbo sto. Particípio presente é a forma nominal perfeita para um passado que se almeja presente. Estante será. Que tipo de estante?
Tudo o que sonho ou passo,
O que me falha ou finda,
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.
Trata-se de um curioso paradoxo: superamo-nos em direcção a essa outra coisa que é linda, sabendo intimamente que não é ainda essa outra que é linda, que haverá sempre outra, e outra; mas esta dificuldade não nos inibe de continuar, vivificar nesta procura, desfrutar do gozo de ser, no instante, sabendo que morte e vida, querer e sofrer são ciclos convergentes, elos inextrincáveis, e que a beleza está neles, nesse seu modo sincopado e osmótico.
Antes de chegar ao lugar mais longínquo de O Lugar Supraceleste, ou seja, à última crónica do livro, justamente intitulada “O Lugar Supraceleste”, eu tinha pensado já no movimento ascensional da escrita de Frederico Lourenço, na nota musical que diria esse lugar, esse rosto último, no encontro com o “mais íntimo tutano da alma”, para trazer um verso de Eurípides. Mas, mais do que o encontro com o para lá da abóbada das estrelas, com esse lugar arcádico, descrito por Píndaro como sendo cheio de rosas, interessou-me o lugar de onde Frederico escreve, os círculos do Inferno e do Purgatório por onde passa, a maneira como exala o perfume das rosas pelo caminho – e o segue.
Muitos leram já as crónicas que compõem este livro, publicadas originalmente no Facebook, entre Setembro de 2014 e Janeiro de 2015. Eu tinha-as lido, também. De algumas tinha uma impressão nítida, e a outras tinha perdido o rasto completamente. Não porque sejam menos conseguidas, mas porque há uma zona de mistério, um nevoeiro espesso, que permite que nos adentremos nele mas não possibilita que repitamos os passos para lá chegar. Eu sou como as crianças que podem ouvir uma história mil vezes, com o mesmo encantamento, e só depois de anunciado o epílogo, dizem: afinal já cá tinha estado.(...)
O livro é um passo a passo, para chegar a um lugar, e sabendo, desde o princípio, que “o alvo da viagem é viajar”.
“O alvo da viagem é viajar” é um aforismo de Goethe que aprendi com Maria Filomena Molder, e que não sei onde pertence. Ao contrário do Frederico Lourenço, que manuseia as peças do mosaico com destreza, com rigor, investindo-se nesse fazer laborioso, eu fico parada ante o brilho das estrelas, estonteada, e por inércia e ignorância, não procuro mais coordenadas. Estou a dizer de mim, mas estou, mais do que tudo, a dizer do Frederico, da sua erudição, do fulgor que o faz ser de outro tempo, de outro lugar. Porém, ele não só é completamente desse tempo sem tempo como é deste tempo. É isso que lhe permite falar das insónias de Zeus como se falasse das nossas.
Frederico Lourenço recorre com frequência a Schopenhauer e à sua obra O Mundo como Vontade e Representação. Duas ideias são dominantes: a de que “cada desejo satisfeito não faz mais do que parir um novo desejo” e a de que não há satisfação que preencha o poço sem fundo da carência humana. Então, retomando a pergunta: o que nos faz lidar com o tédio que sobrevém à saciedade, o que nos faz lidar com o absurdo da vida, avançar círculo após círculo? O que é que o faz a ele, prosaicamente, subir as escadas do Bom Jesus em Braga, mais um degrau, sabendo onde vai dar, procurando a canseira? (Aprendemos com ele que clímax em grego significa escada.)
A questão é: sabe-se mesmo onde se vai dar? Quem somos depois do momento climáxico? Há uma experiência fundamental que Frederico trabalha numa das crónicas: a da transformação. A de sermos outros quando fazemos caminhos, subimos escadas, nos superamos, e isso nos permitir lidar com o nosso abismo interior.
Disse que o autor virou a curva dos 50. É verdade. Mas penso que a sabedoria que extravasa destes textos resulta menos da faixa etária em que está do que do sentimento de orfandade, do ponto de se saber a sós com o mundo e consigo próprio. Sendo certo que há sempre outros, e que, em rigor, nunca estamos completamente sozinhos, uma parte de nós é extirpada com a morte dos pais. Sobreviver-lhes, reconstruirmo-nos, é uma tarefa hercúlea que amadurece, ensina, muda as coisas de lugar. Os textos mais pungentes deste Lugar são relativos ao pai e à mãe, remetem-nos para o tempo em que foi o menino da sua mãe, e também o menino que queria ser do seu pai.
Quando se refere à mãe como a Manuela e ao pai como o M.S. Lourenço, encontro, ou encontrei, estranheza. Parecia falar deles como quem fala de pessoas nucleares, mas vagamente estranhas. Pessoas que pertencem a outros. Chamar-lhes pai e mãe traduz um vínculo que só lhe pertence a ele e à irmã, Catarina.
Demorei a perceber que os tentava ver como as pessoas que foram, com identidade vincada, e não apenas como pais daquelas crianças. Crescer é também aceitar que os nosso pais são pessoas que permanecem para sempre vagamente estranhas, que são quem são, além de serem aqueles que idolatramos, emulamos, odiamos (e dizer isto sem ter medo da palavra ódio), amamos. São a raiz que permite que a rosa venha um dia a ser rosa, com um aroma que lhe é único.
Vou lê-lo na crónica “Pai, Novamente”: “O meu processo de ‘pensar os meus pais’ é acima de tudo um processo autopsicográfico, pois não é mais do que uma maneira de me aproximar de mim mesmo. Não me sinto como tendo a chave da compreensão de quem eles foram. Mas sinto que eles são uma chave importante que me permite compreender-me a mim.” Esta crónica, bem como aquela que diz a Manuela era filha da luz, é das que guardo, desde o momento em que as li no Facebook. Guardo também a ideia de que acabara de ler uma coisa em que a vida aparecia em cru, sem biombos. Como se falar assim dos pais possibilitasse tocar a vida com as mãos.
Estas crónicas são, todos os que escrevem sabem, difíceis de escrever. O equilíbrio entre a exposição da nossa individualidade e o excesso sentimental em que facilmente incorremos quando falamos de relações familiares é frágil.
Fazer a anatomia de uma relação amorosa, seja com os pais ou com um namorado, pode ser só desabafo, necessidade de partilha e compreensão. O espantoso é quando, ao fazê-lo, permitimos que outros o façam. Dito numa linha: que eu, tocada pelas crónicas do Frederico sobre os pais, me sinta interpelada e faça um exame da minha relação com os meus pais. Que me pergunte, como ele se pergunta, sem se perguntar assim: o que é amar? Quem são estas pessoas, este lugar de onde vimos? (...)Mas o seu idioma próprio, o de Frederico Lourenço, corresponde a sentimentos soletrados, ao movimento vertiginoso da vida, à interpretação de uma partitura, ao embate que se tem com um texto-pedra, corresponde a um querer indómito. Muito do que se pode ler aqui traduz um combate, e mostra o autor como um guerreiro – Heitor, claro – que perde, e ganha tanto antes de perder pela última vez.
Como homem que sou do século XVIII desterrado no século XXI, é óbvio o fascínio que me suscita a figura de Voltaire, a ponto de lhe perdoar o mais grave dos seus muitos defeitos: a homofobia. O amor que ele apelidou de infame “pourtant si naturel” terá sido algo que nunca sentiu na pele, ainda que a amizade destemperada (e incompreensível para todos que conheceram Voltaire) com Thieriot o levasse a extremos que nem Romeu e Julieta: Voltaire fazia febre, literalmente, quando Thieriot estava com febre. Vou perdoar-lhe também o alegado anti-semitismo, pois parece-me altamente improvável que Voltaire fosse anti-semita (basta ler a sua correspondência): penso que se pode chegar, nesse ponto em concreto, a conclusões apressadas, em grande parte oriundas das opiniões negativas, expressas pelo próprio Voltaire, a respeito do Antigo Testamento, que para ele era o mais acabado Livro das Enormidades.
Não vou discutir as opiniões de Voltaire acerca dos livros sagrados do Cristianismo e do Islão, pois não tenho competência teológica para tal. No entanto, como agnóstico semi-crente que se interessa pelo fenómeno religioso, não posso deixar de reflectir sobre a frase que ele escreveu numa carta ao meu fascinante homónimo, Frederico II da Prússia, em que afirma estarem as religiões condenadas a existir enquanto houver imbecis.O lado anglófilo de Voltaire (que também me agrada) levou-o a admirar o sangue frio com que, em Inglaterra, já se conseguia separar a Razão da crença religiosa. Presente, em Londres, no funeral de Newton em 1727, Voltaire ficou impressionado por ver como os ingleses enterravam de bom grado em Westminster Abbey o homem que mais contribuíra para demolir os alicerces da religião. Com toda a sua desconfiança face às três grandes religiões monoteístas, é curioso verificarmos a atitude positiva que lhe suscitava o hinduísmo. E não deixa de ser enternecedor, num homem hipocondríaco que ao longo dos seus mais de 80 anos de vida nunca esperou em nenhum momento viver até ao fim da semana, perceber a sua reacção na doença ao Divino. Doentíssimo, admitia entrar em diálogo com “ela” (a Virgem Maria), mas nunca com “os outros três” (Pai, Filho e Espírito Santo).
Para um homem nascido ainda no século XVII, é admirável a consciência mostrada pelo vegetariano Voltaire a respeito de temas tão do nosso século: direitos humanos, direitos dos animais. Noutras coisas, ele estaria profundamente desfasado do “ar do tempo” que se respira hoje. A relação com a sobrinha seria hoje qualificada de abusiva; e é evidente que o seu quase obsceno fascínio por duques e marqueses (em especial por duques) seria coisa que hoje ninguém compreenderia. Marquesas eram, também, uma categoria humana cuja companhia ele adorava: ao encontrar em Emilie du Châletet uma mulher que era simultaneamente marquesa e leitora de Newton, foi obviamente o coup de foudre. Viveram, alheios ao opróbrio alheio, no castelo que pertencia ao marido dela, numa relação místico-carnal que, à boa maneira do século XVIII, era sempre de bom tom, porque nunca se tratavam por tu. Embora por escrito Voltaire se lhe tenha referido como “Emilie”, isso não passou de convenção literária, porque na prática nunca se trataram por outra coisa que não madame e monsieur. Sim, imaginar alguém a tratar Voltaire pelo nome próprio (François-Marie) é bastante inimaginável.
Bem sei que há ilhas lá ao sul de tudo Onde há paisagens que não pode haver.
Here in my mind, you know you might find Something that you, you thought you once knew But now it's all gone, and you know it's no funYeah, I know, it's no fun. Oh, I know it's no fun...
Em todos os lugares da vida, em todas as situações e convivências, eu fui sempre, para todos, um intruso. Pelo menos, fui sempre um estranho. No meio de parentes, como no de conhecidos, fui sempre sentido como alguém de fora. Não digo que o fui, uma só vez sequer, de caso pensado. Mas fui-o sempre por uma atitude espontânea da média dos temperamentos alheios. Fui sempre, em toda a parte e por todos, tratado com simpatia. A pouquíssimos, creio, terá tão pouca gente erguido a voz, ou franzido a testa, ou falado alto ou de terça. Mas a simpatia com que sempre me trataram, foi sempre isenta de afeição. Para os mais naturalmente íntimos fui sempre um hóspede, que, por hóspede é bem tratado, mas sempre com a atenção devida ao estranho, e a falta de afeição merecida pelo intruso.
There is a place Where I can go When I feel low When I feel blue And it's my mind And there's no time when I'm alone There's a place...
We know a place where no planes go We know a place where no ships go (Hey!) no cars go (Hey!) no cars go Where we know We know a place no space ships go We know a place where no subs go...
Bem sei que há ilhas lá ao sul de tudo Onde há paisagens que não pode haver. Tão belas que são como que o veludo Do tecido que o mundo pode ser. Bem sei. Vegetações olhando o mar, Coral, encostas, tudo o que é a vida Tornado amor e luz, o que o sonhar Dá à imaginação anoitecida. Bem sei. Vejo isso tudo. O mesmo vento Que ali agita os ramos em torpor Passa de leve por meu pensamento E o pensamento julga que é amor. Sei, sim, é belo, é luz, é impossível, Existe, dorme, tem a cor e o fim, E, ainda que não haja, é tão visível Que é uma parte natural de mim. Sei tudo, sim, sei tudo. E sei também Que não é lá que há isso que lá está Sei qual é a luz que essa paisagem tem E qual o mar por que se vai para lá.
(…) e aquele tempo perdido em analisar o que nunca se chegou a passar, a medir os precisos termos de relações que nunca se dariam.
Fora um capricho, não do temperamento, mas da simples imaginação. Cada um fora um sonho para o outro, uma espécie de trampolim para saltar dentro de si mesmo de um esquema de emoções para outro esquema de emoções, de uma possibilidade para outra possibilidade.
Aquela banalidade de vida é que era a realidade da vida dela; aquela impossibilidade de fazer mais que sonhar é que era a certeza dele. O que ela manifestara para com ele fora apenas um sonho em voz alta, e o que ele manifestara para ela uma possibilidade em voz baixa. As vozes harmonizavam-se pela própria desarmonia. (...) As influências da cultura são muito maiores do que se julga. Amamos em parte com o instinto sexual, em parte com a atracção emotiva, mas também, e em grande parte, com vários versos de vários poetas, certos quadros, memórias de trechos musicais, e abundantes citações de romancistas. (...) Mas a maioria das vezes o momento está fora de lugar ou o lugar longe do momento. O homem certo está errado, ou não aproveita o que lhe dão quando lhe não disseram que lho davam, e por isso mesmo. No fundo, os maridos têm muita sorte, e as mulheres sérias grandes defesas nas contingências do Destino.
E aquele elemento de banalidade, de estupidez mesmo, que oferece obstáculo permanente à própria imaginação, e prende curtos os animais do íntimo desejo, à porta de casa das coisas que se não revelam? E aquele amor a um conforto da superfície da alma? E aquele uso do mesmo homem, aceite como uma maçada sossegada e, por usual, cómoda - o marido parte da vida como o arranjo da cozinha, o passajar de roupa ou o tratar das crianças?..
O sentido do passado, da dor, da morte: estes são factores intrínsecos ao México. Mas apesar disso, os mexicanos são o povo mais alegre do mundo, capaz de transformar qualquer acontecimento, incluindo o Dia dos Mortos, numa festa. Riem-se da morte, o que não quer dizer que não a levem a sério. É talvez por possuírem um profundo sentimento trágico da vida que a alegria e a festa estão sempre presentes: a sua atitude é o melhor testemunho da dignidade do homem. A morte, derrotada pelo renascimento, é ora trágica ora cómica.
O Cônsul não estava realmente a falar. Pelo menos, não parecia que estivesse. Não articulara uma palavra que fosse. Era tudo uma ilusão, um redemoinhante caos cerebral do qual, saiu por fim, nesse mesmo instante, bem ordenado e completo, o seguinte: - O acto de um louco ou de um bêbedo, companheiro - disse - ou o de um homem submetido a uma violenta excitação parece menos livre e mais inevitável para aquele que conhece a condição mental do homem que praticou a acção, e mais livre e menos inevitável para aquele que a não conhece. Era como uma peça ao piano, era como aquela peçazita em sete bemóis, tocada apenas nas teclas pretas. Era por isso, mais ou menos - lembrava-se agora - que ele tinha ido para o «excusado»; em primeiro lugar para se lembrar, para se assenhorear do assunto - era talvez também como o caso da citação que Hugh fizera de Matthew Arnold a respeito de Marco Aurélio, como aquela peçazita que ele aprendera com tanto custo havia anos, apenas para a esquecer sempre que tinha especial empenho em tocá-la, até que um dia se embebedara de tal maneira que os dedos se lembraram por si mesmos da combinação musical, revelando-se miraculosamente, na sua perfeição, em toda a riqueza da melodia; simplesmente aqui Tolstoi não fornecera a melodia.
- O quê? - perguntou Hugh.
- De modo algum. Eu volto sempre ao ponto conveniente e retomo o assunto onde o deixei. Se não fosse assim, como é que eu me havia de ter mantido tanto tempo no meu lugar de cônsul? Quando nós não compreendemos nada das causas de um acto - digo isto para o caso em que o teu espírito tenha vagueado através da tua própria conversação pelos acontecimentos desta tarde - atribuímos essas causas, quer viciosas, quer virtuosas, de acordo com Tolstoi, ao predomínio de um elemento da vontade independente. Segundo Tolstoi, portanto, devíamos ter tido menos relutância em interferir do que tivemos...
- Todos os casos - sem excepção - nos quais a nossa concepção de livre vontade varia, dependem de três causas - prosseguiu o Cônsul. - Não podemos fugir a isso. Além disso, segundo Tolstoi - antes de julgarmos um ladrão - se é que realmente de um ladrão se trata - teríamos de perguntar a nós próprios quais eram as suas relações com outros ladrões, quais os seus laços de família, o seu lugar no tempo e, se até isso conseguíssemos saber, quais as suas relações com o mundo externo e com as consequências que o levaram a actuar...
As horas pela alameda Arrastam vestes de seda, Vestes de seda sonhada Pela alameda alongada Sob o azular do luar... E ouve-se no ar a expirar - A expirar mas nunca expira - Uma flauta que delira, Que é mais a ideia de ouvi-la Que ouvi-la quase tranquila Pelo ar a ondear e a ir...Silêncio a tremeluzir...
Deprecia quem se preocupa com os fusos horários, quem faz exímias continhas para perceber que horas são aqui e acoli... É particularmente limitada nesta área... Não consegue raciocinar sobre tal assunto até porque essa coisa dos fusos entronca em domínios em que é assumida, escandalosa e irremediavelmente ignorante...É indiferente ao tempo físico : que interesse tem a hora? O que importa são os momentos, independentemente da localização cronológica...O que levamos desta vida inútil Tanto vale se é A glória, a fama, o amor, a ciência, a vida(...)A glória pesa como um fardo rico, A fama como a febre, O amor cansa, porque é a sério e busca, A ciência nunca encontra...
o suporte da música pode ser a relação entre um homem e uma mulher, a pauta dos seus gestos tocando-se, ou dos seus olhares encontrando-se, ou das suas vogais adivinhando-se abertas e recíprocas, ou dos seus obscuros sinais de entendimento, crescendo como trepadeiras entre eles. o suporte da música pode ser uma apetência dos seus ouvidos e do olfacto, de tudo o que se ramifica entre os timbres, os perfumes, mas é também um ritmo interior, uma parcela do cosmos, e eles sabem-no, perpassando por uns frágeis momentos, concentrado num ponto minúsculo, intensamente luminoso, que a música, desvendando-se, desdobra, entre conhecimento e cúmplice harmonia.
Passagem das horas
Trago dentro do meu coração,Como num cofre que se não pode fechar de cheio Todos os lugares onde estive, Todos os portos a que cheguei, Todas as paisagens que vi através de janelas ou vigias, Ou de tombadilhos, sonhando, E tudo isso, que é tanto, é pouco para o que eu quero...Viajei por mais terras do que aquelas em que toquei. . .Vi mais paisagens do que aquelas em que pus os olhos. . .Experimentei mais sensações do que todas as sensações que senti, Porque, por mais que sentisse, sempre me faltou que sentir E a vida sempre me doeu, sempre foi pouco, e eu infeliz....Cruzo os braços sobre a mesa, ponho a cabeça sobre os braços, E preciso querer chorar, mas não sei ir buscar as lágrimas. . .Por mais que me esforce por ter uma grande pena de mim, não choro, Tenho a alma rachada sob o indicador curvo que lhe toca. Que há-de ser de mim? Que há-de ser de mim? ... Assim fico, fico. . . Eu sou o que sempre quer partir, E fica sempre, fica sempre, fica sempre, Até à morte fica, mesmo que parta, fica, fica, fica. . . Não sei sentir, não sei ser humano, conviver De dentro da alma triste com os homens meus irmãos na terra. Não sei ser útil mesmo sentindo, ser prático, ser quotidiano, nítido, Ter um lugar na vida, ter um destino entre os homens, Ter uma obra, uma força, uma vontade, uma horta, Uma razão para descansar, uma necessidade de me distrair, Uma coisa vinda directamente da natureza para mim.
Quem entende este poema precisará de entender os fusos horários? Talvez...Quem sabe? Mas então exige que todos os que se consideram especialistas em fusos horários conheçam, entendam e saibam explicar esta passagem das horas... Não gostam de horas e de horários?
Em horas inda louras, lindas Clorindas e Belindas, brandas, Brincam no tempo das berlindas, As vindas vendo das varandas, De onde ouvem vir a rir as vindas Fitam a fio as frias bandas. Mas em torno à tarde se entorna A atordoar o ar que arde Que a eterna tarde já não torna! E o tom de atoarda todo o alarde Do adornado ardor transtorna No ar de torpor da tarda tarde. E há nevoentos desencantos Dos encantos dos pensamentos Nos santos lentos dos recantos Dos bentos cantos dos conventos.... Prantos de intentos, lentos, tantos Que encantam os atentos ventos.
Sente-se como se sentia fernando pessoa quando escreveu este poema...
Duas horas te esperei Dois anos te esperaria. Dize: devo esperar mais? Ou não vens porque inda é dia?
Entre o número áureo e reduzido das horas felizes que a Vida deixa que eu passe, conto por do melhor ano aquelas em que a leitura de Conan Doyle ou de Arthur Morrison me pega na consciência ao colo. Um volume de um destes autores, um cigarro de 45 ao pacote, a ideia de uma chávena de café — trindade cujo ser- uma é o conjugar a felicidade para mim — resume-se nisto a minha felicidade. Seria pouco para muitos, a verdade é que não pode aspirar a muito mais uma criatura com sentimentos intelectuais e estéticos no meio europeu actual.
I can read... I can write...I don't have to think ...I only have to do ...
There are places I remember All my life though some have changed Some forever not for better Some have gone and some remain...
Vem vamos embora que esperar não é saber ...Quem sabe faz a hora ... não espera acontecer ...
Uma pessoa não pode ser eternamente jovem; na verdade, um indivíduo perde a juventude num abrir e fechar de olhos. É que em menos de quatro anos, que passam tão velozmente como o cigarro que hoje se fumou e parece ser o que ontem se consumiu; uma pessoa chega aos trinta e cinco; daá a sete aos quarenta; depois aos quarenta e sete,aos oitenta.Sessenta e sete anos dão-nos a confortável sensação de muito tempo,mas a verdade é que nessa altura,desejar-se-é viver até aos cem.
Débil no vício, débil na virtude A humanidade débil, nem na fúria Conhece mais que a norma. Pares e diferentes nos regemos Por uma norma própria, e inda que dura, Será à liberdade. Ser livre é ser a própria imposta norma Igual a todos, salvo no amplo e duro Mando e uso de si mesmo...
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