Não é neccessário vivermos ao lado de alguém para nos sentirmos ligados a esse alguém mais do que a qualquer outra pessoa...

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

Tremuras e pedaços de ternura...

Ai a terra tremeu... Ui que susto... Oh que medo ... Ah não sentiram? Hoje a outra gente gastou e desgastou interjeições, manifestando as emoções mais profundas por causa de uma tremura. Claro que nem me atrevi a dizer que não senti rigorosamente nada. Só a ridícula onda de ternura solidária entre todos os que sentiram me fez estremecer. Que faço eu aqui?

Ai o dia da amizade... Ui que bom é ter amigos... Oh que emoção... Ah que ternura. É tanta a ternura que faz olvidar a tremura e a vida retoma a candura...Que faço eu aqui?

Ai...Ui...Oh...Ah- Ser arrastado por uma onda, num culto a Iemanjá, é um milagre similar a morrer ,atropelado por um padre , numa peregrinação para fátima...Que faço eu aqui?

HELICON- Pareces fatigado.
CALÍGULA- Andei muito.
HELICON- Sim, a tua ausência foi longa. (Silêncio.)
CALÍGULA- Era difícil de encontrar.
HELICON- O quê?
CALÍGULA- O que queria.
HELICON- E que querias tu?
CALÍGULA- A Lua.
HELICON- O quê?
CALÍGULA- Sim, eu queria a Lua.
HELICON- Ah! (Silêncio. Helicon aproxima-se.)
CALÍGULA- Bem!... É uma das coisas que não tenho.
HELICON- Claro. E agora, está tudo em ordem?
CALÍGULA- Não, não a posso ter.
HELICON- É aborrecido.
CALÍGULA- Sim, é por isso que estou cansado. (Pausa) Helicon!
HELICON- Diz, Caius.
CALÍGULA- Pensas que estou doido.
HELICON- Bem sabes que nunca penso. Sou demasiado inteligente para isso.
CALÍGULA- Já sei. Enfim! Não estou doido, parece-me mesmo que nunca fui tão razoável. Simplesmente, senti de repente necessidade do impossível. (Pausa) As coisas, tal como são, não me parecem satisfatórias.
HELICON- É a opinião geral.
CALÍGULA- É a verdade. Até há pouco tempo, eu não a sabia. Agora, sei. (Sempre natural.) Este mundo, tal como está feito, não é suportável. Tenho, portanto, necessidade da Lua, ou da felicidade, ou da imortalidade, de qualquer coisa de demente, talvez, mas que não seja deste mundo.
HELICON- É uma razão de peso. Mas, geralmente, não podemos conservá-la até ao fim.
CALÍGULA, levantando-se com a mesma simplicidade - Que sabes tu disso? É porque nunca a conservamos até ao fim, que nada se alcança. Mas é possível que talvez baste continuarmos lógicos até ao fim. (Olha Helicon.) Li o que estás a pensar. Quantas histórias por causa da morte de uma mulher! Não, não é isso. Suponho recordar-me, é verdade, de ter morrido há alguns dias uma mulher que amava. Mas, o que é o amor? Pouca coisa. Juro-te que esta morte não quer dizer nada, apenas significa uma verdade que torna a Lua necessária. Uma verdade muito simples e muito clara, talvez um pouco estúpida, mas difícil de descobrir e pesada de suportar.
HELICON- E qual é, então, essa verdade, Caius?
CALÍGULA, lasso, num tom lento- Os homens morrem e não são felizes.
HELICON- Ora, Caius, toda a gente passa bem sem essa verdade. Olha à tua volta. Não é ela que nos impede de almoçar.
CALÍGULA, subitamente, numa explosão - Então, é porque tudo à minha volta é mentira, e eu, eu quero que se viva na verdade! E, justamente, tenho meios para os obrigar a viverem na verdade. Porque eu sei o que lhes falta, Helicon. Eles estão privados do conhecimento, porque lhes falta um professor que conheça aquilo que ensina
.

A protagonista, Erika K., ou simplesmente K, é um tributo quase explícito a Josef K., de O Processo. Aliás, é impossível ler Jelinek sem pensar em kafka: eu acho que nem a cheguei a ler , sempre à procura dele, obcecada pela hipótese de plágio.

Todos os dias, um pedaço de música, uma estória curta ou um poema morrem porque a sua existência já não se justifica no nosso tempo. E as coisas que num tempo foram consideradas imortais tornaram-se mortais outra vez, já ninguém as conhece. Mesmo que estas mereçam sobreviver.

A própria vida desejada pela filha deve desembocar no auge da mais completa obediência concebível, até que se abra uma viela minúscula e estreita, uma viela onde mal se consegue passar, através da qual ela será conduzida. Um guarda indica-lhe o caminho. Paredes lisas, altas, cuidadosamente polidas, à direita e à esquerda, sem ramificações laterais nem corredores, sem nichos nem cavidades, apenas um único caminho estreito, por meio do qual ela terá que alcançar a outra extremidade. Em algum lugar, ela ainda não sabe onde, aguarda-a uma paisagem de inverno, que se estende ao longe, uma paisagem onde não há nenhum castelo para a salvar, e para o qual nenhum caminho conduz. Ou talvez não haja à sua espera nada além de um quarto sem porta, um gabinete mobiliado com uma cómoda antiquada, com um jarro e uma toalha de mão, e os passos do dono do apartamento aproximam -se cada vez mais, mas ele não chega nunca, pois não há porta. Nesta vastidão infinita, ou nesta estreiteza exígua e sem portão, o animal sente-se amedrontado, perante um outro animal ainda maior...

No seu íntimo, ela sente um desejo intenso de obedecer(...) mas, nas suas aulas, destrói, uma a uma, as vontades individuais dos seus alunos.



Registe-se, como curiosidade, que o termo “masoquismo” surge no Império Habsburgo, tendo origem no nome do escritor Leopold von Sacher-Masoch (1836-1895)

Ternura lusitana...
O costume de definir o português como essencialmente lírico, ou essencialmente amoroso — absurdo, porque não há povo quase nenhum que não seja estas duas coisas. Ao mesmo tempo vê-se que, ainda que a expressão falhe, há qualquer coisa de verdade, que não chega a descobrir-se, nestas frases. O que é que há de quase-indefinivelmente português, de portuguesmente comum excepto a língua, a Bernardim Ribeiro, Camões, Garrett, Antero de Quental, António Nobre, Junqueiro, Correia de Oliveira, Pascoaes, Mário Beirão ?
Em primeiro lugar, é uma ternura. Mas o que é essa ternura? Ternura vaga (...) em Bernardim Ribeiro, ternura que rompe a casca de estrangeirismo de Camões, no seu auge ternura heróica, ternura metafísica em Antero [...] ternura por si-próprio e pela sua terra — esquiva [...], espontânea e com o lado “tristeza” acentuado, ternura pela paisagem em Fialho, ternura que chega a assomar às janelas da alma de Eça de Queirós. Chamar ao sol “solzinho de Deus” é um fenómeno especial de ternura.


Possessivos
Num mundo desafetivo e indiferente, as redes sociais são , inexplicavelmente, invadidas por carinhosos determinantes possessivos, pedaços de ternura, mormente na primeira pessoa do plural . Perante a assustadora ausência de valores e de projetos pessoais, a outra gente manifesta gaúdio e orgulho intenso em proferir: o nosso mosteiro, o nosso benfica, o nosso este, o nosso aquele ... tudo é apropriável, tudo que se afigure com algum relevo e significância é " nosso"...Irritam-me os modismos epidémicos que se propagam : "beijos grandes"; os lolos/ loles; o ternurento " nosso"... É fartar vilanagem.

Jamais houve alma mais amante ou terna do que a minha, alma mais repleta de bondade, de compaixão, de tudo o que é ternura e amor. Contudo, nenhuma alma há tão solitária como a minha — solitária, note-se, não mercê de circunstâncias exteriores, mas sim de circunstâncias interiores. O que quero dizer é: a par da minha grande ternura e bondade, entrou no meu carácter um elemento da natureza inteiramente oposto, um elemento de tristeza, egocentrismo, portanto de egoísmo, produzindo um efeito duplo: deformar e prejudicar o desenvolvimento e a plena acção interna daquelas outras qualidades, e prejudicar, deprimindo a vontade, a sua plena acção externa, a sua manifestação. Hei-de analisar isto; um dia hei-de examinar melhor, destrinçar, os elementos que constituem o meu carácter, pois a minha curiosidade acerca de tudo, aliada à minha curiosidade por mim próprio e pelo meu carácter, conduz a uma tentativa para compreender a minha personalidade.


Terrível Bebé:
Gosto das suas cartas, que são meiguinhas, e também gosto de si, que é meiguinha também. E é bombom, e é vespa, e é mel, que é das abelhas e não das vespas, e tudo está certo,(...) e eu estou triste, e sou maluco, e ninguém gosta de mim, e também porque é que havia de gostar, e isso mesmo, e torna tudo ao princípio, e parece-me que ainda lhe telefono hoje, e gostava de lhe dar um beijo na boca, com exactidão e gulodice e comer-lhe a boca e comer os beijinhos que tivesse lá escondidos e encostar-me ao seu ombro e escorregar para a ternura dos pombinhos, e pedir-lhe desculpa, e a desculpa ser a fingir, e tornar muitas vezes, e ponto final até recomeçar, e porque é que a Ophelinha gosta de um meliante, e enfim, e vou acabar porque estou doido, e estive sempre, e é de nascença, que é como quem diz desde que nasci, e eu gostava que a Bebé fosse uma boneca minha, e eu fazia como uma criança, despia-a, e o papel acaba aqui mesmo, e isto parece impossível ser escrito por um ente humano, mas é escrito por mim,Fernando


Ophelinha:
Agradeço a sua carta. Ela trouxe-me pena e alívio ao mesmo tempo. Pena, porque estas coisas fazem sempre pena; alívio, porque, na verdade, a única solução é essa — o não prolongarmos mais uma situação que não tem já a justificação do amor, nem de uma parte nem de outra. Da minha, ao menos, fica uma estima profunda, uma amizade inalterável. Não me nega a Ophelinha outro tanto, não é verdade?
Nem a Ophelinha, nem eu, temos culpa nisto. Só o Destino terá culpa, se o Destino fosse gente, a quem culpas se atribuíssem. O Tempo, que envelhece as faces e os cabelos, envelhece também, mas mais depressa ainda, as afeições violentas. A maioria da gente, porque é estúpida, consegue não dar por isso, e julga que ainda ama porque contraiu o hábito de se sentir a amar. Se assim não fosse, não havia gente feliz no mundo. As criaturas superiores, porém, são privadas da possibilidade dessa ilusão, porque nem podem crer que o amor dure, nem, quando o sentem acabado, se enganam tomando por ele a estima, ou a gratidão, que ele deixou.
Estas coisas fazem sofrer, mas o sofrimento passa. Se a vida, que é tudo, passa por fim, como não hão-de passar o amor e a dor, e todas as mais coisas, que não são mais que partes da vida?(...)
Quanto a mim...O amor passou. Mas conservo-lhe uma afeição inalterável, e não esquecerei nunca — nunca, creia — nem a sua figurinha engraçada e os seus modos de pequenina, nem a sua ternura, a sua dedicação, a sua índole amorável. Pode ser que me engane, e que estas qualidades, que lhe atribuo, fossem uma ilusão minha; mas nem creio que fossem, nem, a terem sido, seria desprimor para mim que lhas atribuísse.
Não sei o que quer que lhe devolva — cartas ou que mais. Eu preferia não lhe devolver nada, e conservar as suas cartinhas como memória viva de um passado morto, como todos os passados; como alguma coisa de comovedor numa vida, como a minha, em que o progresso nos anos é par do progresso na infelicidade e na desilusão.
Peço que não faça como a gente vulgar, que é sempre reles; que não me volte a cara quando passe por si, nem tenha de mim uma recordação em que entre o rancor. Fiquemos, um perante o outro, como dois conhecidos desde a infância, que se amaram um pouco quando meninos, e, embora na vida adulta sigam outras afeições e outros caminhos, conservam sempre, num escaninho da alma, a memória profunda do seu amor antigo e inútil.
Que isto de «outras afeições» e de «outros caminhos» é consigo, Ophelinha, e não comigo. O meu destino pertence a outra Lei, de cuja existência a Ophelinha nem sabe, e está subordinado cada vez mais à obediência a Mestres que não permitem nem perdoam.
Não é necessário que compreenda isto. Basta que me conserve com carinho na sua lembrança, como eu, inalteravelmente, a conservarei na minha.
Fernando

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