Como me sinto? Pouco mais ou menos como São João Mártir na caldeira de óleo(...) o que descrevia era a primeira folha da série de xilogravuras com que Durer ilustrou o Apocalipse; eu reconheci-a ,muito antes do fim da descrição. Naquela altura , tal comparação afigurou-se-me bastante rebuscada,ainda que despertasse em mim imediatamente certos pressentimentos. Como não poderia relembrá-la mais tarde, quando se descortinava lentamente aos meus olhos o propósito de Adrian, a obra que ele levaria a cabo, enquanto ela leva a melhor sobre ele, e em cuja realização as suas forças se haviam cncentrado durante os torturantes achaques que as debilitavam? Não tinha eu razão ao afirmar que no artista os estados de depressão e de produtiva euforia, a doença e a saúde não se opõem em nítida separação? (...) É mesmo assim. Devo esta percepção a uma amizade que me causou muitas mágoas e grandes terrores, mas que também me encheu sempre de orgulho: o génio é uma forma de energia vital, profundamente conhecedora da doença, abeberada na mesma e criativa através dela.
A concepção do oratório apocalíptico e o clandestino trabalho nele baseado remontam, portanto, bem longe, a um período no qual as forças de Adrian pareciam totalmente esgotadas
O meu relato apressa-se para alcançar o seu fim - como, de resto, fazem todas as coisas. Tudo se arremessa , se precipita em direcção ao fim. Sob o signo do fim se encontra o globo, pelo menos para nós, os alemães, cuja história milenar foi refutada ad absurdum, baldada tragicamente, e se evidencia errada, como demonstra este resultado.
Que significará então pertencer a um povo, cuja história lhe preparou tal malogro atroz; a um povo sem fé em si mesmo, moralmente consumido, que confessadamente desepera da possibilidade de se governar a si próprio e acha ainda preferível transformar-se numa colónia de potênciasestrangeiras; a um povo que terá de viver isolado dos demais, como os judeus do gueto, porque o ódio terrível que se acumulou à sua voltanão lhe permitirá sair das suas fronteiras - a um povo que já não pode aparecer em público?
Eu ficava frequentemente abandonado a mim mesmo, por ocasião das minhas visitas a Adrian. Não me queixo disso, definitivamente. Estava perto dele e perto da criação da obra que amo entre aflições e tremores, dessa obra que, durante um decénio e meio, permaneceu infamada e proscrita, um tesouro oculto, e talvez ressuscite agora, resgatada pela arrasadora libertação que estamos a suportar.
A cantata de Fausto distingue-se do Apocalipsis pelos seus grandes interlúdios orquestrais...É, por assim dizer, o caminho inverso do Hino da Alegria... Meu pobre, grande amigo! Ao ler a sua obra póstuma, a obra do meu ocaso, que, profeticamente, antecipa de muito outro ocaso, quantas vezes não recordei as palavras dolorosas que me dirigiu na hora da morte da criança; a afirmação de que " aquilo não deve existir", o bom, a alegria,a esperança; não deverá existir, será revogado, é preciso revogá-lo!
recebi ... a notícia de que se haviam extinguido os restos de uma vida que dera à minha própria a sua substância essencial, em matéria de amor, angústia, pavor e orgulho...
Acabei de ler e , agora, resta-me devolver o livro à biblioteca municipal: " Adeus, Adrian,despeço-me. Talvez para sempre..." Gostar muito de um livro, que não nos pertence, torna o melancolia de chegar ao fim particularmente dolorosa. Foi penoso separar-me deste doutor, afeiçoara-me a ele, mesmo sabendo que não me pertencia nem nunca poderia vir a ser meu.
Esta edição tipográfica divide-se em quinze capítulos: a cada gravura, segue-se o respetivo comentário e O pormenor do desenho, para além da utilização das iniciais capitulares do alfabeto gótico de Durer. Adicionou-se o próprio texto do Apocalipse, baseado na versão portuguesa da autoria do setecentista padre doutor António Pereira de Figueiredo, da Congregação do Oratório, em texto atualizado na ortografia e revisto a partir da Biblia de Jerusalém.
(Esta preciosidade não existe na minha biblioteca...)
Subitamente, a imagem que me fascinava... tornou-se feia, quase repelente...O olhar é, realmente, uma projeção subjetiva do pensamento...Eis uma revelação apocalítica...
O livro bíblico do Apocalipse expõe assuntos que estavam ocultos e revela eventos futuros.
Introdução.
Mensagens de Jesus às sete congregações.
Uma visão de Deus no seu trono nos céus.
Uma sequência de visões onde cada uma introduz a próxima: Sete selos / Sete trombetas; as três últimas anunciam três ‘ais’ / Sete tigelas, cada uma contendo uma praga que representa um julgamento divino que será derramado sobre a Terra.
Visões sobre a destruição dos inimigos de Deus.
Visões das bênçãos de Deus sobre os céus e a Terra.
Conclusão.
A morte — esse pior que tem por força que acontecer;
Esse cair para o fundo do poço sem fundo;
Esse escurecer universal para dentro;
Esse apocalipse da consciência , com a queda de todas as estrelas —
Isso que será meu um dia,
Um dia pertíssimo, pertíssimo,
Pinta de negro todas as minhas sensações,
E é areia sem corpo escorrendo-me por entre os dedos
O pensamento e a vida.
Pensando que cada passo na minha vida era um contacto com o horror do Novo, e que cada nova pessoa que eu conhecia era um novo fragmento vivo do desconhecido que eu punha em cima da minha mesa para quotidiana meditação apavorada — decidi abster-me de tudo, não avançar para nada, reduzir a acção ao mínimo, furtar-me o mais possível a que eu fosse encontrado quer pelos homens quer pelos acontecimentos, requintar sobre a abstinência e pôr a abdicação a bizantino. Tanto (o) viver me apavora e me tortura. Decidir-me, finalizar qualquer coisa, sair do duvidoso e do obscuro, são coisas [que] se me figuram catástrofes, cataclismos universais. Sinto a vida em apocalipse e cataclismo. Dia a dia em mim aumenta a incompetência para sequer esboçar gestos para me conceber sequer em situações claras de realidade. A presença dos outros — tão inesperado de alma a todo o momento — dia a dia me é mais dolorosa e angustiante. Falar com os outros percorre-me de arrepios. Se mostram interesse por mim, fujo. Se me olham, estremeço. Estou numa defesa perpétua. Doo-me a vida e a outros. Não posso fitar a realidade frente a frente. O próprio sol já me desanima e me desola. Só à noite, e à noite a sós comigo, alheio, esquecido, perdido — sem liga com a realidade nem parte com a utilidade — me encontro e me dou conforto. Tenho frio da vida. Tudo é caves húmidas e catacumbas sem luz na minha existência. Sou a grande derrota do último exército que sustinha o último império. Saibo-me a fim de uma civilização antiga e dominadora. Estou só e abandonado, eu que como que costumei mandar outros. Estou sem amigo, sem guia, eu a quem sempre outros guiaram...
São sempre cataclismos do cosmos as grandes angústias da nossa alma. Quando nos chegam, em torno a nós se erra o sol e se perturbam as estrelas. Em toda a alma que sente chega o dia em que o Destino nela representa um apocalipse de angústia — um entornar dos céus e dos mundos todos sobre a sua desconsolação.
Sentir-se superior e ver-se tratado pelo Destino como inferior aos ínfimos — quem pode vangloriar-se de estar homem em tal situação.
Se eu um dia pudesse adquirir um rasgo tão grande de expressão, que concentrasse toda a arte em mim, escreveria uma apoteose do sono. Não sei de prazer maior, em toda a minha vida, que poder dormir. O apagamento integral da vida e da alma, o afastamento completo de tudo quanto é seres e gente, a noite sem memória nem ilusão, o não ter passado nem futuro (...)
O moço que atava os embrulhos de todos os dias no frio crepuscular do escritório vasto. «Que grande trovão», disse, para ninguém, com um tom alto de «bons dias», o crudelíssimo bandido. Meu coração começa a bater de novo. O apocalipse tinha passado. Fez-se uma pausa.E com que alívio — luz forte e clara, espaço, trovão duro — este troar próximo já afastado nos aliviava do que houvera. Deus cessara. Senti-me respirar com os pulmões inteiros. Reparo que estava pouco ar no escritório. Notei que havia ali outra gente, sem ser o moço. Todos haviam estado calados. Soou uma coisa trémula e crespa: era a grande folha espessa do Razão que o Moreira virara para diante, bruscamente, para verificar.
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