Não é neccessário vivermos ao lado de alguém para nos sentirmos ligados a esse alguém mais do que a qualquer outra pessoa...

domingo, 4 de dezembro de 2016

Mundo às avessas...

O homem não é nada em si mesmo. Não passa de uma probabilidade infinita. Mas ele é o responsável infinito dessa probabilidade.



Uma releitura de Os Maias fez-me reconhecer que , por vezes, tenho sido injusta e excessiva nas minhas apreciações: mesmo não gostanto, particularmente, da minúcia descritiva, eça é um mestre inquestionável na arte de retratar cenários, ambientes e figuras humanas. Certos momentos do passeio por sintra e a delicadeza do enamoramento de carlos e maria eduarda são de uma beleza inefável. Mea culpa, mea maxima culpa, eça é, sem dúvida, um dos nomes mais representativos da literatura portuguesa...

Eram três horas quando se deitou. E apenas adormecera, na escuridão dos cortinados de seda, outra vez um belo dia de inverno morria sem uma aragem, banhado de cor de rosa: o banal peristilo de Hotel alargava-se, claro ainda na tarde; o escudeiro preto voltava, com a cadelinha nos braços; uma mulher passava, com um casaco de veludo branco de Génova, mais alta que uma criatura humana, caminhando sobre nuvens, com um grande ar de Juno que remonta ao Olimpo: a ponta dos seus sapatos de verniz enterrava-se na luz do azul, por trás as saias batiam-lhe como bandeiras ao vento. E passava sempre... O Craft dizia très-chic. Depois tudo se confundia, e era só o Alencar, um Alencar colossal, enchendo todo o céu, tapando o brilho das estrelas com a sua sobrecasaca negra e mal feita, os bigodes esvoaçando ao vendaval das paixões, alçando os braços, clamando no espaço: Abril chegou, sê minha!

Na praça, por defronte das lojas vazias e silenciosas, cães vadios dormiam ao sol: através das grades da cadeia os presos pediam esmola. Crianças, enxovalhadas e em farrapos, garotavam pelos cantos; e as melhores casas tinham ainda as janelas fechadas, continuando o seu sono de inverno, entre as árvores já verdes. De vez em quando aparecia um bocado da serra, com a sua muralha de ameias correndo sobre as penedias, ou via-se o castelo da Pena, solitário, lá no alto. E por toda a parte o luminoso ar de abril punha a doçura do seu veludo.

E dali olhava, enlevadamente, a rica vastidão de arvoredo cerrado, a que só se veem os cimos redondos, vestindo um declive da serra como o musgo veste um muro, e tendo àquela distância, no brilho da luz, a suavidade macia de um grande musgo escuro. E nesta espessura verde-negra havia uma frontaria de casa que o interessava, branquejando, afogada entre a folhagem, com um ar de nobre repouso, debaixo de sombras seculares... Um momento teve uma ideia de artista: desejou habitá-la com uma mulher, um piano e um cão da Terra-nova.

Cruges, no entanto, encostado ao parapeito, olhava a grande planície de lavoura que se estendia em baixo, rica e bem trabalhada, repartida em quadrados verde-claros e verde-escuros, que lhe faziam lembrar um pano feito de remendos assim que ele tinha na mesa do seu quarto. Tiras brancas de estradas serpeavam pelo meio: aqui e além, numa massa de arvoredo, branquejava um casal: e a cada passo, naquele solo onde as águas abundam, uma fila de pequenos olmos revelava algum fresco ribeiro, correndo e reluzindo entre as ervas. O mar ficava ao fundo, numa linha unida, esbatida na tenuidade difusa da bruma azulada: e por cima arredondava-se um grande azul lustroso como um belo esmalte, tendo apenas, lá no alto, um farrapozinho de névoa, que ficara ali esquecido, e que dormia enovelado e suspenso na luz...

Voltou-se, viu Maria Eduarda diante de si.Foi como uma inesperada aparição - e vergou profundamente os ombros, menos a saudá-la, que a esconder a tumultuosa onda de sangue que sentia abrasar-lhe o rosto. Ela, com um vestido simples e justo de sarja preta, um colarinho direito de homem, um botão de rosa e duas folhas verdes no peito, alta e branca, sentou-se logo junto da mesa oval, acabando de desdobrar um pequeno lenço de renda. Obedecendo ao seu gesto risonho, Carlos pousou-se embaraçadamente à borda do sofá de repes. E depois de um instante de silêncio, que lhe pareceu profundo, quase solene, a voz de Maria Eduarda ergueu-se, uma voz rica e lenta, de um tom de ouro que acariciava.

Perfeitamente, perfeitamente, murmurava Carlos, sorrindo, num encanto de tudo. E pareceu-lhe então que no olhar dela alguma coisa brilhara, fugira para ele, de mais vivo, de mais doce.

Quando se sentou, os seus olhos demoraram-se com uma curiosidade enternecida nesses objectos familiares onde pousava a doçura das mãos dela - um sinete d'ágata sobre um velho livro de contas, uma faca de marfim com monograma de prata ao lado de uma taça de Saxe cheia destaropilhas; e em tudo havia a ordem clara que tão bem condizia com o seu puro perfil. Na rua o realejo calara-se, por cima do tecto já não cavalavam as crianças. E, enquanto escrevia devagar, Carlos sentia-a abafar sobre a esteira o som dos seus passos, mover os seus vasos mais de leve.

Quando ela lhe estendeu a mão, um pouco de sangue subiu-lhe de novo à face ao tocar aquela palma tão macia e tão fresca. Pediu os seus cumprimentos para Mademoisele Rosa. Depois, à porta, já com o reposteiro na mão, voltou-se ainda, uma vez mais, numa última saudação, a receber o olhar suave com que ela o seguia...
- Até amanhã, está claro! exclamou ela de repente, com o seu lindo sorriso.
- Até amanhã, decerto!


Logo na primeira semana das visitas de Carlos tinham falado de afeições. Ela acreditava candidamente que pudesse haver, entre uma mulher e um homem, uma amizade pura, imaterial, feita da concordância amável de dois espíritos delicados. Carlos jurou que também tinha fé nessas belas uniões, todas de estima, todas de razão contanto que se lhes misturasse, ao de leve que fosse, uma ponta de ternura... Isso perfumava-as de um grande encanto - e não lhes diminuía a sinceridade. E, sob estas palavras um pouco difusas, murmuradas por entre as malhas do bordado e com lentos sorrisos, ficara subtilmente estabelecido que entre eles só deveria haver um sentimento assim, casto, legítimo, cheio de suavidade e sem tormentos.
Que importava a Carlos? Contanto que pudesse passar aquela hora na poltrona de cretone, contemplando-a a bordar, e conversando em coisas interessantes, ou tornadas interessantes pela graça da sua pessoa; contanto que visse o seu rosto, ligeiramente corado, baixar-se, com a lenta atracção de uma caricia, sobre as flores que lhe trazia; contanto que lhe afagasse a alma a certeza de que o pensamento dela o ficava seguindo simpaticamente através do seu dia, mal ele deixava aquela adorada saia de repes vermelho – o seu coração estava satisfeito, esplendidamente.


O que levou torga a meter na gaveta, durante quarenta anos, esta novela ? Considera o autor que a escreveu nos arroubos da juventude e que preferiu esquecê-la...Permito-me dizer eu que o terá considerado uma tentativa, quase pueril, de imitar o glorioso dom quixote... O facto é que, só aos 78 anos, torga tem coragem de publicar o que considerou um devaneio literário... O que o levou a publicá-la? Eis o que nos diz no prefácio:

Querido leitor: Não sei com que palavras te hei-de apresentar este livro, mesmo depois da volta que levou. Escrito de uma assentada há mais de quarenta anos, na idade em que os atrevimentos são argumentos, nele deixei a nu toda a fantasia descabelada e toda a canhestrez que se tem impunemente na juventude.(...) Depois de o aceitar em consciência e de o mortificar na bigorna do ofício, assumo em parte inteira o devaneio. E até com certo enternecimento. Talvez por me sentir incapaz de o repetir.

Coimbra, Maio de 1985

Teu, Miguel Torga


Em tardes assim como as de hoje, cansado de esperar não sei por que milagre, desanimado diante do mapa do mundo que da parede me desafia desde a meninice, começo a pensar no Senhor Ventura. Na sua evocação mitigo durante algumas horas a dor que vai dando cabo de mim. Não me resigno à ideia de ter vindo à luz neste tempo e numa terra durante séculos inquieta de descobrir e saber, e depois tragicamente adormecida para tudo o que não seja olhar-se e resignar-se. Parece-me um castigo imerecido do destino e da história. Mas, como sou homem de impossíveis, salvo-me como posso. Encho-me da lembrança mágica do Senhor Ventura, que nenhuma razão impediu de correr as sete partidas que chamam em vão por cada um de nós. Na sua figura ponho a realidade do que sou e a saudade do que podia ser. Entrelaço no desenho do seu nome quanto a imaginação me pede de distância e de perigo. Vivo nele. E, enquanto dura a memória dos seus passos, sinto-me tão verdadeiro que quase sou feliz.

Quem é o senhor ventura? Esta espécie de avesso dos heróis paradigmáticos portugueses não é um cavaleiro nem um santo...

A mulher olhou-o demoradamente. Não era fácil de compreender semelhante mistura de ferocidade e traficância, grandeza e lealdade. A sua inteligência fina, perspicaz, esbarrava diante de tamanho muro. Não quisera ou não pudera amá-lo. E sem amor não se podia entender nenhuma criatura.

Por fim, ambos encontravam a paz perpétua, ela a vê-lo partir para a eternidade, ele a esquecê-la para todo o sempre. A luta tinha sido árdua, por ser a última entre eles, um a esgotar a forças que lhe restavam e o outro a reagir passivamente. Mas tinham conseguido o que desejavam. Agora eram na verdade quilo que a natureza sempre lhes pedira: dois.

Eu não sei quem tu és, mas sei ao certo o que sou? (...) Que espécie de vida tens? Que modo de ver é o modo como te vejo? Teu perfil? (...) E eu digo isto porque o sei, ainda que não saiba que o sei. Teu corpo? (...) Que significa isto, que não significa nada ?

Não,não é cansaço...
É uma quantidade de desilusão
Que se me entranha na espécie de pensar,
É um domingo às avessas
Do sentimento,
Um feriado passado no abismo...


O vício (fala-se deste modo por comodidade de linguagem), o vício de cada um acompanha -o como aquele génio, que era invisível para os homens enquanto ignoravam a sua presença. A bondade, a artimanha, o nome, as relações mundanas não se deixam descobrir, e cada qual as traz escondidas. O próprio Ulisses a princípio não reconheceu Atenéia. Mas os deuses são imediatamente perceptíveis aos deuses, o semelhante o é bem depressa oa seu semelhante, e assim o fora ainda o Sr. de Charlus a Jupien.

Daí decorre que, no caso dos que amam os primeiros, o ciúme só é aguçado pelo prazer que poderiam ter com um homem e que é o único a parecer -lhes uma traição, visto que não participam do amor das mulheres, não praticaram senão por hábito e para reservar-se a possibilidade do casamento, imaginando tão parcamente o prazer que este pode proporcionar, que não podem tolerar que aquele a quem amam o desfrute; ao passo que os segundos inspiram com frequência o ciúme devido a seus amores com mulheres.

Deixemos todos esses, de uma variedade ou outra, que aparecerão por sua vez, e, para terminar esta primeira exposição, digamos só uma palavra acerca de quem tínhamos começado a falar agora há pouco, os solitários. Julgando o seu vício mais excepcional do que é, foram viver sozinhos no dia em que o descobriram, depois de o ter trazido consigo por muito tempo sem o conhecer, muito mais tempo apenas do que outros. Pois a princípio ninguém sabe que é invertido, ou poeta, ou snobe, ou malvado.

Não há grandes dores em grandes arrependimentos, nem em grandes recordações.Tudo se esquece, até mesmo os grandes amores. É o que há de triste e ao mesmo tempo de exaltante na vida. Há apenas uma certa maneira de ver as coisas e ela surge de vez em quando. É por isso que, apesar de tudo, é bom ter tido um grande amor, uma paixão infeliz na vida. Isso constitui pelo menos um álibi para o desespero sem razão que se apodera de nós.

Às vezes quando, abatido e humilde, a própria força de sonhar se me desfolha e se me seca, e o meu único sonho só pode ser o pensar nos meus sonhos, folhejo-os então, como a um livro que se folheia e se torna a folhear sem ter mais que palavras inevitáveis. É então que me interrogo sobre quem tu és, figura que atravessas todas as minhas visões demoradas de paisagens outras, e de interiores antigos e de cerimoniais faustosos de silêncio. Em todos os meus sonhos ou apareces, sonho, ou, realidade falsa, me acompanhas. Visito contigo regiões que são talvez sonhos teus, terras que são talvez corpos teus de ausência e desumanidade, o teu corpo essencial descontornado para planície calma e monte de perfil frio em jardim de palácio oculto. Talvez eu não tenha outro sonho senão tu, talvez seja nos teus olhos, encostando a minha face à tua, que eu lerei essas paisagens impossíveis, esses tédios falsos, esses sentimentos que habitam a sombra dos meus cansaços e as grutas dos meus desassossegos. Quem sabe se as paisagens dos meus sonhos não são o meu modo de não te sonhar? Eu não sei quem tu és, mas sei ao certo o que sou? Sei eu o que é sonhar para que saiba o que vale o chamar-te o meu sonho? Sei eu se não és uma parte, quem sabe se a parte essencial e real, de mim? E sei eu se não sou eu o sonho e tu a realidade, eu um sonho teu e não tu um Sonho que eu sonhe? Que espécie de vida tens? Que modo de ver é o modo como te vejo? Teu perfil? Nunca é o mesmo, mas não muda nunca. E eu digo isto porque o sei, ainda que não saiba que o sei. Teu corpo? Nu é o mesmo que vestido, sentado está na mesma atitude do que quando deitado ou de pé. Que significa isto, que não significa nada?

Há momentos em que tudo cansa, até o que nos repousaria. O que nos cansa porque nos cansa; o que nos repousaria porque a ideia de o obter nos cansa. Há abatimentos da alma abaixo de toda a angústia e de toda a dor; creio que os não conhecem senão os que se furtam às angústias e às dores humanas, e têm diplomacia consigo mesmos para se esquivar ao próprio tédio. Reduzindo-se, assim, a seres couraçados contra o mundo, não admira que, em certa altura da sua consciência de si-mesmos, lhes pese de repente o vulto inteiro da couraça, e a vida lhes seja uma angústia às avessas, uma dor perdida.
Estou em um desses momentos, e escrevo estas linhas como quem quer ao menos saber que vive. Todo o dia, até agora, trabalhei como um sonolento, fazendo contas por processos de sonho, escrevendo ao longo do meu torpor. Todo o dia me senti pesar a vida sobre os olhos e contra as têmporas — sono nos olhos, pressão para fora nas têmporas, consciência de tudo isto no estômago, náusea e desalento.


Comigo me desavim, Sou posto em todo perigo; Não posso viver comigo Nem posso fugir de mim.Com dor da gente fugia, Antes que esta assi crecesse:Agora já fugiria De mim , se de mim pudesse. Que meo espero ou que fim Do vão trabalho que sigo, Pois que trago a mim comigoTamanho imigo de mim?


Antre tremor e desejo, Vã esperança e vã dor, Antre amor e desamor, Meu triste coração vejo. Nestes extremos cativo Ando sem fazer mudança,E já vivi d'esperança E agora vivo de choro vivo. Contra mi mesmo pelejo, Vem d'ua dor outra dor E d'um desejo maior Nasce outro mor desejo.


Ó meus castelos de vento que em tal cuita me pusestes, como me vos desfizestes!Armei castelos erguidos, esteve a fortuna queda, e disse:– Gostos perdidos,como is a dar tão grã queda!Mas, oh!fraco entendimento! em que parte vos pusestes que então me não socorrestes? Caístes-me tão asinha caíram as esperanças; isto não foram mudanças, mas foram a morte minha. Castelos sem fundamento, quanto que me prometestes. quanto que me falecestes!


Cá está a lição, ó alma da gente!
Se a mãe esquece o filho que saiu dela e morreu,
Quem se vai dar ao trabalho de se lembrar de mim?
Estou só no mundo, como um peão de cair.
Posso morrer como o orvalho seca.
Por uma arte natural de natureza solar,
Posso morrer à vontade da deslembrança,
Posso morrer como ninguém...
Mas isto dói,
Isto é indecente para quem tem coração...
Isto...
Sim, isto fica-me nas goelas como uma sanduíche com lágrimas...
Gloria? Amor? O anseio de uma alma humana?
Apoteose ás avessas...
Dêem-me Agua de Vidago, que eu quero esquecer a Vida!


As figuras de amadas, que aliás não existem como figuras, nos versos de Ricardo Reis são abstracções às avessas, ou vistas do avesso. Não são abstracções no sentido de serem abstractas, mas no sentido de terem apenas a realidade necessária para serem consideradas como existindo. São Chloes, Lydias e outras romanidades assim, não porque não existam, mas porque para o caso tanto vale ser Chloe como Maria Augusta, e, ao passo que esta última faz supor uma costureira, ou coisa parecida, com a agravante de o poder ser deveras, a gente sente-se realmente pagão com a Lydia.

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