Escrevo num domingo, manhã alta, num dia amplo da luz suave, em que, sobre os telhados da cidade interrompida, o azul do céu sempre inédito fecha no esquecimento a existência misteriosa de astros... É domingo em mim também...
Também meu coração vai a uma igreja que não sabe onde é, e vai vestido de um traje de veludo infante, com a cara corada das primeiras impressões a sorrir sem olhos tristes por cima do colarinho muito grande...
Mas afinal que é que se vai buscar à leitura da coisa literária?(...) vai-se buscar prazer, proveito e exemplo. E outra coisa ainda, que nos é dada por acréscimo: a certeza de que não estamos sozinhos no mundo, a certeza de que há mais mundos.
A rapariga inglesa, uma loura, tão jovem, tão boa
Que queria casar comigo...
Que pena eu não ter casado com ela...
Teria sido feliz
Mas como é que eu sei se teria sido feliz?
Como é que eu sei qualquer coisa a respeito do que teria sido
Do que teria sido, que é o que nunca foi?
Hoje arrependo-me de não ter casado com ela,
Mas antes que até a hipótese de me poder arrepender de ter casado com ela.
E assim é tudo arrependimento,
E o arrependimento é pura abstracção.
Dá um certo desconforto
Mas também dá um certo sonho...
Como gostaria de o dizer, hic et nunc," je ne regrtte rien"...No entanto, já houve um tempo em que cantei esta canção...
A última ironia de o’neill - Numa nota manuscrita, que constava do seu espólio, registou este título para um livro póstumo: Já cá não está quem falou.Prosas dispersas, fragmentos do quotidino, que constituem um retrato sarcástico da " vidinha contentinha" que nos transformará em ratos, com medo do medo...
Meus amigos, vamos demitir-nos do talento? (...) A sério! Vamos demitir-nos do talento? Esta situação de talentosos para a qual nos empurrámos e na qual nos encurralámos ( curral doirado?) vai ser , se não o é já, o nosso fim. Não preciso de nomear ninguém. O talento está suficientemente distribuído e identificado, entre nós - os das Letras.(...) O leitor, por certo, já adivinhara que era das Letras que se tratava... Bom leitor, é nas Letras que o talento se mostra mais vistoso e como que mais desinteressado, mais sem motivo. Pode lá haver coisa tão bonita como o talento e sair-se assim, em corpo inteiro, sem outro engagement que não seja o de talento no talento! Sem outro engagement? Que digo eu! O talento, entre nós, sempre esteve comprometido, sempre mostrou o que valia a respeito (não a despeito) da realidade social em que o deixaram comover-se e produzir-se. Porque falar, então, de talento exclusivamente engajado no talento? Porque o altruísmo do nosso formoso talento literário mais não é que o caminho (fácil) que o nosso egoísmo tomou. Demitamo-nos de um talento assim - e quanto antes! Groucho Marx, o pé que resta do tripé frenético que foram os irmãos Marx, disse um dia: «Peço a minha demissão de sócio deste clube porque não posso ser sócio dum clube que me aceita como sócio!». Sigamos-lhe o exemplo e, se possível, o desalienante e explosivo talento.
Um homem, diante do espelho, pronto a arrostar com mais um dia de barba - logo desenxabido pelo sólito insólito enquadramento: a sua própria cara. Não há filosofia matinal que resista a um descaro assim. Resiste o espelho. Primeiros socorros: deitar a língua de fora, caretear, esfregar com energia a toalha turca na língua. Ajuda a tirar o sarro. Fiapos na boca! O pano turco já não é o que era. Quando menino, atara dois lençóis de pano turco um ao outro e a pulso descera da varanda ao pátio. Nem um fiapo lhe sobrara nas mãos. Agora é o que se vê... Não! O que se vê é, já agora, a cara... Vamos preferi-la a qualquer outra? Fácil, repara! Não há outra... Ela aí, aqui está, estanhada - mas tua! Mapa de excessos tal cara! Todos lá, até o excesso de servilismo. Áspera ao tacto, parece a cara dum homem mas a bochecha-nalga a descair sobre a direita escorre o olho do mesmo lado. Chorão! Por um pouco, cara de cão de água: olho a vazar-se, boca desdém-desgostosa, meio dente à mostra na comissura ascendente.Assim ia a barba!
Olhou com rancor aquela cara, tomou do pincel. Num assomo, avisou para o espelho:
- Viva eu!
E às pressas ensaboou a sua cara de todas as manhãs.
Estou a dedicar o dia a o’neill e julgo que não me vou arrepender...Assim, até me esqueço de todos os meus arrependimentos...
Lancemos ainda o nosso olhar sobre mulheres espraiadas: viram-se e reviram-se sobre as toalhas para bem se tisnarem por todos os lados. Trazem sacos e maridos para a praia. E filhos. Mulheres que vão chamando as crianças pelos seus nomes duplos, soltando «gritinhos» e dando-lhes «sanduíches de areia.
Volto aos meus amigos fotógrafos para os compreender nas suas preocupações e os prevenir nas suas ambições. Descobrir a fórmula que nos permite – a nós, criadores – repetir milagres é uma tentação bem humana. Mas não esqueçamos, clique! bons amigos, que a arte é desregra permanente. Uma fórmula na mão só nos garante que seremos capazes de repetir ad infinitum para os basbaques, a começar pelo basbaque que há em nós. Uma fórmula não abre caminhos: fecha caminhos. Deixem que cada um dos vossos momentos felizes não se repita mais.
A obra é a obra e nada a pode substituir e ninguém pode arrogar-se o direito de possuir a explicação total dela. Aliás, uma obra de arte não se explica, decifra-se. E essa decifração dá-se quando a nossa intimidade com ela foi alcançada à nossa custa, foi resultado de um lento, longo amor por ela.
A poesia nada tem a ver com a emoção. A poesia faz-se com experiências humanas, não com emoções nem sentimentos. Eventualmente,nas experiências humanas poderá estar contida emoção. Ora os grandes textos que resistem até hoje, pode dizer-se que são didácticos. Estou a pensar em Virgílio e nas suas Geórgicas ou em Os trabalhos e os dias, de Hesíodo. Ficaram até hoje.
O amor faz-me recuperar incessantemente o poder da provocação. É assim que te faço arder triunfalmente onde e quando quero: basta-me fechar os olhos.
Devo acrescentar que, fosse eu quem fosse, não haveria nada nem ninguém que me demovesse de tirar da vida uma prostituta do Cais do Sodré e fazer dela minha companheira. Assim ela gostasse de mim. E eu dela. É que, quanto a prostitutas do Cais do Sodré ou da Alta Roda, temos conversado.
Não sei exactamente de que esquerda, mas sou com certeza um homem de esquerda... no que tenho orgulho, atenção!.
Maneira portuguesa de estar no mundo...jeito para a negociação, uma humildade assumida, a tempo e com bem representada compunção, uma certa prosápia, uma manha assente na convicção da capacidade de convencer o outro pela palavra, num país "padrasto", convicto de que tudo é o que é e o seu contrário, de que "mó de cima e mó de baixo" são elementos de um mesmo todo determinado por "golpes de boa sorte ou de má sorte.
À consciência da fugacidade do tempo, da transitoridade de tudo, pode reagir-se de infinitas maneiras. A minha pessoal maneira de reagir (e peço perdão dela vir ao caso) é a amarração do efémero do tempo e do sítio em que, por insondáveis carambolas, me é dado viver. Mas o efémero que representa o meu aqui-agora e que eu, muito humanamente, desejo fixar (com todas as suas - e as minhas contradições, opções, lutas, etc.), tem o seu peculiar «décor», os seus adereços, as suas típicas personagens, a sua acção, os seus dizeres. Se eu não me pormenorizar neles, ao mesmo tempo deles tomando distância mediante uma operação de sobrevivência chamada ironia, que testemunho darei a mim mesmo (a mim mesmo como consciência angustiada da efeméride da minha vida) do tempo-sítio que é o meu para mim?
Numa casa de pasto do Bairro Alto, em Lisboa, pode ler-se, se o fumo das frituras deixar, o seguinte desbotado letreiro, mesmo por cima dum queres-fiado-toma: Aceitam-se comensais e semanais.
alleluia, hallelu yah...
1. Cântico de alegria, geralmente associado à Páscoa.
2. Descerramento das imagens no Sábado Santo.
3. Alegria; louvor.
4. Oxalis acetosella da família das oxalidáceas, que floresce geralmente na altura da Páscoa, mais conhecida por azedas.
5. Designação comum de várias espécies de térmites.
6. Interjeição que exprime alegria, júbilo...
A minha aleluia é do domínio da botânica. Azedas sabem-me a infância: um sabor ácido ,clandestino, proibido, irresistível, apesar dos avisos sobre eventuais efeitos indesejados e indesejáveis. ...As azedas ocupam um lugar de relevo nas minhas paixões pueris...Recordo, com saudade, esses caules gordos de seiva acre que me atraíam como estupefacientes...ir à cata das azedas faz parte do meu imaginário...Não sei explicar porquê, mas nunca me ocorre dizer ir à procura de , a expressão surge-me, vinda dos confins de um passado remoto, como se fosse um único vocábulo " ir à cata das azedas"...
Renascer
1. Nascer de novo. 2. Renovar-se; rejuvenescer.3. Tornar a aparecer; ressurgir; germinar de novo.4. Emendar-se; corrigir-se. 5. Tornar ao estado de graça. Estou a pensar na aceção que mais me convém: estou indecisa...
Vivemos sempre sem pedir licença Cantávamos cantigas proibidas Vencemos os apelos da descrença Que não deixaram mágoas nem feridas Clandestinos do amor, sábios e loucos Vivemos de promessas ao luar Das noites que souberam sempre a pouco Sem saber o que havia para jantar Mas enquanto olhares para mim eu sou eterna Estou viva enquanto ouvir a tua voz Contigo não há frio nem inverno E a música que ouvimos vem de nós Vivemos sem saber o que era o perigo De beijos e de cravos encarnados Do calor do vinho e dos amigos Daquilo que para os outros é pecado Tu sabias que eu vinha ter contigo Pegaste-me na mão para dançar Como se acordasse um sonho antigo Nem a morte nos pode separar Nós somos um instante no infinito Fragmento à deriva no universo O que somos não é para ser dito O que sente não cabe num só verso Enquanto olhares para mim eu sou eterna Estou viva enquanto ouvir a tua voz Contigo não há frio nem inverno E a música que ouvimos vem de nós...
Ressuscitar
1. Fazer voltar da morte à vida.
2. Restaurar, fazer reviver.
3. Voltar da morte à vida; ressurgir.
4. Aparecer novamente.
5. Restabelecer-se de uma doença muito grave.
6. Escapar a um perigo mortal.
Eu não quero ressuscitar, nem em sentido próprio nem em sentido figurado, só gostaria de renascer...
Mas onde tudo morre tudo volta a nascer Já é dia e a luz está em tudo o que se vê Cá dentro não se ouve o que lá fora faz chover Na cidade que há em ti encontrei o meu lugar e é em ti que vou ficar.
Hoje, ao tomar de vez a decisão de ser Eu, de viver à altura do meu mister, e, por isso, de desprezar a ideia do reclame, e plebeia sociabilizacão de mim... reentrei de vez, de volta da minha viagem de impressões pelos outros, na posse plena do meu Génio e na divina consciência da minha Missão. Hoje só me quero tal qual meu carácter nato quer que eu seja; e meu Génio, com ele nascido, me impõe que eu não deixe de ser. Atitude por atitude, melhor a mais nobre, a mais alta e a mais calma. Pose por pose, a pose de ser o que sou.
Nada de desafios à plebe, nada de girândolas para o riso ou a raiva dos inferiores. A superioridade não se mascara de palhaço; é de renúncia e de silêncio que se veste. O último rasto de influência dos outros no meu carácter cessou com isto. Reconheci — ao sentir que podia e ia dominar o desejo intenso e infantil... — a tranquila posse de mim.
Um raio hoje deslumbrou-me de lucidez. Nasci.
Quero-te regar, minha flor
Quero cuidar de ti
Deixa-me entrar no jardim
Deixa-me voltar a dormir...
Eu sou o que posso ir sendo, mas lá chegado, talvez seja ao contrário do que esperaríeis que eu fosse...I tie my life to your balloon and let it go...
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