Não é neccessário vivermos ao lado de alguém para nos sentirmos ligados a esse alguém mais do que a qualquer outra pessoa...

domingo, 20 de novembro de 2016

Amores, embaraços e incómodos ....

Que somos todos diferentes, é um axioma da nossa naturalidade. Só nos parecemos de longe, na proporção, portanto, em que não somos nós. A vida é, por isso, para os indefinidos; só podem conviver os que nunca se definem, e são, um e outro, ninguéns. Cada um de nós é dois, e quando duas pessoas se encontram, se aproximam, se ligam, é raro que as quatro possam estar de acordo. O homem que sonha em cada homem que age, se tantas vezes se malquista com o homem que age, como não se malquistará com o homem que age e o homem que sonha no Outro. Somos forças porque somos vidas. Cada um de nós tende para si próprio com escala pelos outros. Se temos por nós mesmos o respeito de nos acharmos interessantes, (...) Toda a aproximação é um conflito. O outro é sempre o obstáculo para quem procura. Só quem não procura é feliz; porque só quem não busca encontra, visto que quem não procura já tem, e já ter, seja o que for, é ser feliz (como não pensar é a parte melhor, de ser rico).
Olho para ti, dentro de mim,... e já nos desavimos antes de existires. O meu hábito de sonhar claro dá-me uma noção justa da realidade. Quem sonha demais precisa de dar realidade ao sonho. Quem dá realidade ao sonho tem que dar ao sonho o equilíbrio da realidade. Quem dá ao sonho o equilíbrio da realidade, sofre da realidade de sonhar tanto como da realidade da vida (e do irreal do sonho com o de sentir a vida irreal). Estou-te esperando, em devaneio, num quarto com duas portas, e sonho-te vindo e no meu sonho entras até mim pela porta da direita; se, quando entras, entras pela porta da esquerda, há já uma diferença entre ti e o meu sonho. Toda a tragédia humana está neste pequeno exemplo de como aqueles com quem pensamos nunca são aqueles em quem pensamos.
O amor perde identidade na diferença, o que é impossível já na lógica, quanto mais no mundo. O amor quer possuir, quer tornar seu o que tem de ficar fora para ele saber que só torna seu se não é. Amar é entregar-se. Quanto maior a entrega, maior o amor. Mas a entrega total entrega também a consciência do outro. O amor maior é por isso a morte, ou o esquecimento, ou a renúncia — os amores todos que são os absurdiandos do amor.
No terraço antigo do palácio, alçado sobre o mar, meditaremos em silêncio a diferença entre nós. Eu era príncipe e tu princesa, no terraço à beira do mar. O nosso amor nascera do nosso encontro, como a beleza se criou do encontro da Lua com as águas. O amor quer a posse, mas não sabe o que é a posse. Se eu não sou meu, como serei teu, ou tu minha? Se não possuo o meu próprio ser, como possuirei um ser alheio? Se sou já diferente daquele de quem sou idêntico, como serei idêntico daquele de quem sou diferente. O amor é um misticismo que quer praticar-se, uma impossibilidade que só é sonhada como devendo ser realizada. Metafísico. Mas toda a vida é uma metafísica às escuras, com um rumor de deuses e o desconhecimento da rota como única via.
A pior astúcia comigo da minha decadência é o meu amor à saúde e à claridade. Achei sempre que um corpo belo e o ritmo feliz de um andar jovem tinham mais competência no mundo que todos os sonhos que há em mim. E com uma alegria da velhice pelo espírito que sigo às vezes — sem inveja nem desejo — os pares casuais que a tarde junta e caminham braço com braço para a consciência inconsciente da juventude. Gozo-os como gozo uma verdade, sem que pense se me diz ou não respeito. Se os comparo a mim, continuo gozando-os, mas como quem goza uma verdade que o fere, juntando à dor da ferida a consciência de ter compreendido os deuses.
Sou o contrário dos espiritualistas simbolistas, para quem todo o ser, e todo o acontecimento, é a sombra de uma realidade de que é a sombra apenas. Cada coisa, para mim, é, em vez de um ponto de chegada, um ponto de partida. Para o ocultista tudo acaba em tudo; tudo começa em tudo para mim. Procedo, como eles, por analogia e sugestão, mas o jardim pequeno que lhes sugere a ordem e a beleza da alma, a mim não lembra mais que o jardim maior onde possa ser, longe dos homens, feliz a vida que o não pode ser. Cada coisa sugere-me não a realidade de que é a sombra, mas a realidade para que é o caminho. O jardim da Estrela, à tarde, é para mim a sugestão de um parque antigo, nos séculos antes do descontentamento da alma.


Tenho sempre receio de que falem em mim. Falhei em tudo. Nada ousei sequer pensar em ser; pensar que o desejaria nem sequer o sonhei porque no próprio sonho me conheci incompatível para a vida, até no meu estado visionário de sonhador apenas. Nem um sentimento levanta a minha cabeça do travesseiro onde a afundo por não poder com o corpo, nem com a ideia de que vivo, ou sequer com a ideia absoluta da vida. Não falo a língua das realidades, e entre as coisas da vida cambaleio como um doente de longo leito que se ergue pela primeira vez. Só no leito me sinto na vida normal.(...) No fundo nenhum outro prazer do que a análise da dor, nem outra volúpia que a do colear líquido e doente das sensações quando se esmiuçam e se decompõem — leves passos na sombra incerta, suaves ao ouvido, e nós nem nos voltamos para saber de quem são, vagos cantos longínquos, cujas palavras não buscamos colher, mas onde nos embala mais o indeciso do que dirão e a incerteza do lugar donde vêm; ténues segredos de águas pálidas, enchendo de longes leves os espaços (...) Ó campo morto em mim! Ó sossego rústico passado em sonhos! Ó minha vida fútil como um maltez que não trabalha e dorme à beira dos caminhos com o aroma dos prados a entrar-lhe na alma como um nevoeiro, num sono translúcido e fresco, fundo e cheio de entender com tudo que nada liga a nada, nocturno, ignorado, nómada e cansado sob a compaixão fria das estrelas.
Sigo o curso dos meus sonhos, fazendo das imagens degraus para outras imagens; desdobrando, como um leque, as metáforas casuais em grandes quadros de visão interna; desato de mim a vida, e ponho-a de banda como a um traje que aperta. Oculto-me entre árvores longe das estradas. Perco-me. E logro, por momentos que correm levemente, esquecer o gesto à vida, deixar […] a ideia de luz e de bulício e acabar conscientemente, absurdamente pelas sensações fora, como um império de ruínas angustiadas [?], e uma entrada entre pendões e tambores de vitória numa grande cidade final onde não choraria nada, nem desejaria nada e nem a mim próprio pediria o ser.
Doem-me as superfícies dos azuis dos tanques que criei em sonhos. É minha a palidez da Lua que visiono sobre paisagens de florestas. É o meu cansaço o outono dos céus estagnados que recordo e não vi nunca. Pesa-me toda a minha vida morta, todos os meus sonhos faltos, tudo meu que não foi meu, no azul dos meus céus interiores, no tinir à vista do correr dos meus rios na alma, no vasto e inquieto sossego dos trigos nas planícies que vejo e que não vejo.
Uma chávena de café; um tabaco que se fuma e cujo aroma nos atravessa, os olhos quase cerrados num quarto em penumbra... não quero mais da vida do que os meus sonhos e isto... Se é pouco? Não sei. Sei eu acaso o que é pouco ou o que é muito? Tarde de verão lá fora como eu gostaria de ser outro... Abro a janela. Tudo lá fora é suave, mas punge-me como uma dor incerta, como uma sensação vaga de descontentamento. E uma última coisa punge-me, rasga-me, esfrangalha-me toda a alma. É que eu, a esta hora, a esta janela, perante estas coisas tristes e suaves, devia ser uma figura estética, bela, como uma figura num quadro — e eu não o sou, nem isto sou...
A hora que passe e esqueça... A noite que venha, que cresça, que caia sobre tudo e nunca se erga. Que esta alma seja o meu túmulo para sempre, e que (...) se absoluto em treva e eu nunca mais pense viver a sentir ou desejar.


Pensando que cada passo na minha vida era um contacto com o horror do Novo, e que cada nova pessoa que eu conhecia era um novo fragmento vivo do desconhecido que eu punha em cima da minha mesa para quotidiana meditação apavorada — decidi abster-me de tudo, não avançar para nada, reduzir a acção ao mínimo, furtar-me o mais possível a que eu fosse encontrado quer pelos homens quer pelos acontecimentos, requintar sobre a abstinência e pôr a abdicação a bizantino. Tanto (o) viver me apavora e me tortura. Decidir-me, finalizar qualquer coisa, sair do duvidoso e do obscuro, são coisas [que] se me figuram catástrofes, cataclismos universais. Sinto a vida em apocalipse e cataclismo. Dia a dia em mim aumenta a incompetência para sequer esboçar gestos para me conceber sequer em situações claras de realidade. A presença dos outros — tão inesperado de alma a todo o momento — dia a dia me é mais dolorosa e angustiante. Falar com os outros percorre-me de arrepios. Se mostram interesse por mim, fujo. Se me olham, estremeço. Estou numa defesa perpétua. Doo-me a vida e a outros. Não posso fitar a realidade frente a frente. O próprio sol já me desanima e me desola. Só à noite, e à noite a sós comigo, alheio, esquecido, perdido — sem liga com a realidade nem parte com a utilidade — me encontro e me dou conforto. Tenho frio da vida. Tudo é caves húmidas e catacumbas sem luz na minha existência. Sou a grande derrota do último exército que sustinha o último império. Saibo-me a fim de uma civilização antiga e dominadora. Estou só e abandonado, eu que como que costumei mandar outros. Estou sem amigo, sem guia, eu a quem sempre outros guiaram...

A minha mulher, a minha Mary, adormece como se fecha a porta de um armário. Quantas vezes a contemplei com inveja? Enrosca o lindo corpo como se se instalasse num casulo, suspira, os olhos fecham-se e os lábios tomam a forma daquele sorriso sábio e vago dos antigos deuses gregos....

(…)Quem confia os seus segredos ou uma história deve contar com a pessoa que o escuta ou lê, pois uma história tem tantas versões como leitores. Cada um toma dela o que quer ou o que pode, talhando-a assim à sua própria medida. Alguns aceitam uma parte e rejeitam o resto, outros passam-na à peneira dos seus conceitos, outros ainda transformam-na a seu bel-prazer. Uma história, para poder agradar, deve ter alguns pontos de contacto com o leitor. Só assim ele aceitará a parte maravilhosa.

Somos todos, ou quase todos, os pupilos daquela ciência do século XIX que nega a existência de tudo quanto não se pode medir ou explicar. O que não explicamos nem por isso deixa de existir, mas certamente não recebe a nossa bênção; não aprendemos o que não explicamos e assim o mundo , na sua maior parte, fica abandonado às crianças, aos anormais, aos imbecis e aos místicos, todos eles muito mais interessados pela existência das coisas do que pela razão de ser dessas mesmas coisas. Se tantas coisas velhas e adoráveis foram relegadas para o sótão do mundo é porque não queremos que elas continuem perto de nós, e , contudo, não ousamos deitá-las fora.


Inês tem a meu respeito ideias muito curiosas,totalmente erradas, e isso torna a relação muito embaraçosa, como se não bastassem os embaraços que esse tipo de "liaison" de qualquer forma traz consigo, com a ininterrupta necessidade de se acautelar e de se prever tudo. Ela conforma-se mais facilmente com essa situação, pelo simples facto de estar enamorada apaixonadamente. Posso dizê-lo , tanto mais que o seu amor se baseia numa premissa falsa. Nete ponto, o menos favorecido sou eu, uma vez que não a amo. Nunca a amei. Confesso-o francamente. Sempre tive por ela sentimentos fraternais, de camaradagem, e se me deixei arrastar para esta aventura, se esta história tola se prolonga e Inês se aferra a ela, não há da minha parte outra coisa a não ser o mero cumprimento de deveres de cavalheiro...
E acrescentou - muito confidencialmente- que era penoso e até degradante uma situação na qual a paixão , uma paixão totalmente desesperada, emana exclusivamente da mulher, enquanto o homem se limita a não faltar às suas obrigações de cavalheiro.(...) de modo que le , Rudolf, se via forçado a dizer que Inês dispunha da sua pessoa, do seu corpo, de uma forma que normal e acertadamente caberia ao macho, em relação à fêmea. E ainda sobrevinha aquele ciúme mórbido e convulsivo que ela sentia, sem nenhum motivo, e aquela mania de querer monopolizá-lo.(...)
- Geralmente formam a meu respeito juízos errados... Prefiro mil vezes travar conversações sérias que me enalteçam e me façam progredir, com um homem de elevadas qualidades, a ficar na cama com qualquer mulher. Sim, se eu tivesse de me defnir a mm mesmo...iria incluir-me entre as naturezas platónicas...


Aquela senhora velha
Que fala com tão bom modo
Parece ser uma abelha
Que nos diz: «Não incomodo.»


Nunca amei ninguém. O mais que tenho amado são sensações minhas - estados da visualidade consciente, impressões da audição desperta, perfumes que são uma maneira de a humildade do mundo externo falar comigo, dizer-me coisas do passado (tão fácil de lembrar pelos cheiros) isto é, de me darem mais realidade, mais emoção, que o simples pão a cozer lá dentro na padaria funda, como naquela tarde longínqua em que vinha do enterro do meu tio que me amara tanto e havia em mim vagamente a ternura de um alívio, não sei bem de quê.
É esta a minha moral, ou a minha metafísica, ou eu; transeunte de tudo - até de minha própria alma -, não pertenço a nada, não desejo nada, não sou nada - centro abstracto de sensações impessoais, espelho caído sentiente virado para a variedade do mundo. Com isto, não sei se sou feliz ou infeliz; nem me importa.


Há um sono da atenção voluntária, que não sei explicar, e que frequentemente me ataca, se de coisa tão esbatida se pode dizer que ataca alguém. Sigo por uma rua como quem está sentado, e a minha atenção, desperta a tudo, tem todavia a inércia de um repouso do corpo inteiro. Não seria capaz de me desviar conscientemente de um transeunte oposto. Não seria capaz de responder com palavras, ou sequer, dentro em mim, com pensamentos, a uma pergunta de qualquer casual que fizesse escala pela minha casualidade coincidente. Não seria capaz de ter um desejo, uma esperança, uma coisa qualquer que representasse um movimento, não já da vontade do meu ser completo, mas até, se assim posso dizer, da vontade parcial e própria de cada elemento em que sou decomponível. Não seria capaz de pensar, de sentir, de querer. E ando, sigo, vagueio. Nada nos meus movimentos (reparo por o que os outros não reparam) transfere para o observável o estado de estagnação em que vou. E este estado de falta de alma, que seria cómodo, porque certo, num deitado ou num recumbente, é singularmente incómodo, doloroso até, num homem que vai andando pela rua.
É a sensação de uma ebriedade de inércia, de uma bebedeira sem alegria, nem nela, nem na origem. É uma doença que não tem sonho de convalescer. É uma morte alacre (...)


Matei a vontade a analisá-la. Quem me tornara a infância antes da análise, ainda que antes da vontade! Nos meus parques, sono morto, a sonolência dos tanques ao sol-alto, quando os rumores dos insectos chusmam na hora e me pesa viver, não como uma mágoa, mas como uma dor física por concluir.Palácios, muito longe, parques absortos, a estreiteza das áleas ao longe, a graça morta dos bancos de pedra para os que foram — pompas mortas, graça desfeita, ouropel perdido. Meu anseio que esqueço, quem me dera recuperar a mágoa com que te sonhei...

Que pensará o meu muro da minha sombra?
Pergunto-me às vezes isto até dar por mim
A perguntar-me coisas...
E então desagrado-me, e incomodo-me
Como se desse por mim com um pé dormente...


Lisboa, 24 de Junho de 1916
Minha querida Tia:
Muito lhe agradeço a sua carta de 13 e os parabéns que me traz. Muito agradeço também a carta do Raúl de 22 de Maio, a que responderei brevemente; creio que assim posso prometer, porque me sinto agora já um pouco melhor, já mais apto a não ter a inércia que tenho tido e que, como calcula, tem sido devida aos sucessivos choques nervosos por que tenho passado.(...) Sobre o estado nervoso em que tenho vivido, não tenho passado mal ultimamente. De vez em quando, umas vezes voluntariamente, outras obrigado, escrevo. Mas raras vezes são «comunicações» compreensíveis. Certas frases percebem-se. E há sobretudo uma cousa curiosíssima — uma tendência irritante para me responder a perguntas com números; assim como há a tendência para desenhar. Não são desenhos de cousas, mas de sinais cabalísticos e maçónicos, símbolos do ocultismo e cousas assim que me perturbam um pouco. Não é nada que se pareça com a escrita automática da Tia Anica ou da Maria — uma narrativa, uma série de respostas em linguagem coerente. É assim mais imperfeito, mas muito mais misterioso.
É singular que, apesar de eu não perceber nada de tais números, consultei um amigo meu, ocultista e magnetizador (...) Explicou-me apenas que esse facto de eu escrever números era prova da autenticidade da minha escrita automática — isto é, de que não era autosugestão, mas mediunidade legítima. Os espíritos — diz ele — fazem essas comunicações para dar essa garantia; e essas comunicações são, por isso mesmo, incompreensíveis ao médium, e de ordem que mesmo o inconsciente dele era incapaz de imaginar (?).
Este meu amigo tem-me explicado outros números assim, com igual, e curiosa, segurança. Só houve três números que ele não compreendeu.
Estou contando rapidamente, e claro, e necessariamente omito pormenores e detalhes interessantes. O que narro, porém, é o essencial.
Não pára aqui a minha mediunidade. Descobri uma outra espécie de qualidade mediúnica, que até aqui eu não só nunca sentira, mas que, por assim dizer, só sentia negativamente. Quando o Sá-Carneiro atravessava em Paris a grande crise mental, que o havia de levar ao suicídio, eu senti a crise aqui , caiu sobre mim uma súbita depressão vinda do exterior , que eu, ao momento, não consegui explicar-me. Esta forma de sensibilidade não tem tido continuação. Guardo, porém, para o fim o detalhe mais interessante.
Há momentos, por exemplo, em que tenho perfeitamente alvoradas (?) de «visão etérica» — em que vejo a «aura magnética» de algumas pessoas, e, sobretudo, a minha ao espelho e, no escuro, irradiando-me das mãos. Não é alucinação porque o que eu vejo outros vêem-no, pelo menos, um outro, com qualidades destas mais desenvolvidas. Cheguei, num momento feliz de visão etérica, a ver na Brasileira do Rossio, de manhã, as costelas de um indivíduo através do fato e da pele . Isto é que é a visão etérica em seu pleno grau. Chegarei eu a tê-la realmente, isto é, mais nítida e sempre que quiser?
A «visão astral» está muito imperfeita. Mas às vezes, de noite, fecho os olhos e há uma sucessão de pequenos quadros, muito rápidos, muito nítidos (tão nítidos como qualquer cousa do mundo exterior). Há figuras estranhas, desenhos, sinais simbólicos, números (também já tenho visto números), etc. E há — o que é uma sensação muito curiosa — por vezes o sentir-me de repente pertença de qualquer outra cousa. O meu braço direito, por exemplo, começa a ser-me levantado no ar sem eu querer. (É claro que posso resistir, mas o facto é que não o quis levantar nessa ocasião.) Outras vezes sou feito cair para um lado, como se estivesse magnetizado, etc.
Perguntará a Tia Anica em que é que isto me perturba, e em que é que estes fenómenos — aliás ainda tão rudimentares — me incomodam? Não é o susto. Há mais curiosidade do que susto, ainda que haja às vezes cousas que metem um certo respeito, como quando, várias vezes, olhando para o espelho, a minha cara desaparece e me surge um fácies de homem de barbas, ou um outro qualquer (são quatro, ao todo, os que assim me aparecem).
O que me incomoda um pouco é que eu sei pouco mais ou menos o que isto significa. Não julgue que é a loucura. Não é: dá-se até o facto curioso de, em matéria de equilíbrio mental, eu estar bem como nunca estive. É que tudo isto não é o vulgar desenvolvimento de qualidades de médium. Já sei o bastante das ciências ocultas para reconhecer que estão sendo acordados em mim os sentidos chamados superiores para um fim qualquer que o Mestre desconhecido, que assim me vai iniciando, ao impor-me essa existência superior, me vai dar um sofrimento muito maior do que até aqui tenho tido, e aquele desgosto profundo de tudo que vem com a aquisição destas altas faculdades. Além disso, já o próprio alvorecer dessas faculdades é acompanhado duma misteriosa sensação de isolamento e de abandono que enche de amargura até ao fundo da alma.
Enfim, será o que tiver de ser. Eu não digo tudo, porque nem tudo se pode dizer. Mas digo o bastante para que, vagamente, me compreenda.
Não sei se realmente julgará que estou doido. Creio que não. Estas cousas são anormais sim, mas não antinaturais. Pedia-lhe o favor de não falar nisto a ninguém. Não há vantagem nenhuma, e há muitas desvantagens (algumas, talvez, de ordem desconhecida) em fazê-lo.

Adeus, minha querida Tia. Saudades à Maria e ao Raúl. Beijos ao Eduardinho. Para si muitos e muitos abraços do seu sobrinho muito amigo e grato
Fernando


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