Não é neccessário vivermos ao lado de alguém para nos sentirmos ligados a esse alguém mais do que a qualquer outra pessoa...

segunda-feira, 28 de agosto de 2017

Mal(es)...

A mulher literata, insatisfeita, inquieta, vazia de coração e de entranhas, que em todos os momentos escuta, com uma dolorosa curiosidade, o imperativo, que desde as profundezas de seu ser, lhe sussurra "aut liberi aut libri": a mulher literata, suficientemente culta para compreender a voz da natureza, mesmo quando esta fala em latim, e, por outro lado, bastante vaidosa e estúpida para, em segredo, dizer também para si própria em francês: " je me verrai, je me lirai, et je m'extasierai et je dirai: Possible, que j'aie tant d ' esprit?" ...

O doente é um parasita da sociedade. Atingindo-se um certo estado é indecoroso continuar a viver. O permanecer vegetando, numa covarde dependência dos médicos e dos medicamentos, depois do sentido da vida, do direito à vida se ter perdido, é algo que deveria acarretar um profundo desprezo por parte da sociedade.

Ninguém tem vontade de falar de amor, se não for para alguém.

Como termina um amor? – O quê? Termina? Em suma ninguém – exceto os outros – nunca sabe disso; uma espécie de inocência mascara o fim dessa coisa concebida, afirmada, vivida como se fosse eterna. O que quer que se torne objeto amado, quer ele desapareça ou passe à região da Amizade, de qualquer maneira, eu não o vejo dissipar-se: o amor que termina afasta-se para um outro mundo como uma nave espacial que deixa de piscar: o ser amado ressoava como um clamor, de repente ei-lo sem brilho (o outro nunca desaparece quando e como se esperava). Esse fenómeno resulta de uma imposição do discurso amoroso: eu mesmo (sujeito enamorado) não posso construir até o fim de minha história de amor: sou o poeta (o recitante apenas do começo); o final dessa história, assim como a minha própria morte, pertence aos outros; eles que escrevam romance, narrativa exterior, mítica.

Ao longo da vida amorosa, as figuras surgem na cabeça do sujeito apaixonado sem nenhuma ordem,porque dependem cada vez de um acaso (interior ou exterior). A cada um desses incidentes (aquele que lhe “cai” sobre a cabeça), o enamorado retira figuras de reserva (do tesouro?), de acordo com as carências, as injunções ou os prazeres do seu imaginário. Cada figura explode, vibra sozinha como um som despojado de toda melodia – ou se repete, até cansar, como motivo de uma música sempre igual.Nenhuma lógica liga as figuras nem determina a sua contigüidade: as figuras estão fora do sintagma, fora da narrativa, são Erínias; agitam -se, chocam-se, acalmam-se, voltam e afastam-se sem nenhuma ordem como um vôo de mosquitos. O dis-cursus amoroso não é dialético; ele gira como um calendário perpétuo,uma enciclopédia afetiva.

Ajo sempre – teimo em agir, não importa o que me digam nem quais sejam os meus próprios desencorajamentos, como se o amor pudesse um dia fazer -me transbordar, como se o Bem Supremo fosse possível. Daí essa curiosa dialética que permite que o amor absoluto suceda sem embaraço ao amor absoluto, como se, através do amor, eu tivesse acesso a uma outra lógica (o absoluto não sendo obrigatoriamente o único), a um outro tempo (de amor em amor vivo instantes verticais), a uma outra música (esse som sem memória, sem construção, esquecido daquilo que o precede e o segue, esse som é em si mesmo musical). Procuro, começo, tento, vou mais longe, corro, mas nunca sei que acabo: não se diz da Fénix que ela morre, mas apenas que renasce (posso então renascer sem morrer?)

A errância amorosa tem os seus aspetos cómicos: parece uma dança, mais ou menos rápida conforme a velocidade do sujeito infiel; mas é também uma grande ópera (Wagner). O Holandês maldito é condenado a errar sobre o mar até encontrar uma mulher de uma fidelidade eterna. Sou esse Holandês Voador; não posso parar de errar (de amar) por causa de uma antiga marca que me destinou, nos tempos remotos da minha infância profunda, ao deus Imaginário, que me afligiu de uma compulsão de fala que me leva a dizer “Eu amo -te”, de escala em escala, até que qualquer outro escolha essa fala e ma devolva mas ninguém pode assumir a resposta impossível (que completa de uma forma insustentável), e a errância continua.

Foram precisos muitos acasos, muitas coincidências surpreendentes (e talvez muitas procuras), para que eu encontre a Imagem que, entre mil, convém ao meu desejo. Eis um grande enigma do qual nunca terei a solução: porque desejo Esse?…

Na distância imprecisa, meu amor, ignoramos de nós sequer a latitude. Contudo, provavelmente o mesmo sol cobre os nossos corpos ávidos de luz e de acontecer, os mesmo rostos (ou serão outros?) da mesma gente envolvem os nossos passos, os mesmos ruídos, o mesmo bombardear de factos e de ideias, a mesma música flutua nos nossos cabelos, o mesmo vento impele-nos na busca de horizontes claros e do mar, cheiro de algas penetrante, doçura do pôr do sol e das tempestades na barra.(…) Como serás tu que imagino mais do que recordo – a memória traz consigo também o esquecimento, continuando embora memória de gestos repetidos – com quem te encontras, como pensas, que brisas novas suavizarão o teu sangue inquieto.Na distância imprecisa que o tempo traz, recordo vagamente o teu rosto rude e já marcado, a ternura inconsistente e macia da areia deslizando nas nossas mãos.

Tento recordar o teu rosto... Curioso, como às vezes nos escapam os traços da pessoa amada. Situo-te num passado já distante. Não te imagino num presente.De ti resta-me o que foste comigo.

Algures tu és, aqui eu sou.Porque imprecisa, a distância resolve -se na certeza vaga de existirmos num como e num onde. Tanto basta. [pergunta ou afirmação?] Não há passos que nos aproximem no impreciso e no vago. O nosso reencontro está só na certeza vaga de existirmos com outros, sob o mesmo sol. Melhor assim.

De amor não falemos. De que serviria dar nome ao que encerra somente o equívoco? Somos e não somos sós. E depois ser só não é ser só. Não estamos sós. Temo-nos um ao outro na distância e na ausência, que são só acidentes e nada de essencial atingem. Temo-nos no que ficou do fugidio encontro, na ternura renovada que nos inventamos ou recriamos. Ou na lembrança.


Não há mal como o ciúme: Como ciumento sofro quatro vezes: porque sou ciumento, porque me reprovo por sê-lo, porque temo que o meu ciúme ofenda o outro, porque me deixo dominar por uma banalidade: sofro por ser excluído, por ser agressivo, por ser louco e por ser comum.

28 de agosto de 430: Morre Agostinho de Hipona, Santo Agostinho, Doutor da Igreja...
Aurélio Agostinho nasceu em 354 em Tagasta (Argélia) e terá sido o impulsionador da primeira tentativa sistemática para a harmonização da Filosofia e da Teologia, conciliando elementos de origem platónica e neoplatónica com os preceitos da revelação. Por palavras suas, procurou «crer para entender e entender para crer» com o objetivo de integrar num corpo doutrinal coerente as verdades da fé. Filho de Patrício, pagão, e Santa Mónica, fervorosamente cristã, viveu uma juventude dissoluta mas sempre atormentada pela busca da verdade e da felicidade. Depois de ter abraçado e renegado várias doutrinas, deixou-se vencer pelo ceticismo e só tardiamente se converteu à religião cristã.
O núcleo do sistema agostiniano reside exatamente na superação do ceticismo e da dúvida que, num percurso que encontrará paralelo em Descartes, o conduz ao primado da certeza imediata da experiência interior: mesmo quando duvida, o homem tem de admitir que vive, recorda, conhece e quer, de onde lhe advém a certeza que existe, e que, ainda que erre em tudo o resto, pode ter como seguro que até para errar tem de existir. Além disso, só é possível pôr em causa os dados do mundo exterior quando existe algum padrão superior de Verdade. De facto, na razão, o ser humano encontra certas verdades necessárias e universais - os princípios lógicos e matemáticos, assim como as ideias de Uno, de Bem e de Belo -, cuja origem não pode estar na experiência sensível. O mesmo acontece com a generalidade dos conceitos, cujas especificações não podem ser extraídas da simples sensibilidade, pressupondo ideias determinadas apenas acessíveis por via intelectual.

O poeta mexicano Octávio Paz escreveu sobre Fernando Pessoa: «Não há revolta na sua vida. Apenas uma mágoa parecida com desdém.» Esta frase também podia tê-la escrito sobre Paulo José Miranda...

José Saramago atribuiu-lhe o primeiro prémio literário com o seu nome. Herberto Helder disse que ele era «o único jovem romancista português que conseguia ler». De escritor-promessa da geração de 1990 a persona non grata do meio literário português, eis Paulo José Miranda. Um ilustre desconhecido, agora a viver no Brasil.

Tinha 27 anos quando decidiu mudar de vida, 30 quando escreveu o primeiro livro, 34 quando recebeu o Prémio Saramago. Mas nunca saiu da penumbra, embora não tenha passado despercebido num certo meio literário lisboeta que se reunia todas as tarde numa leitaria das Escadinhas do Duque e onde paravam, entre outros, os poetas António Cabrita e Herberto Helder. Nunca deu uma entrevista. Nunca escreveu crónicas em jornais nem apareceu em programas de televisão. Porquê? «Porque nunca me convidaram», responde com alguma indiferença. Quase anónimo, quase celebridade, PJM regressou a Portugal em 2003 depois da rutura com a cineasta Pelin Esmer e com o seu editor de sempre André Jorge (Cotovia). Continuou a escrever compulsivamente. Mas para ele tal como para as personagens que foi criando a morte torna-se, por vezes, um lugar demasiado atraente. Sobre estes tempos sombrios PJM diz apenas: «Por vezes é preciso morrer para ver melhor. Morrer para renascer.» Agora em Curitiba escreve, reescreve, toca, reinventa-se. Por necessidade, por fatalidade. Áurea, a nova companheira, é advogada e ajudou-o a tratar da documentação. «Agora até já tenho o Cartão de Cidadão», diz, rindo.
Numa estranha coincidência, quando a Notícias Magazine preparava esta entrevista, Paulo recebeu a proposta editorial mais prometedora dos últimos anos: Gonçalo Bulhosa, da editora Oficina do Livro, queria editar não só os seus novos romances como reeditar toda a obra anterior. Filhas, que chegou às livrarias no início de julho, é o romance que promete abrir a nova fase da vida de Paulo José Miranda e, quem sabe, colocá-lo definitivamente nas rotas literárias dos portugueses, porque afinal, como ele próprio escreveu um dia, «só sofremos de amor e de uma obra por cumprir». 5 de janeiro de 2013, artigo de Joana Emídio Marques

"Não me parece, com toda a sinceridade, que a minha obra algum dia tenha sido presente. Ganhei dois prémios, sim, o primeiro prémio José Saramago evidentemente foi o mais importante pelo escritor que lhe dá nome, pelo significado e pela atenção mediática que lhe é conferido, mas os meus livros foram e continuam a ser lidos por poucos. Infelizmente ou felizmente, não sei, não sou um autor muito comercial. E isso foi muito bem entendido pelos jornais e revistas, pois, enquanto todos os outros autores vencedores desse prémio foram convidados para escreverem com regularidade aqui e ali, a mim nunca o fizeram. E isso, evidentemente, tem a ver com a compreensão, muito correcta, do que é a minha escrita." - Entrevista, em 24 de junho de 2014

O mal - Um professor de português prepara, em Macau, uma dissertação sobre a vida e obra de Camilo Pessanha , encontrando, à medida que o lê, paralelos consigo próprio e com a sua vida...Aos poucos, por meio das palavras do próprio Pessanha, vamos acompanhando as reflexões e a vivência deste professor/ narrador...

Muitas vezes senti a meio da ponte vontade de me atirar à lama. Sem nenhuma razão, apenas uma vontade de desaparecer numa substância desconhecida, lembrando " A minha alma é lânguida e inerme/ Oh!Quem pudesse deslizar sem ruído!/ No chão sumir-se, como faz um verme...A verdade é que também não tenho para onde ir. Pior, não sei para onde ir. Mais do que uma vontade de morrer, é uma desvontade de viver, como em Pessanha.

Aprendera que qualquer ser humano deve ser possuído ligeiramente alcoolizado, tal como a carne que vai a cozinhar, tem outro sabor. E no momento em que as almas dirigem as energias para a sua completude no gozo, todas as mentiras são verdade... No dia seguinte quando acordou, antes de mim, começou a beijar-me a glande.Era o modo de me agradecer o que se tinha passado horas atrás... Sexo com alguém que nos atrai é somente uma das coisas agradáveis da vida, mas apenas alguns momentos antes de acontecer, o momento durante e alguns momentos depois. ...Só me interessa o sexo porque existe, e quando existe; o amor interessa-me porque, não existindo, exerce uma força que pode ser utilizada por quem saiba da sua inexistência.

Ela considerava o meu cinismo excitante, embora nunca soubesse o que lhe estava a acontecer, até ao dia em que tudo acabou...Mesmo muito depois do divórcio, sempre que os olhos dela se cruzavam com os meus, via o mal infligido gravado no seu rosto. E não há maior prazer para a alma do que assistir a uma vida moribunda pelo mal que lhe infligimos.

Será que poetas como Pessanha e Pessoa não nascem para ter corpo? Ou será que envelhecem cedo demais para ter um? Pois a incondicional entrega ao desperdício dos seus próprios corpos, um através do ópio, o outro através do álcool, revela uma de três coisas: ou a humilhação do corpo ou o seu desprezo ou uma incompreensível inaptidão a ele ( como se eles não fossem corpo.)

Aquilo que, para mim, é particularmente angustiante é não poder saber se me perdi, porque a partir de um determinado momento passei a viver neste mundo distante, ou se me perdi porque não me esforcei o bastante ou somente porque não tenho capacidades suficientes para não ter deixado de me perder.

Maria foi o único ser humano de quem consegui sentir-me verdadeiramente próximo.(...)Compreendi então que o ódio não chega. O ódio é a base, o chão que sustenta qualquer interpretação, não é o método. O método é a mentira. Mentir aproxima-nos dos outros. O ódio é privado, secreto e revela muito claramente que estamos sós. Este solipsismo só será ultrapassado com a mentira.(...) Maria não é a Ana de Castro de Pessanha. De um modo estranho, a Maria é o Pessanha. Também para ela o amor está do outro lado do mundo.(...)No fundo, tornei-me crente com a Maria. Passei a acreditar piamente na mentira como aquilo que une os homens.(...). Da última vez que a vi, Maria já não era uma deusa, mas uma mulher.A idade fizera-a perder o fôlego , a originalidade. Andava a escrever um romance, dizia, e esquecera por completo a mentira. Mais ainda do que perder uma irmã e um doce incesto, o que verdadeiramente me custava era ver aquela mulher , que já havia sido um exemplo para mim vulgarizar-se...


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