Releve-me o ser tão pouco estético o papel em que lhe escrevo. Mas é o que tenho à mão e eu sinto absoluta a necessidade de lhe escrever. Neste dia de sol claro e simples, assaltou-me um tédio de tal maneira profundo que não o posso exprimir senão expondo-lhe que sinto uma mão a estrangular-me a alma. Li hoje, pela não-sei-que-ésima vez, parte do seu livro e fez-me bem, como sempre me faz, por tão bem falar do meu mal. Escuso de empregar o vulgar «não imagina», para lhe descrever o abismo de torpor de todo o Eu em que estou caído; sei de sobra que você imagina isso muito bem, para mal da sua felicidade. Estou num destes momentos em que tudo perde o sabor a vida que tem e em que adoece dentro de nós o nosso modo de sentir as coisas; repare que eu digo que adoece, não as sensações, mas o modo como elas são sensações.
A propósito de tédios, lembra-me perguntar-lhe uma coisa... Viu, num número do ano passado, de A Águia um trecho meu chamado Na Floresta do Alheamento? Se não viu, diga-me. Mandar-lho-ei. Tenho imenso interesse que você conheça esse trecho.(...) Aquele trecho pertence a um livro meu, de que há muitos trechos escritos mas inéditos, mas que falta ainda muito para acabar; esse livro chama-se Livro do Desassossego, por causa da inquietação e incerteza que é a sua nota predominante. No trecho publicado isso nota-se. O que é em aparência um mero sonho, ou entresonho, narrado, e — sente-se logo que se lê, e deve, se realizei bem, sentir-se através de toda a leitura — uma confissão sonhada da inutilidade e dolorosa fúria estéril de sonhar.
Tenho-lhe falado de mim demasiadamente. Queria ter agora, neste momento, ao mesmo tempo em que as estou desejando, extensas novas suas. O que tem feito? Tem escrito? E tem escrito versos?
Espero para breve notícias suas. Se me pudesse escrever, não um postal, mas uma carta...!
Escravo do temperamento como das circunstâncias, insultado pela indiferença dos homens como pela sua afeição a quem supõem que sou (...) Perante cada coisa o que o sonhador deve procurar sentir é a nítida indiferença que ela, no que coisa, lhe causa.(...)Saber encontrar a cada sensação o modo sereno de ela se realizar. Fazer o amor resumir-se apenas a uma sombra de ser sonho de amor, pálido e trémulo intervalo entre os cimos de duas pequenas ondas onde o luar bate. Tornar o desejo uma coisa inútil e inofensiva, no como que sorriso delicado da alma a sós consigo própria; fazer dela uma coisa que nunca pense em realizar-se nem em dizer-se. Ao ódio adormecê-lo como a uma serpente prisioneira, e dizer ao medo que dos seus gestos guarde apenas a agonia no olhar, e no olhar da nossa alma, única atitude compatível com ser estética.
Sinto-me ninguém.
Nada tive, nada tenho, nada terei...
Resta-me a tua indiferença,
Como meu único bem.
A miséria da minha condição não é estorvada por estas palavras conjugadas, com que formo, pouco a pouco, o meu livro casual e meditado. Sobrevivo nulo no fundo de toda a expressão, como um pó indissolúvel no fundo do copo de onde se bebeu só água. Escrevo a minha literatura como escrevo os meus lançamentos — com cuidado e indiferença. Ante o vasto céu estrelado e o enigma de muitas almas, a noite do abismo incógnito e o choro de nada se compreender — ante tudo isto ó que escrevo no caixa auxiliar e o que escrevo neste papel da alma são coisas igualmente restritas à Rua dos Douradores, muito pouco aos grandes espaços milionários do universo. Tudo isto é sonho e fantasmagoria, e pouco vale que o sonho seja lançamentos como prosa de bom porte. Que serve sonhar com princesas mais que sonhar com a porta da entrada do escritório? Tudo o que sabemos é uma impressão nossa, e tudo o que somos e uma impressão alheia, melodrama de nós, que, sentindo-nos, nos constituímos nossos próprios espectadores activos, nossos deuses por licença da Câmara.
Perder tempo comporta uma estética. Há para os subtis nas sensações, um formulário da inércia que inclui receitas para todas as formas de lucidez. A estratégia com que se luta com a noção das conveniências sociais, com os impulsos dos instintos, com as solicitações do sentimento exige um estudo que qualquer mero esteta não suporta fazer. A uma acurada etiologia dos escrúpulos deve seguir-se uma diagnose irónica das subserviências à normalidade. Há a cultivar, também, a agilidade contra as intrusões da vida; um cuidado (...) deve couraçar-nos contra sentir as opiniões alheias, e uma mole indiferença encamar-nos a alma contra os golpes surdos da coexistência com os outros.
O jogo do xadrez
Prende a alma toda, mas, perdido, pouco
Pesa, pois não é nada.
Ah! sob as sombras que sem querer nos amam,
Com um púcaro de vinho
Ao lado, e atentos só à inútil faina
Do jogo do xadrez,
Mesmo que o jogo seja apenas sonho
E não haja parceiro,
Imitemos os persas desta história,
E, enquanto lá por fora,
Ou perto ou longe, a guerra e a pátria e a vida
Chamam por nós, deixemos
Que em vão nos chamem, cada um de nós
Sob as sombras amigas
Sonhando, ele os parceiros, e o xadrez
A sua indiferença.
Quanto mais contemplo o espectáculo do mundo, e o fluxo e refluxo da mutação das coisas, mais profundamente me compenetro da ficção ingénita de tudo, do prestígio falso da pompa de todas as realidades. E nesta contemplação, que a todos, que reflectem, uma ou outra vez terá sucedido, a marcha multicolor dos costumes e das modas, o caminho complexo dos progressos e das civilizações, a confusão grandiosa dos impérios e das culturas — tudo isso me aparece como um mito e uma ficção, sonhado entre sombras e esquecimentos. Mas não sei se a definição suprema de todos esses propósitos mortos, até quando conseguidos, deva estar na abdicação extática do Buda, que, ao compreender a vacuidade das coisas, se ergueu do seu êxtase dizendo «Já sei tudo», ou na indiferença demasiado experiente do imperador Severo: «omnia fui, nihil expedit — fui tudo, nada vale a pena».
Rezo a ti o meu amor porque o meu amor é já uma oração; mas nem te concebo como amada nem te ergo ante mim como santa. Que os teus actos sejam a estátua da renúncia, os teus gestos o pedestal da indiferença, as tuas palavras os vitrais da negação.
Renúncias...
Quando se renuncia completamente a uma coisa e por muito tempo, se porventura a voltamos a encontrar, quase acreditamos que a descobrimos; e qual não é a felicidade do homem que descobre! Sejamos mais sábios do que a serpente que fica tempo demais deitada ao mesmo sol.
Procede deste modo, caro Lucílio: reclama o direito de dispores de ti:uma parte do tempo é-nos tomada, outra parte vai-se sem darmos por isso, outra deixamo-la escapar. Mas o pior de tudo é o tempo desperdiçado por negligência. Se bem reparares, durante grande parte da vida agimos mal, durante a maior parte não agimos nada, durante toda a vida agimos inutilmente.
Uma tristeza de crepúsculo, feita de cansaços e de renúncias falsas, um tédio de sentir qualquer coisa, uma dor como de um soluço parado ou de uma verdade obtida. Desenrola-se-me na alma desatenta esta paisagem de abdicações - áleas de gestos abandonados, canteiros altos de sonhos nem sequer bem sonhados, inconsequências, como muros de buxo dividindo caminhos vazios, suposições, como velhos tanques sem repuxo vivo, tudo se emaranha e se visualiza pobre no desalinho triste das minhas sensações confusas.
Sabendo como as coisas mais pequenas têm com facilidade a arte de me torturar, de propósito me esquivo ao toque das coisas mais pequenas. Quem, como eu, sofre porque uma nuvem passa diante do sol, como não há-de sofrer no escuro do dia sempre encoberto da sua vida? O meu isolamento não é uma busca de felicidade, que não tenho alma para conseguir; nem de tranquilidade, que ninguém obtém senão quando nunca a perder, mas de sono, de apagamento, de renúncia pequena.
As quatro paredes do meu quarto pobre são-me, ao mesmo tempo, cela e distância, cama e caixão. As minhas horas mais felizes são aquelas em que não penso nada, não quero nada, não sonho sequer, perdido num torpor de vegetal errado, de mero musgo que crescesse na superfície da vida. Gozo sem amargor a consciência absurda de não ser nada ante o sabor da morte e do apagamento.
A oportunidade é como o dinheiro, que, aliás, não é mais que uma oportunidade. Para quem age, a oportunidade é um episódio da vontade, e a vontade não me interessa. Para quem, como eu, não age, a oportunidade é o canto da falta de sereias. Tem que ser desprezado com volúpia, arrumado alto para nenhum uso. Ter ocasião de... Nesse campo se disporá a estátua da renúncia.
Ó largos campos ao sol, o espectador, por quem só sois vivos, contempla-vos da sombra. O álcool das grandes palavras e das largas frases que como ondas erguem a respiração do seu ritmo e se desfazem sorrindo, na ironia das cobras da espuma, na magnificência triste das penumbras.
Não será melhor
Renunciar, como um rebentar de bexigas populares
Na atmosfera das feiras,
A tudo
Sim, a tudo,
Absolutamente a tudo?
A renúncia é a libertação. Não querer é poder.
Que me pode dar a China que a minha alma me não tenha já dado? E, se a minha alma mo não pode dar, como mo dará a China, se é com a minha alma que verei a China, se a vir? Poderei ir buscar riqueza ao Oriente, mas não riqueza de alma, porque a riqueza de minha alma sou eu, e eu estou onde estou, sem Oriente ou com ele.(...) Transeuntes eternos por nós mesmos, não há paisagem senão o que somos. Nada possuímos, porque nem a nós possuímos. Nada temos porque nada somos. Que mãos estenderei para que universo? O universo não é meu: sou eu.
As três renúncias de Sakyamuni:
a) a renúncia à vida terrena, à vida das emoções, a renúncia à vida da personalidade.
b) a renúncia à vida nirvânica, a recusa a vestir a veste de Nirmanakaya.
c) a renúncia à vida impessoal, à vida pura e grande, para se tornar humano e interior às cousas do mundo, esgotando através de si todo o mal que no mundo existe.
Ouve o grande silêncio destas horas!
Há quanto tempo não dizemos nada…
Tens no sorriso uma expressão magoada,
tens lágrimas nos olhos, e não choras!
Palavras
Tudo as palavras dizem
A verdade, a mentira, a crueldade…
Mas afinal, o que perturba e espanta
É o drama das que nunca foram ditas
Das palavras pequenas e infinitas
Que morrem sufocadas na garganta!
Fui nova, mas fui triste; só eu sei
como passou por mim a mocidade!
Cantar era o dever da minha idade…
Devia ter cantado, e não cantei!
Fui bela. Fui amada. E desprezei…
Não quis beber o filtro da ansiedade.
Amar era o destino, a claridade…
Devia ter amado, e não amei!
Cedo ou tarde, a todo o homem chega a grande renúncia. Para o jovem não existe nada inalcançável. Que algo bom e desejado com toda a força de uma vontade apaixonada seja impossível, não lhe parece crível. Mas, ou por meio da morte ou da doença, da pobreza ou da voz do dever, cada um de nós é forçado a aprender que o mundo não foi feito para nós e que, não importa quão belas as coisas que almejamos, o destino pode, não obstante, proibi-las. É parte da coragem, quando a adversidade vem, suportá-la sem lamentar a derrocada das nossas esperanças, afastando os nossos pensamentos de vãos arrependimentos. Esse grau de submissão (...) não é somente justo e correcto: ele é o portal da sabedoria.
Amolecimemto, isolamento e alheamento...
"volúpia indeterminada da falência"; "esse Outro que me domina é Eu-próprio";" Estagno incorpóreo";" o desejo de indiferença / E a confiança mole / Na hora fugitiva"; amolecimento progressivo......
Reconheço hoje que falhei, só pasmo, às vezes, de não ter previsto que falharia. Que havia em mim que prognosticasse um triunfo? Eu não tinha a força cega dos vencedores ou a visão certa [?] dos loucos... Era lúcido e triste como um dia frio. Tenho elementos espirituais de boémio, desses que deixam a vida ir como uma coisa que se escapa das mãos e a tal hora em que o gesto de a obter dorme na mera ideia de fazê-lo. Mas não tive a compensação exterior do espírito boémio — o descuidado fácil das emoções imediatas e abandonadas. Nunca fui mais que um boémio isolado, o que é um absurdo; ou um boémio místico, o que é uma coisa impossível.
Certas horas-intervalos que tenho vivido, horas perante a natureza, esculpidas na ternura do isolamento, ficar-me-ão para sempre como medalhas. Nesses momentos esqueci todos os meus propósitos de vida, todas as minhas direcções desejadas. Gozei não ser nada com uma plenitude de bonança espiritual, caindo no regaço azul das minhas aspirações. Não gozei nunca, talvez, uma hora indelével, isenta de um fundo espiritual de falência e de desânimo. Em todas as minhas horas libertas uma dor dormia, floria vagamente, por detrás dos muros da minha consciência, em outros quintais, mas o aroma e a própria cor dessas flores tristes atravessavam intuitivamente os muros, e o lado de lá deles, onde floriam as rosas, nunca deixaram de ser, no mistério confuso do meu ser, um lado de cá — esbatido na minha sonolência de viver. Foi num mar interior que o rio da minha vida findou. À roda do meu solar sonhado todas as árvores estavam no outono. Esta paisagem circular é a coroa-de-espinhos da minha alma. Os momentos mais felizes da minha vida foram sonhos, e sonhos de tristeza, e eu via-me nos lagos deles como um Narciso cego que gozou a frescura próximo da água, sentindo-se debruçado nela, por uma visão anterior e nocturna, segredada às emoções abstractas, vivida nos recantos da imaginação com um cuidado materno em preferir-se.
Sei que falhei. Gozo a volúpia indeterminada da falência como quem dá um apreço exausto a uma febre que o enclausura.
A tragédia leva-nos a uma contradição mais profunda, mais interior: esse Outro que me domina é Eu-próprio(...) o destino é liberdade e a liberdade é destino.
Dormi, sonhei. No informe labirinto
Que há entre o mundo e o nada me perdi.
Em bosques de mim mesmo me embebi,
Misto indeciso do que vejo e sinto.
Estagno incorpóreo. No infiel recinto
Leio o transtorno do que nunca li,
E o labirinto nunca está em si,
Nem há mundo no incerto e abstracto plinto...
E o resto, as outras coisas que os humanos / Acrescentam à vida, / Que me aumentam na alma? / Nada, salvo o desejo de indiferença / E a confiança mole / Na hora fugitiva.
Súbita e inexplicavelmente, ao reler conversas antigas, penetrou -me uma sensação completamente estranha, diferente de tudo o que até então sentira. Demorei um pouco a encontrar designação para essa peculiar experiência , quando surgiu, vindo de dentro de mim, um nome: amolecimento. Fiquei perturbada por o termo não constar do glossário pessoano... Sozinha sinto-me incapaz de glosar o tema. Por outro lado, invade-me uma ténue alegria por ter criado uma designação original para o meu estado de alma: amolecimento. A sucessão de sílabas, a-mo-le-ci-men-to, ecoa dentro de mim, ganha corpo, materializa-se não só como mero significante...A palavra não me existe, interiormente, como verbo, nem como adjetivo: é só o devir passivo que o nome implica : amolecimento . Soa-me bem: "um amolecimento progressivo invadiu-me e ..."

À leve embriaguez da febre ligeira, quando um desconforto mole e penetrante e frio pelos ossos doridos fora e quente nos olhos sob têmporas que batem — a esse desconforto quero como um escravo a um tirano amado. Dá-me aquela quebrada passividade trémula em que entrevejo visões, viro esquinas de ideias e entre entrepolamentos de sentimentos me desconcerto. Pensar, sentir, querer, tornam-se uma só confusa coisa. As crenças, as sensações, as coisas imaginadas e as actuais estão desarrumadas, são como o conteúdo misturado no chão, de várias gavetas subvertidas...
Durante muito tempo senti-me só. Ou melhor isolado...O meu isolamento parecia-me injusto e doloroso, semelhante ao dos surdos e dos estrangeiros. Sentia-me exilado na minha época. Parecia-me que ninguém da minha geração partilhava as minhas cóleras ou os meus desejos. As palavras de que eu tanto gostava fechavam-me os corações que queria conquistar ...
Fecho, cansado, as portas das minhas janelas, excluo o mundo e um momento tenho a liberdade. Amanhã voltarei a ser escravo; porém agora, só, sem necessidade de ninguém, receoso apenas que alguma voz ou presença venha interromper-me, tenho a minha pequena liberdade, os meus momentos de excelsis.Na cadeira, aonde me recosto, esqueço a vida que me oprime. Não me dói senão ter-me doído...
Era a ocasião de estar alegre. Mas pesava-me qualquer coisa, uma ânsia desconhecida, um desejo sem definição, nem até reles. Tardava-me, talvez, a sensação de estar vivo. E, quando me debrucei da janela altíssima, sobre a rua para onde olhei sem vê-la, senti-me de repente um daqueles trapos húmidos de limpar coisas sujas, que se levam para a janela para secar, mas se esquecem, enrodilhados, no parapeito que mancham lentamente.
O isolamento talhou-me à sua imagem e semelhança. A presença de outra pessoa — de uma só pessoa que seja — atrasa-me imediatamente o pensamento, e, ao passo que no homem normal o contacto com outrem é um estímulo para a expressão e para o dito, em mim esse contacto é um contra-estímulo, se é que esta palavra composta é viável perante a linguagem. Sou capaz, a sós comigo, de idear quantos ditos de espírito, respostas rápidas ao que ninguém disse, fulgurações de uma sociabilidade inteligente com pessoa nenhuma; mas tudo isso se me some se estou perante um outrem físico, perco a inteligência, deixo de poder dizer(...) Só os meus amigos espectrais e imaginados, só as minhas conversas decorrentes em sonho, têm uma verdadeira realidade e um justo relevo, e neles o espírito é presente como uma imagem num espelho.
Pesa-me, aliás, toda a ideia de ser forçado a um contacto com outrem. Um simples convite para jantar com um amigo me produz uma angústia difícil de definir. A ideia de uma obrigação social qualquer — ir a um enterro, tratar junto de alguém de uma coisa do escritório, ir esperar à estação uma pessoa qualquer, conhecida ou desconhecida —, só essa ideia me estorva os pensamentos de um dia, e às vezes é desde a mesma véspera que me preocupo, e durmo mal, e o caso real, quando se dá, é absolutamente insignificante, não justifica nada; e o caso repete-se e eu não aprendo nunca a aprender.
Como um vento na floresta,
Minha emoção não tem fim.
Nada sou, nada me resta.
Não sei quem sou para mim.
E como entre os arvoredos
Há grandes sons de folhagem,
Também agito segredos
No fundo da minha imagem...
Eu não te quereria para nada senão para te não ter. Queria que, sonhando eu e se tu aparecesses, eu pudesse imaginar-me ainda sonhando — nem te vendo talvez, mas talvez reparando que o luar enchera de (...) os lagos mortos e que ecos de canções ondeavam subitamente na grande floresta inexplícita, perdida em épocas impensáveis. A visão de ti seria o leito onde a minha alma adormecesse, criança doente, para sonhar outra vez com outro céu. Falares? Sim mas que ouvir-te fosse não te ouvir mas ver grandes pontes ao luar ligando as duas margens escuras do rio que vai ter ao mar — ao mar onde as caravelas são novas para sempre.
SEI QUE DESPERTEI e que ainda durmo. O meu corpo antigo, moído de eu viver, diz-me que é muito cedo ainda... Sinto-me febril de longe. Peso-me não sei por quê...Num torpor lúcido, pesadamente incorpóreo, entre o sono e a vigília, num sonho que é uma sombra de sonhar. Minha atenção bóia entre dois mundos e vê cegamente a profundeza de um mar e a profundeza de um céu; e estas profundezas interpenetram-me, misturam-se, e eu não sei onde estou nem o que sonho. ...Sou todo confusão quieta... Para que há de um dia raiar?... E quem é esta mulher que comigo veste de observada essa floresta alheia? Para que é que tenho um momento de mo perguntar?... Nosso quarto? Nosso de que dois, se eu estou sozinho?...
No nosso jardim havia flores de todas as belezas... Ó felicidade baça... O eterno estar no bifurcar dos caminhos!... E talvez eu não seja senão um sonho desse Alguém que não existe... Na clepsidra da nossa imperfeição gotas regulares de sonho marcavam horas irreais... Nada vale a pena, ó meu amor longínquo, senão o saber com é suave saber que nada vale a pena...
E eu ofereço-te este livro porque sei que ele é belo e inútil. Nada ensina, nada faz crer, nada faz sentir. Regato que corre para um abismo-cinza que o vento espalha e nem fecunda nem é daninho (...) pus toda a alma ao fazê-lo, mas não pensei nele fazendo-o, mas só em mim que sou triste e em ti que não és ninguém. E porque este livro é absurdo, eu o amo; porque é inútil, eu o quero dar; e porque de nada serve querer to dar, eu, to dou...Torre do Silêncio das minhas ânsias, que este livro seja o luar que te fez outra na noite do Mistério Antigo! Rio de Imperfeição dolorida, que este livro seja o barco deixado ir por tuas águas abaixo para acabar mar que se sonhe. Paisagem do Alheamento e do Abandono, que este livro seja teu como a tua Hora e se ilimite de ti como da Hora da púrpura falsa.
Ah! Ser indiferente! Ser alheio até a si mesmo! Ser esquecido de que se existe! (Não ouvi o que dizias... ouvi só a musica, e nem a essa ouvi... Tocavas e falavas ao mesmo tempo? Sim, creio que tocavas e falavas ao mesmo tempo...Com quem? Com alguém em quem tudo acabava no dormir do mundo..
Porque não acrediteis que eu escrevo para publicar, nem para escrever nem para fazer arte, mesmo. Escrevo, porque esse é o fim, o requinte supremo, o requinte temperamentalmente ilógico (...), da minha cultura de estados de alma. Se pego numa sensação minha e a desfio até poder com ela tecer-lhe a realidade interior a que eu chamo ou a A Floresta do Alheamento, ou a Viagem Nunca Feita, acreditai que o faço não para que a prosa soe lúcida e trémula, ou mesmo para que eu goze com a prosa — ainda que mais isso quero, mais esse requinte final ajunto, como um cair belo de pano sobre os meus cenários sonhados — mas para que dê completa exterioridade ao que é interior, para que assim realize o irrealizável, conjugue e contraditório e, tornando o sonho exterior, lhe dê o seu máximo poder de puro sonho, estagnador de vida que sou, burilador de inexactidões, pajem doente da minha alma Rainha, lendo-lhe ao crepúsculo não os poemas que estão no livro, aberto sobre os meus joelhos, da minha Vida, mas os poemas que vou construindo e fingindo que leio, e ele fingindo que ouve, enquanto a Tarde, lá fora não sei como ou onde, dulcifica sobre esta metáfora erguida dentro de mim em Realidade Absoluta a luz ténue e última dum misterioso dia espiritual.
A vida prejudica a expressão da vida. Se eu vivesse um grande amor nunca o poderia contar.
Eu próprio não sei se este eu, que vos exponho, por estas coleantes páginas fora, realmente existe ou é apenas um conceito estético e falso que fiz de mim próprio. Sim, é assim. Vivo-me esteticamente em outro. Esculpi a minha vida como a uma estátua de matéria alheia a meu ser. Às vezes não me reconheço, tão exterior me pus a mim, e tão de modo puramente artístico empreguei a minha consciência de mim próprio. Quem sou por detrás desta irrealidade? Não sei. Devo ser alguém. E se não busco viver, agir, sentir é — crede-me bem — para não perturbar as linhas feitas da minha personalidade suposta. Quero ser tal qual quis ser e não sou. Se eu cedesse destruir-me-ia. Quero ser uma obra de arte, da alma pelo menos, já que do corpo não posso ser. Por isso me esculpi em calma e alheamento e me pus em estufa, longe dos ares frescos e das luzes francas — onde a minha artificialidade, flor absurda, floresça em afastada beleza.
Penso às vezes no belo que seria poder, unificando os meus sonhos, criar-me uma vida contínua, sucedendo-se, dentro do decorrer de dias inteiros, com convivas imaginários com gente criada, e ir vivendo, sofrendo, gozando essa vida falsa. Ali me aconteceriam desgraças; grandes alegrias ali cairiam sobre mim. E nada de mim seria real. Mas teria tudo uma lógica soberba, séria, seria tudo segundo um ritmo de voluptuosa falsidade, passando tudo numa cidade feita da minha alma, perdida até [o] cais à beira de um comboio calmo, muito longe dentro de mim, muito longe... E tudo nítido, inevitável, como na vida exterior, mas, estética de Morte do Sol.
Ah! Ser indiferente!
É do alto do poder da sua indiferença
Que os chefes dos chefes dominam o mundo.
Ser alheio até a si mesmo!
É do alto do sentir desse alheamento
Que os mestres dos santos dominam o mundo.
Ser esquecido de que se existe!
É do alto do pensar desse esquecer
Que os deuses dos deuses dominam o mundo.
Trump, o rei dos tempos modernos
Não é um democrata, não é um liberal, não é um conservador, nem um fascista, nem um nacionalista, é um demagogo revolucionário, egocêntrico e autoritário, que só ouve a voz do seu próprio sucesso.
Imaginem uma mistura de um comentador anónimo cheio de fúria com todos que não são ele próprio com um troll da Internet e alguém que vive entre “gostos” e conflitos nas redes sociais, um participante num reality show, um espectador obsessivo de televisão do crime, do sangue, dos escândalos, dobrado de um dos banqueiros que nos fez chegar à crise de 2008, um dos empresários que faz parte da lista das imparidades da Caixa, do BES, de tudo quanto é banco e continua a viver como se nada fosse, um menino mimado, um bully que se sente impune para ameaçar quem quiser e tem alguns meios para ser temido nessas ameaças. Ao fazer isto tudo, ou algumas destas coisas, ao ter alguns destes vícios e obsessões, fica-se a pensar e a actuar de uma determinada maneira? Claro que fica. E não é boa.
Pois deitem salvas e foguetes, uma personagem destas chegou a Presidente dos EUA. É um populista e um demagogo clássico? Também é, mas é mais moderno do que clássico, mais novo do que antigo. Esqueçam a senhora Le Pen (não, não esqueçam), um produto reciclado da extrema-direita francesa, uma das que têm maior história na Europa, porque Trump é outra coisa, com outra história, outros know-how, outros riscos enormes para a democracia e a paz do mundo. Trump é um populista e um demagogo, mas também é um revolucionário, quer realmente mudar as coisas, nem que para isso tenha de levar tudo à frente. Para onde as quer levar sabemos pelos slogans e as intenções, mas eu aconselhava toda a gente a tomá-los à letra, mesmo quando contraditórios. Quer fazer da América “grande”; quer “dar voz” aos danados da terra do rust belt; quer dar aos empresários tudo o que precisam para deixarem de se preocupar com impostos, com a regulação, com tudo o que lhes dificulte ganhar mais dinheiro e fazer mais fábricas, mais empresas, mais automóveis, mais pontes e estradas; quer expulsar os “outros”, milhões de estrangeiros ilegais, que diz estarem nos EUA, quer-se dar bem com Putin, que acha que é como ele, esperto, audaz, sem regras, e não está disposto a ter de pagar a defesa dos europeus, nem dos japoneses, nem dos coreanos, nem de ninguém que não seja americano.
Mais do que querer controlar como nós pensamos, quer forçar-nos a pensar como ele pensa. Se não vão a bem, vão a mal. No seu mundo, a sua opinião sobre as coisas é equivalente à verdade, uma atitude muito comum nas redes sociais e usa todos os meios para que, se não conseguir que só a sua “opinião-verdade” circule, pelo menos que circule com o mesmo estatuto dos factos. Há vários exemplos típicos de como se perde qualquer conteúdo neste tido de comunicação. Comunica-se apenas a força, mais nada. Depois de ter feito declarações ofensivas para as mulheres várias vezes, quando confrontado, repete à saciedade que “ninguém mais do que [ele] respeita as mulheres”. Repare-se: “ninguém mais…” Fez o mesmo com os serviços de inteligência. Depois de lhes ter chamado “nazis”, foi à CIA dizer que “ninguém mais do que [ele] preza os serviços de informação”- Repare-se, de novo: “ninguém mais…” Tudo se torna opinião – insisto, como nas redes sociais – e num mundo em que a opinião, a impressão, o “achar” substituem os factos pela força do número e a amplitude do vozear. A racionalidade é expulsa. Domina apenas o pathos.
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