Aqui onde o mar acaba e a terra principia
Ricardo Reis regressou a Portugal depois da morte de Fernando Pessoa.
À tarde, ao regressar do pequeno almoço,reparou que havia ramos de flores nos degraus da estátua de Camões, homenagem das associações de patriotas ao épico, ao cantor sublime das virtudes da raça, para que se entenda bem que não temos mais que ver com a apagada e vil tristeza de que padecíamos no século dezasseis, hoje somos um povo muito contente...
Mestre, são plácidas todas as horas que nós perdemos. se no perdê-las, qual numa jarra, nós pomos flores, e seguindo concluía, Da vida iremos tranquilos, tendo nem o remorso de ter vivido. Não é assim , de enfiada, que estão escritos, cada linha leva seu verso obediente, mas desta maneira, contínuos ,eles e nós, sem outra pausa que a da respiração e do canto...
Vivem em nós inúmeros,se penso ou sinto, ignoro quem é que pensa ou sente, sou somente o lugar onde se sente ou pensa e,não acabando aqui, é como se acabasse , uma vez que, para além de pensar e sentir não há mais nada.
Sorrindo vai buscar à gaveta os seus poemas, as suas odes sáficas, lê alguns versos apanhados no passar das folhas, E assim , Lídia, à lareira, como estando, Tal seja Lídia o quadro,Não desejemos , Lídia, nesta hora Quando, Lídia, vier o nosso outono, vem sentar-te comigo Lídia, à beira-rio, Lídia , a vida mais vil antes que a morte, já não resta vestígio da ironia no sorriso..
desta maneira se concluindo o poema , Não quieto nem inquieto meu ser calmo quero erguer alto acima de onde os homens têm prazer ou dores, o mais que pelo meio ficou obedecia à mesma conformidade, quase se dispensava A dita é um jugo e o ser feliz oprime porque é um certo estado. Depois foi-se deitar e adormeceu logo.
Nessa noite ,ao serão, Ricardo Reis escreveu uns versos, Como as pedras na orla dos canteiros o Fado nos dispõe, e ali ficamos, isto só , mais tarde veria se de tão pouco poderia fazer uma ode , para continuar a dar nome a composições poéticas que ninguém saberia cantar,se cantáveis eram,e com que música, como tinham sido as dos gregos,no tempo deles.Ainda acrescentou , meia hora passada, Cumpramos o que somos, nada mais nos é dado,e arredou a folha de papel, murmurando, Quantas vezes já terei eu escrito isto doutras maneiras.
breves são os anos , poucos a vida dura, mais vale, se só memória temos, lembrar muito que pouco, e lembrá-la a si é quanto tenho hoje na memória guardado, cumpramos o que somos, nada mais nos foi , e assim chega uma carta ao fim, tão difícil nos pareceu escrevê-la e saiu correntia, basta não sentir muito o que se diz e não pensar muito no que se escreve, o mais que houver de ser depende da resposta.
que poema irá escolher, que dirá Marcenda depois de o ouvir, que expressão haverá no seu rosto, talvez peça para ver com os próprios olhos o que ouviu, fará em voz baixa a sua própria leitura, Num fluido incerto nexo, como o rio cujas ondas são ele, assim teus dias vê,e se te vires passar, como a outrem, cala.
Ricardo Reis pegou na folha de papel em que estivera a escrever, Tenho aqui uns versos, não sei no que isto irá dar, Leia lá, É apenas o princípio, ou pode ser que venha a começar de outra maneira, Leia, Nós não vemos as Parcas acabarem-nos, por isso as esqueçamos como se não houvessem.
A esta mesma hora, naquele segundo andar da Rua de Santa Catarina, Ricardo Reis tenta escrever um poema a Marcenda, para que amanhã não se diga que Marcenda passou em vão, Saudoso já deste Verão que vejo, lágrimas para as flores dele emprego na lembrança invertida de quando hei-de perdê-las , esta ficará sendo a primeira parte da ode... e é neste momento que o poema se completa, difícil, com um ponto e vírgula metido a desprazer...adivinhemos onde , para termos também parte na obra, E colho a rosa porque a sorte manda, Marcenda, guardo-a, murche-se comigo antes que com a curva diurna da ampla terra.
e este ainda se torna queixoso só porque não recebeu de Marcenda uma carta de amor, não esquecer que todas as cartas de amor são ridículas, isto é o que se escreve quando a morte vem subindo a escada, quando se torna de súbito claro que verdadeiramente ridículo é não ter recebido nunca uma carta de amor.
atravessou a praça onde puseram o poeta , todos os caminhos portugueses vão dar a Camões, de cada vez mudado consoante os olhos que o veem, em vida seu braço às armas feito e mente às musas dada, agora de espada na bainha, cerrado o livro, os olhos cegos, ambos, tanto lhos picam os pombos como os olhares de quem passa.
depois, quase num murmúrio, atrozmente banal, sedutor ridículo, Acho-a muito bonita, e ficou a olhar para ela por um segundo só , não aguentou mais do que um segundo, virou costas, há momentos em que seria bem melhor morrer, Eu, que tenho sido cómico às criadas de hotel,também tu, álvaro de Campos,todos nós.
Estás só, ninguém o sabe, cala e finge.murmurou estas palavras em outro tempo escritas,e desprezou-as por não exprimirem a solidão, só o dizê-la,também ao silêncio e ao fingimento, por não serem capazes de mais dizer,porque elas não são, as palavras, aquilo que declaram estar só, caro senhor, é muito mais conseguir dizê-lo e tê-lo dito.
Meu caro Reis, você, um esteta, íntimo de todas as deusas do Olimpo, a abrir os lençóis da sua cama a uma criada de hotel, a uma serviçal, eu que me habituei a ouvi-lo falar a toda a hora, com admirável constância, das suas Lídias, Neeras e Cloes, e agora sai-me cativo duma criada, que grande decepção.... e quer que eu acredite que esse homem é aquele mesmo que escreveu Sereno e vendo a vida à distância a que está , é caso para perguntar-lhe onde é que você estava quando viu essa distância.
Você disse que o poeta é um fingidor, Eu o confesso, são adivinhações que nos saem pela boca sem que saibamos que caminho andámos a percorrer para lá chegar, o pior é que morri antes de ter percebido se o poeta é que se finge homem ou o homem que se finge poeta.
"
Bravo, vejo que você se cansou de idealidades femininas incorpóreas, trocou a Lídia etérea por uma Lídia de encher as mãos e agora está aqui à espera doutra dama(...)Adeus, caro Reis, até um destes dias, deixo-o a namorar a pequena, você afinal desilude-me,amador de criadas,cortejador de donzelas,estimava-o mais quando você via a vida à distância a que está.
Sim...dizia uns versos escritos por um amigo meu que morreu há alguns meses, talvez conheça,Como se chamava ele,Fernando Pessoa, Tenho uma vagaideia do nome, mas não me lembro de alguma vez ter lido, Entre o que vivo e a vida, entre quem estou e sou, durmo numa descida, descida em que não vou,Foram estes versos que esteve a dizer,Foram, Podiam ter sido feitos por mim,se entendi bem,são tão simples,Tem razão,qualquer pessoa os poderia ter feito, Mas teve de vir essa pessoa para os fazer...
O que eu não esperava era que você fosse tão persistente amante, para o volúvel homem que poetou a três musas, Neera, Cloe e Lídia, ter-se fixado carnalmente em uma, é obra...
"Seguro assento na coluna firme
Dos versos em que fico,
Nem temo o influxo inúmero futuro
Dos tempos e do olvido;
Que a mente, quando, fixa, em si contempla
Os reflexos do mundo,
Deles se plasma torna, e à arte o mundo
Cria, que não a mente.
Assim na placa o externo instante grava
Seu ser, durando nela."
Aqui sentado, estas duas palavras escreveu-as como o princípio de um poema, mas logo se lembrou de que um dia passado escrevera, Seguro assento na coluna firme dos versos em que fico, quem um tal testamento redigiu alguma vez não pode ditar outro contrário.
Imperdoável esquecimento, disse Fernando Pessoa, não ter posto o Adamastor na Mensagem, um gigante tão fácil, de tão clara lição simbólica.(...)serviu-se o Camões dele para queixumes de amor que provavelmente lhe estavam na alma, e para profecias menos do que óbvias , anunciar naufrágios a quem anda no mar , para isso não são precisos dons divinatórios particulares.
Uma vez ,dez vezes viu Ricardo Reis as horas, são quatro e meia, Marcenda não veio nem virá, a casa escurece, os móveis escondem-se numa sombra trémula, é possível , agora, imaginar o sofrimento do Adamastor.
Já se viu que Luís de Camões exagerou muito, este rosto carregado, a barba esquálida, os olhos encovados, a postura nem medonha nem má, é puro sofrimento amoroso o que atormenta o gigante, quer ele lá saber se passam ou não o cabo as naus portuguesas.
"Não acabava, quando uma figura
Se nos mostra no ar, robusta e válida,
De disforme e grandíssima estatura;
O rosto carregado, a barba esquálida,
Os olhos encovados, e a postura
Medonha e má e a cor terrena e pálida;
Cheios de terra e crespos os cabelos,
A boca negra, os dentes amarelos."
Qual será o amor bastante de ninfa, que sustente o dum Gigante, agora já ele sabe o que valiam as prometidas abondanças. Lisboa é um grande silêncio que rumoreja, nada mais.
Deixemos a árvore, olhe para dentro de si e veja a solidão, Como disse o outro, solitário andar por entre a gente, Pior do que isso, solitário estar onde nem nós próprios estamos.
Retirou-se Lídia tristíssima, leva consigo o tabuleiro, vai lavar a louça, vai-la lavar alva, mas antes acende o esquentador...
Aqui onde o mar se acabou e a terra espera.

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