Mas o que me abalava era o pensamento de que desde então, desde aquele enlace...essa castidade já não tinha a sua origem na ética da pureza mas sim no patético da impureza.
No seu carácter houvera sempre um pouco de "noli me tangere" - eu sabia isso muito bem. Conhecia a repugnância que ele experimentava pela excessiva proximidade corporal de seres humanos , pela necessidade de compartilhar a atmosfera com outrem, pelo contacto com os corpos. No sentido literal do termo, Adrian era o homem da "aversão", do desapego, da reserva, do afastamento. Expansividades físicas pareciam totalmente alheias à sua índole. Os próprios apertos de mão eram raros e realizavam-se com certa rapidez. Mais nitidamente do que nunca, toda essa peculiaridade se manifestara durante o nosso renovado convívio, e eu tinha então a impressão de que o " não-me-toque", esse recuo a três passos de distância, tinha, sob um certo aspecto, modificado o seu sentido: não somente servia para rejeitar uma exigência, mas também manifestava o medo e a esquiva a uma exigência inversa, em evidente conexão com a abstiência quanto ao sexo feminino.
Somente uma amizade tão insistentemente atenta como a minha podia sentir ou suspeitar tal alteração do significado das coisas, e ... nunca hei-de afirmar que a sua percepção tenha diminuído o prazer de estar perto de Adrian! O que se passava nele era capaz de me comover, nunca, porém, de me afastar dele. Há pessoas com as quais não é fácil conviver, mas que jamais se podem abandonar.
Das virtudes a que o cristianismo incita, nenhuma, das que são verdadeiramente virtudes, lhe é própria; ele tem-nas em comum com o paganismo, como aliás com a maioria dos sistemas religiosos e éticos. E outras há que ele ou não tem, ou a que não incita, como sejam o culto da verdade, a dignidade, a escrupulosa justiça. As que lhe faltam são, em geral, as virtudes viris. Os princípios morais, que mais marcadamente lhe são próprios, são deletérios. São o misticismo, o cavalheirismo, e o humanitarismo. Virtudes há que o cr[istianis]mo apregoa, que são antinaturais, como a castidade, mas em parte por serem aristocráticas, implebeizáveis, ingeneralizáveis.
E os diálogos nos jardins fantásticos que contornam nada definidamente certas chávenas? Que palavras sublimes não devem estar trocando as duas figuras que se assentam no lado de lá daquele bule? E eu sem ouvidos apropriados para as ouvir, morto na polícroma humanidade!
Deliciosa psicologia das coisas deveras estáticas! A eternidade tece-a e o gesto que uma figura pintada tem desdenha, do alto da sua eternidade visível, a nossa transitória febre, que nunca se fixa numa atitude nem se demora nos portões de um esgar.
Não amamos, senão que fingimos amar. O verdadeiro amor, o imortal e inútil pertence àquelas figuras em que a mudança não entra, por sua natureza de estáticas. Desde que eu o conheço o japonês que se senta na curva do seu bule não mudou ainda... Não apertou nunca as mãos da mulher que está a um distar errado dele. Um colorido extinto como de um sol desaparecido irrealiza eternamente as encostas desse monte. E tudo aquilo obedece a um instante de pena. Que curioso deve ser o folclore do colorido povo dos painéis. Uns amores de figuras bordadas — amores de duas dimensões, duma castidade geométrica deverá ser.
Vis tangere...
A castidade com que abria as coxas e reluzia a sua flora brava. Na mansuetude das ovelhas mochas, e tão estrita, como se alargava. Ah, coito, coito, morte de tão vida, sepultura na grama, sem dizeres. Em minha ardente substância esvaída, eu não era ninguém e era mil seres em mim ressuscitados. Era Adão, primeiro gesto nu ante a primeira negritude de corpo feminino. Roupa e tempo jaziam pelo chão. E nem restava mais o mundo, à beira dessa moita orvalhada, nem destino.
O que é o amor natural? Chega a ser pretensioso o uso do artigo definido: há naturezas tão diferentes...


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