Ante scriptum: absurdos...
Ver-me, ao mesmo tempo, com igual nitidez, do mesmo modo, sem mistura, sendo as duas coisas com igual integração nelas, um navio consciente num mar do sul e uma página impressa dum livro antigo. Que absurdo que isto parece! Mas tudo é absurdo, e o sonho ainda é o que o é menos.
A mania do absurdo e do paradoxo é o "animal spirits" dos tristes. Como o homem normal, diz disparates por vitalidade, e por sangue dá palmadas nas costas de outros, os incapazes de entusiasmo e de alegria dão cambalhotas na inteligência, a seu frio modo fazem os gestos quentes da vida.
Sigo às vezes em mim, imparcialmente, essas coisas deliciosas e absurdas que eu não posso poder ver, porque são ilógicas à vista — pontes sem donde nem para onde, estradas sem princípio nem fim, paisagens invertidas (...) — o absurdo, o ilógico, o contraditório, tudo quanto nos desliga e afasta do real e do seu séquito disforme de pensamentos práticos e sentimentos humanos e desejos de acção útil e profícua. O absurdo salva de chegar apesar do tédio àquele estado de alma em que começa por se sentir a doce fúria de sonhar.E eu chego a ter não sei que misterioso modo de visionar esses absurdos — não sei explicar, mas eu vejo essas coisas inconcebíveis à visão.
Fecho, cansado, as portas das minhas janelas, excluo o mundo e um momento tenho a liberdade. Amanhã voltarei a ser escravo; porém agora, só, sem necessidade de ninguém, receoso apenas que alguma voz ou presença venha interromper-me, tenho a minha pequena liberdade, os meus momentos de excelsis. Na cadeira, aonde me recosto, esqueço a vida que me oprime. Não me dói senão ter-me doído.
Tornarmo-nos esfinges, ainda que falsas, até chegarmos ao ponto de já não sabermos quem somos. Porque, de resto, nós o que somos é esfinges falsas e não sabemos o que somos realmente. O único modo de estarmos de acordo com a vida é estarmos em desacordo com nós próprios. O absurdo é (o) divino. Estabelecer teorias, pensando-as paciente e honestamente, só para depois agirmos contra elas — agirmos e justificar as nossas acções com teorias que as condenam — talhar um caminho na vida, e em seguida agir contrariamente a seguir por esse caminho. Ter todos os gestos e todas as atitudes de qualquer coisa que nem somos nem pretendemos ser, nem pretendemos ser tomados como sendo. Comprar livros para não os ler; ir a concertos nem para ouvir a música nem para ver quem lá está; dar longos passeios por estar farto de andar e ir passar dias no campo só porque o campo nos aborrece.
Sísifo é o mais astuto dos mortais e também o menos escrupuloso. Era filho de Éolo\( ...)A lenda de Sísifo abrange vários episódios, sendo cada um deles a história de uma astúcia.Uma das versões do mito, a mais divulgada, diz que Zeus o precipitou nos infernos, onde lhe impôs como castigo que fizesse rolar eternamente um enorme rochedo na subida de uma vertente. Mal o rochedo atingia o cimo, voltava a cair, mercê do seu próprio peso e o trabalho tinha de recomeçar.
Vi Sísifo a sofrer grandes tormentos,
tentando levantar com as mãos uma pedra monstruosa.
Esforçando-se para a empurrar com as mãos e os pés,
conseguiu levá-la até ao cume do monte; mas, quando ia
a chegar ao ponto mais alto, o peso fazia-a regredir,
e rolava para a superfície a pedra sem vergonha.
Ele esforçava-se de novo para a empurrar: dos seus membros
escorria o suor; e poeira da sua cabeça se elevava.
Toda a alegria silenciosa de Sísifo aqui reside. O seu destino pertence-lhe. O seu rochedo é a sua coisa. Da mesma maneira, quando o homem absurdo contempla o seu tormento, faz calar todos os ídolos. No universo subitamente entregue ao seu silêncio, erguem-se as mil vozinhas maravilhosas da terra. Chamamentos inconscientes e secretos, convites de todos os rostos, são o reverso necessário e o preço da vitória. Não há sol sem sombra e é preciso conhecer a noite. O homem absurdo diz sim e o seu esforço nunca mais cessará. Se há um destino pessoal, não há destino superior ou, pelo menos, só há um que ele julga fatal e desprezível. Quanto ao resto, ele sabe-se senhor dos seus dias. Nesse instante subtil em que o homem se volta para a sua vida, Sísifo, regressando ao seu rochedo, contempla essa sequência de ações sem elo que se torna o seu destino, criado por ele, unido sob o olhar da sua memória, e selado em breve pela sua morte. Assim, persuadido da origem bem humana de tudo o que é humano, cego que deseja ver e que sabe que a noite não tem fim, está sempre em marcha. O rochedo ainda rola.
Sísifo
Recomeça… Se puderes, Sem angústia e sem pressa. E os passos que deres,Nesse caminho duro Do futuro, Dá-os em liberdade. Enquanto não alcances Não descanses. De nenhum fruto queiras só metade. E, nunca saciado, Vai colhendo Ilusões sucessivas no pomar E vendo Acordado, O logro da aventura. És homem, não te esqueças! Só é tua a loucura Onde, com lucidez, te reconheças.
A solidão, Sr. José, declarou com solenidade o conservador, nunca foi boa companhia, as grandes tristezas, as grandes tentações e os grandes erros resultam quase sempre de se estar só na vida, sem um amigo prudente a quem pedir conselho quando algo nos perturba mais do que o normal de todos os dias, Eu, triste, o que se chama propriamente triste, senhor, não creio que o seja, respondeu o Sr. José, talvez a minha natureza seja um pouco melancólica, mas isso não é defeito, e quanto às tentações, bom, há que dizer que nem a idade nem a situação me inclinam a elas, quer dizer, nem eu as procuro nem elas me procuram a mim, E os erros, Está a referir-se, senhor, aos erros do serviço, Estou a referir-me aos erros em geral, os erros do serviço, mais tarde ou mais cedo, o serviço os fez, o serviço os resolve…
(o homem sozinho)
Um escadote que é um labirinto.
Começamos a subir e sem saber como: acabamos a descer.
É o caminho do bem-estar,disseram-me ; e eu comecei a subir.
Ninguém para me tirar daqui.
Sinopses sisíficas...
A Trilogia do Sísifo é composta por Gnaisse, um romance sobre a paixão, Por Mão Própria, um romance sobre a perda, e por Sísifo, um romance sobre a iniciação.
Um professor está apaixonado por uma aluna que gosta de Nietzsche, de bonsais e de garrafas de gás. A aluna desaparece subitamente.(...) O professor tem saudades da aluna. As saudades são tantas que, transtornado, vê a aluna em todo o lado: na pastelaria do bairro, na tela do cinema, nas sombras da sua própria varanda. Duas mortes ensombram, a certa altura, o percurso e o destino do professor. Tudo se altera de repente, como se a realidade relatada não passasse, afinal, de um truque de prestidigitação. A chegada inesperada da irmã do protagonista parece ser a chave que tudo irá solucionar. No entanto, os arrestos de bens e as penhoras aproximam-se. Mas é o fogo que acabará por devorar tudo, no preciso dia em que a casa é penhorada. Resistindo às hostilidades do mundo, o professor encontrará a sua antiga aluna ao rodar a manivela de uma caixa de música. Sob o pano de fundo da crise, Gnaisse ,como acontece entre os estratos das rochas metamórficas, é uma metáfora da repetição e do efémero que dá a ver a vida em processo – ou em frenesim – e não atada (num embrulho literário) com um lacinho.
Confessa o protagonista do romance Por Mão Própria que atravessou o inferno de um lado ao outro. Perdeu a irmã, a namorada, os pais, a madrasta, o cão, o patrão, a livreira, a psiquiatra e a mulher do seu melhor amigo que apareceu, um dia, deitada na linha do caminho-de-ferro. Para agravar as coisas, escutava dentro dos ouvidos uma gritaria de crianças que parecia querer humilhá-lo. Talvez por ser designer, encontrou o sentido da vida, primeiro no umbigo de uma chinesa e, depois, no magnífico sinal de uma recepcionista (que era um jardim circular feito de melanina para onde apetecia saltar e ficar a viver para sempre). Enfim, um pesadelo devorado entre a solidão das ruas e o afã apocalíptico das multidões. Seja como for, um pesadelo sonhado num sótão onde a graça e a ingenuidade do mundo terão, de algum modo, excedido o terror e o abismo.
Sísifo, a publicar em outubro.
No seu avesso dorme um desejo, um sentimento em branco, abstrato: deseja o desejo, mas não a sua concretização material. Gostaria de a sentir fisicamente, mas sem que tivesse de entregar o seu corpo. A ideia de acariciar e percorrer o seu corpo esguio agrada- lhe, talvez até o atraia, mas não admite ,sequer,a possibilidade de ser a sua mão a fazê-lo. Gostaria de sentir o prazer, fisicamente, através de um outro corpo, mas que, psicologicamente, essa emoção fosse sua...Esta certeza tranquilizou-o, mas não acalma o tumulto interior que o invade sempre a que a imagem dela se insinua e o penetra,lentamente, como um veneno que não mata, mas debilita e excita, de um modo estranhamente novo.
Os avessos do trágico em Samuel Beckett: "Eu, de quem nada sei, sei que tenho olhos abertos devido às lágrimas que caem sem cessar." Tudo termina e recomeça novamente. Podemos identificar uma estrutura dramatúrgica circular e ininterrupta, na qual não encontramos um início e um fim precisos, mas uma ação em constante andamento. Tal aspecto lega à cena beckettiana um universo específico onde os personagens não empreendem uma ação efetiva no tempo e no espaço, pois eles apenas estão esperando algo. Em uma visão desencantada de mundo, os personagens são retratados fi sicamente destroçados, como uma metáfora da própria consciência humana, que também apresenta-se desintegrada. Uma estética do precário, das lacunas, das ausências e, principalmente, dos silêncios afasta a possibilidade do homem se reconciliar com o mundo, em âmbito social, moral, econômico ou político. O conflito surge entre a realidade empírica e a realidade metafísica, e, nesta luta, o homem não se choca com o mundo, mas com a sua consciência.
Os males da inteligência, infelizmente, doem menos que os do sentimento, e os do sentimento, infelizmente, menos que os do corpo. Digo «infelizmente» porque a dignidade humana exigiria o avesso. Não há sensação angustiada do mistério que possa doer como o amor, o ciúme, a saudade, que possa sufocar como o medo físico intenso, que possa transformar como a cólera ou a ambição.
Que grande vantagem trazer a alma virada do avesso!
Ao menos escrevem-se versos.
Escrevem-se versos, passa-se por doido, e depois por génio, se calhar.
Se calhar, ou até sem calhar,
Maravilha das celebridades!
As figuras de amadas, que aliás não existem como figuras, nos versos de Ricardo Reis são abstracções às avessas, ou vistas do avesso. Não são abstracções no sentido de serem abstractas, mas no sentido de terem apenas a realidade necessária para serem consideradas como existindo. São Chloes, Lydias e outras romanidades assim, não porque não existam, mas porque para o caso tanto vale ser Chloe como Maria Augusta, e, ao passo que esta última faz supor uma costureira, ou coisa parecida, com a agravante de o poder ser deveras, a gente sente-se realmente pagão com a Lydia.
Os preconceitos que alimento sobre arte, a despeito de mim mesmo, impediram-me, durante muito tempo, de pensar na sua reedição.
Sei que a minha fonte está, em O Avesso e o Direito, nesse mundo de pobreza e luz em que vivi durante tanto tempo, e cuja lembrança me preserva, ainda, dos dois perigos contrários que ameaçam todo o artista: o ressentimento e a satisfação.(...) Eu vivia na adversidade, mas, também, numa espécie de gozo. Sentia em mim forças infinitas: bastava, apenas, encontrar o seu ponto de aplicação. Não era a miséria que colocava barreiras a essas forças: em África, o mar e o sol nada custam. A barreira está mais nos preconceitos ou na burrice. (...) Mas, depois de me questionar, pude constatar que, entre as minhas inúmeras fraquezas, jamais figurou o defeito mais difundido entre nós, quer dizer, a inveja, verdadeiro cancro das sociedades e das doutrinas.
Há mais amor verdadeiro nestas páginas do que em todas as que se seguiram.
A vida é curta e é pecado perder o seu tempo. Sou activo, diz-se. Mas ser activo é ainda perder o seu tempo, na medida em que nos perdemos. Hoje é um descanso e o meu coração parte ao encontro de si próprio. Se uma angústia ainda me estreia, é a de sentir este impalpável instante escorregar-me por entre os dedos como as gotas do mercúrio. Deixai, pois, aqueles que querem voltar as costas ao mundo. (...) Posso dizer, e direi daqui a pouco, que o que conta é ser humano e simples. Não, o que conta é ser verdadeiro e então, tudo aí se inclui, a humanidade e a simplicidade. E quando posso eu ser mais verdadeiro do que quando sou eu o mundo? Sou satisfeito antes de ter desejado. A eternidade está ali e eu esperava-a. Já não é ser feliz o que eu desejo agora, mas apenas ser consciente.
Um homem contempla e o outro cava o seu túmulo: como distingui-los? Os homens e o seu absurdo? Mas aqui está o sorriso do céu. A luz aumenta e breve será o Verão? Mas aqui estão os olhos e as vozes daqueles que é preciso amar. Estou preso ao mundo por todos os meus gestos, aos homens por toda a minha piedade e o meu reconhecimento. Entre este direito e este avesso do mundo, eu não quero escolher, não gosto que se escolha. As pessoas não querem que se seja lúcido e irónico. Eles dizem: «Isso mostra que não és bom.» Não vejo a relação. Decerto oiço dizer a uma delas que é imoralista, traduzo que ela tem necessidade de atribuir-se uma moral; a outra que despreza a inteligência, compreendo que ela não pode suportar as suas dúvidas. Mas porque eu não gosto que se faça batota. A grande coragem é ainda a de ter os olhos abertos para a luz como para a morte. Além disso, como explicar a ligação que leva deste amor devorador à vida a este desespero oculto? Se escuto a ironia escondida no fundo das coisas, ela descobre-se lentamente. Piscando o olho pequeno e claro: «Vive como se...», diz ela. Apesar de muitas pesquisas, aqui está toda a minha ciência.
Não há amor de viver sem desespero de viver. Afinal, o sol aquece - nos os ossos, apesar de tudo...
Estou, nesta noite cálida, deliciadamente estendido sobre a relva, de olhos postos no céu, e reparo, com alegria, que as dimensões do infinito não me perturbam. (O infinito! Essa incomensurável distância de meio metro que vai desde o meu cérebro aos dedos com que escrevo!) O que me perturba é que o todo possa caber na parte, que o tridimensional caiba no dimensional, e não o esgote. O que me perturba é que tudo caiba dentro de mim, de mim, pobre de mim, que sou parte do todo. E em mim continuaria a caber se me cortassem braços e pernas porque eu não sou braço nem sou perna. Se eu tivesse a memória das pedras que logo entram em queda assim que se largam no espaço sem que nunca nenhuma se tivesse esquecido de cair; se eu tivesse a memória da luz que mal começa, na sua origem, logo se propaga, sem que nenhuma se esquecesse de propagar; os meus olhos reviveriam os dinossáurios que caminharam sobre a Terra,
os meus ouvidos lembrar-se-iam dos rugidos dos oceanos que engoliram continentes, a minha pele lembrar-se-ia da temperatura das geleiras que galgaram sobre a Terra. Mas não esqueci tudo. Guardei a memória da treva, do medo espavorido do homem da caverna que me fazia gritar quando era menino e me apagavam a luz; guardei a memória da fome; da fome de todos os bichos de todas as eras, que me fez estender os lábios sôfregos para mamar quando cheguei ao mundo; guardei a memória do amor, dessa segunda fome de todos os bichos de todas as eras, que me fez desejar a mulher do próximo e do distante; guardei a memória do infinito, daquele tempo sem tempo,origem de todos os tempos, em que assisti, disperso, fragmentado, pulverizado, à formação do Universo. Tudo se passou defronte de partes de mim. E aqui estou eu feito carne para o demonstrar, porque os átomos da minha carne não foram fabricados de propósito para mim.
Já cá estavam. Estão. E estarão.
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