Não é neccessário vivermos ao lado de alguém para nos sentirmos ligados a esse alguém mais do que a qualquer outra pessoa...

quarta-feira, 6 de setembro de 2017

Para sempre: teño morriña, teño saudade...



Até ao fim do mundo...Drama em 4 atos
Pêro Coelho (narrando a Pedro o momento do assassinato de Inês de Castro)

Foi quando nos olhamos sem falar, e como a pedra cai num poço em noite, a decisão suprema entrou em nós. (...). Era no Outono como agora. Vós lembrai-vos. Sabíamos que iríeis a montear, e partimos, noite cerrada, para perto. El-Rei vosso pai, meu senhor, fazia dó. (...) por duas ou três vezes quis voltar. (...). Era o dever, o seu dever de rei, que o levava arrastos pela noite... (...) Por fim, chegamos. (...). A manhã tinha de vir: e veio!... Daí a pouco, os vossos cães latiram. Soou então uma trompa de monteiro, mas baixo, como quem chamasse a medo. Houve um rumor de porta sob o alpendre... Éreis vós, meu senhor, que íeis montear... (...). Vi então claramente o vosso vulto. (...). Depois Ela... Foi para vós: beijou-vos: não sei o que vos disse...e ouvi-vos rir... Oh! O vosso rir, o vosso rir na inocência da manhã! (...). Descestes. Ela seguia-vos com os olhos, debruçada. (...). Ela tinha a mão por sobre os olhos, acenou-vos um adeus lento, (...). Chamei por vosso pai. Disse-lhe baixo: — É a hora, meu senhor. Ele hesitava, branco, cor-de-cera, encostado a um tronco de oliveira, que era mesmo da cor de suas cãs... (...). Demos a volta ao muro do pomar, e eu empurrei a porta — a porta que vós meu senhor, tínheis deixado entreaberta (...). Ela estava ainda sob o alpendre, e olhava do lado do Mondego. Voltou-se então: decerto ouvira os passos... e toda a face lhe embranqueceu de tal maneira, que para que eu não quedasse de piedade, foi meu senhor, lembrar-me de que amava a minha terra (...) Vi que queria gritar, mas não pode. Ainda olhou num instinto de defesa, para o lado por onde vós sumistes... Quando subi a escada, vi-a abalar com gestos de agonia, para a alcova de vossos filhos. (...). Parecia que um vento de terror a enovelava, assim, movendo os braços como asas, com três vidas pequeninas a cercá-la, (...). E cravara em vosso pai os olhos! (...). Ele tapara os olhos com a mão para não ver os dela, nem os netos; e com uma voz tão branca como o rosto, ela disse ao Infante D. Dinis: — Olha o avô!... (...). Eu desnudei então a minha espada. Avancei para ela. Nem fugiu. Estava sem alma já. (...)

Pedro - – Sou o rei... o rei do maior reino... do reino que me deste, minha Inês... Duas vezes Rainha!... Santa! Santa!... Se estou aqui ao pé de ti – tudo foi bom!... A minha dor, Inês, beijo-a nos olhos!... beijo-a como beijei a tua boca... como – cerrando os olhos na saudade – beijei, beijei, beijei a tua alma... Tudo, tudo foi bom. Tudo eu bendigo. Oiço bater o coração do meu destino. Agora sei, Inês... agora entendo. Morreste moça – pr'a viveres na eternidade sempre moça. Bendito seja sempre o teu martírio! Bendito o lobo em mim... bendita a hiena... (Mais perto d'ela ainda, erguendo as mãos) Bendita tu, Inês, sempre bendita! (Pausa. N'um tom d'intimidade mística) Estás outra vez no reino pequenino. Ele foi-te fiel como o teu Pedro. Cada árvore sabe a tua graça. A tarde cai lembrando o teu sorriso. A terra que tu pisaste alimentou-me: era pão pr'a mim, mais do que pão. Oh! Mas Coimbra foi como uma mãe. Como se o húmus recebesse a tua carne, floriu todo em saudades – campo e montes... Terra de comunhão, carne de Inês. Como eu a Vejo agora – a nossa Coimbra!... É uma Coimbra decantada na saudade... uma Coimbra d'além... E rio e choupos, e olivais e paços, vozes de sinos, voz de rouxinóis: é tudo, tudo feito de reflexos... Só ela vive do meu reino agora. O meu reino lá foi – sumido em névoa. Adeus salas de pedra dos meus paços... meu povo e minha corte... meu chicote de justiceiro... noites de folgança ao som das longas... manhãs de montaria... bons nebris... Sois uma asa ao fundo da memória. Só guardo nos meus olhos o Mondego, tal como o vi depois de tu morreres. Eu não tinha um irmão... Ninguém comigo. Fui ter com ele – o meu amigo de água. Ia como uma lágrima doirada, com folhas secas a boiar, o céu ao fundo, e os choupos nas margens a rezar... Assim ficou n'esta alma para sempre. Lembras-te? – uma vez, no ardor da sesta, adormeci no teu regaço. Era em agosto. Ele corria aos nossos pés, n'um murmurinho: as suas águas tinham sede como a areia. Pr'a me acordares – era já quase noite – beijaste-me nos olhos, minha Inês. E eu quedei como um monte, em seu burel de mato rude, quando uma nuvem da manhã o beija... Não sabia onde estava. Tu sorrias. Entrevi n'esse instante o nosso reino... Ouve o teu Pedro, Inês, peço-te muito: – havemos de nos lembrar do sol da terra! E do Mondego, Inês, das suas águas. O sol da terra é irmão do teu cabelo. Como eu o amei, como eu amei o teu cabelo!... Muitas vezes, a afogar-me n'ele, sentia luz em mim, era meio-dia, como se Deus mungisse o sol sobre a minha alma... Amava-o tanto como tu o sol. Tu amavas o sol perdidamente. Até fugias dos meus braços, meu amor, para o ver a arraiar por sobre os montes. Ao luzir d'alva, abrias a janela: "Anda ver, meu Pedro, ele não tarda." Eu cingia-te quente, semi-nua. O pomar dormia. Só o silêncio andava a perfumar-se no pomar. Tudo era cor de asas de rouxinóis... Como tu te fazias pequenina!... A manhã vinha vindo além dos montes... Os teus seios arfavam com a luz... E ficavas a olhar os olhos rasos!... Que tinhas tu!?... Vias o céu sofrer?... Era pr'a dar a aurora ao nosso amor!... E nascia... subia: encantamento!... Os teus olhos faziam-se maiores. Oh! O que o sol gozou de viver n'eles!... Mesmo na sombra – eram flores com raios... Os teus olhos olhavam-me na sombra – como as janelas do meu paço olham a noite... Os meus agora vivem como estrelas: dobam a luz dos teus sem descansar (Com opressão e êxtase) Onde estou eu?... Não sei. Estou só contigo. Respiro o teu olhar: é luz de luz... É o ar da minha alma – o teu olhar. E Alcobaça!?... A minha coroa d'oiro!?... Alcobaça onde está!?... as altas naves!?... E os sinos?... a corte!?... os sinos d'oiro a bailar no ar as minhas bodas!?... Ainda os oiço... ainda... mas tão longe... É o princípio e o fim de todo o nosso amor. Os teus seios uniram-se: ei-lo – o mundo!... Oiço no teu silêncio cotovias... O som e a luz casaram-se, fundiram-se: são o ar que eu respiro... o nosso ar... Oh! Asas... asas... dêem-me asas!... É um abismo d'estrelas – este amor... Faz-me medo. É um turbilhão de estrelas... (Com voz de aura, chamando) Inês!... Inês!... Eu tenho medo... Sinto o vento de luz da eternidade...



«No final de uma vida, entrando no seu epílogo, um homem já sem destino para cumprir medita sobre o seu passado e o seu futuro, no regresso a uma casa vazia onde passou parte da sua infância, povoada de fantasmas que evocam os momentos-chave da sua existência. Recheado de flashbacks para o passado e para o futuro (!), a antevisão, real e com todos os detalhes, da degradação da sua velhice e do seu funeral urge em Paulo a derradeira tentativa de procura da explicação de um sentido para a vida».

«Contínua e cada vez mais solitária viagem em volta do único ponto do seu universo: o da sua infância como monólogo inacabado e inacabável em torno do milagre ardente e pavoroso da sua própria aparição no meio do mundo - montanha, estrelas, água, vento que é uma resposta antes de ser desesperada e inútil interrogação.»

Via-a de longe, evitava vê-la de perto, como é que lhe havia de falar? E era como se uma vergonha muito grande, um pecado ou coisa assim, ou uma inferioridade muito baixa e que vinha de uma superioridade muito alta em que eu via Sandra. Eu sentia-me esmagado de humilhação, como é que lhe havia de falar? Quem é que disse que o amor aproxima não sei quê? Não é verdade. Sou um homem experimentado - não é verdade. Se eu amasse pouco Sandra, ou não a amasse, era-me muito mais fácil falar com ela, lidar com ela e com a irmã e com quem quer que fosse dela, eu livre e independente. Amar é pôr ao alto e ao longe, treme-se como diante de um deus tresloucado. Amar muito é ter pouco de nós com que se possa ser gente.

Uma palavra. Disse-a. Amo-te - uma palavra breve. Quantos milhões de palavras eu disse durante a vida. E ouvi. E pensei. Tudo se desfez. Palavras sem inteira significação em si, o professor devia ter razão. Palavras que remetiam umas para as outras e se encostavam umas às outras para se aguentarem na sua rede aérea de sons. Mas houve uma palavra - meu Deus. Uma palavra que eu disse e repercutiu em ti, palavra cheia, quente de sangue, palavra vinda das vísceras, da minha vida inteira, do universo que nela se conglomerava, palavra total. Todas as outras palavras estavam a mais e dispensavam-se e eram uma articulação ridícula de sons e mobilizavam apenas a parte mecânica de mim, a parte frágil e vã. Palavra absoluta no entendimento profundo do meu olhar no teu, palavra infinita como o verbo divino. Recordo-a agora - onde está? Como se desfez? Ou não desfez mas se alterou e resfriou e absorveu apenas a fracção de mim onde estava a ternura triste, o conforto humilde, a compaixão. Não haverá então uma palavra que perdure e me exprima todo para a vida inteira? E não deixe de mim um recanto oculto que não venha à sua chamada e vibre nela desde os mais finos filamentos de si? Uma palavra. Recupero-a agora na minha imaginação doente. Amo-te. Na intimidade exclusiva e ciumenta do nosso olhar mútuo e encantado. Fecha-nos o lençol na claridade difusa do amanhecer, estás perto de mim no intocável da tua doçura. Frágil de névoa. Fímbria de sorriso e de receio, de pavor, no meu olhar embevecido. Uma palavra. A primeira que em toda a minha vida me esgotou o ser. A que foi tão completa e absorvente, que tudo o mais foi um excesso na criação. Deus esgotou em mim, na minha boca, todo o prodígio do seu poder. Ao princípio era a palavra. Eu a soube. E nada mais houve depois dela.


É o teu rosto que encontro. Contra nós, cresce a manhã, o dia, cresce uma luz fina. Olho-te nos olhos. Sim, quero que saibas, não te posso esconder, ainda há uma luz fina sobre tudo isto. Tudo se resume a esta luz fina a recordar-me todo o silêncio desse silêncio que calaste. Pai. Quero que saibas, cresce uma luz fina sobre mim que sou sombra, luz fina a recortar-me de mim, ténue, sombra apenas. Não te posso esconder, depois de ti, ainda há tudo isto, toda esta sombra e o silêncio e a luz fina que agora és.

Pai. A tarde dissolve-se sobre a terra, sobre a nossa casa. O céu desfia um sopro quieto nos rostos. Acende-se a lua. Translúcida, adormece um sono cálido nos olhares. Anoitece devagar. Dizia nunca esquecerei, e lembro-me. Anoitecia devagar e, a esta hora, nesta altura do ano, desenrolavas a mangueira com todos os preceitos e, seguindo regras certas, regavas as árvores e as flores do quintal; e tudo isso me ensinavas, tudo isso me explicavas. Anda cá ver, rapaz. E mostravas-me. Pai. Deixaste-te ficar em tudo. Sobrepostos na mágoa indiferente deste mundo que finge continuar, os teus movimentos, o eclipse dos teus gestos. E tudo isto é agora pouco para te conter. Agora, és o rio e as margens e a nascente; és o dia, e a tarde dentro do dia, e o sol dentro da tarde; és o mundo todo por seres a sua pele. Pai. Nunca envelheceste, e eu queria ver-te velho, velhinho aqui no nosso quintal, a regar as árvores, a regar as flores. Sinto tanta falta das tuas palavras. Orienta-te, rapaz. Sim. Eu oriento-me, pai. E fico. Estou. O entardecer, em vagas de luz, espraia-se na terra que te acolheu e conserva. Chora chove brilho alvura sobre mim. E oiço o eco da tua voz, da tua voz que nunca mais poderei ouvir. A tua voz calada para sempre. E, como se adormecesses, vejo-te fechar as pálpebras sobre os olhos que nunca mais abrirás. Os teus olhos fechados para sempre. E, de uma vez, deixas de respirar. Para sempre. Para nunca mais. Pai. Tudo o que te sobreviveu me agride. Pai. Nunca esquecerei.

Uma dúvida para sempre: vergílio ferreira é melhor ou pior do que josé luís peixoto? São semelhantes no recorte frásico, na racionalidade pateticamente frouxa, na emotividade racionalmente patética. São intensos, mas sem qualquer intensidade.Escrevem bem, pensam bem, mas não despertam qualquer emoção intelectual, são eternos adolescentes sofredores, só isso... Saber pensar e saber escrever não equivale, necessariamente, a ser um grande escritor...
Vergílio Ferreira não transforma o pensamento em reflexão, mas em lamentos; não é um adulto lúcido, mas um eterno adolescente sofredor. A sua revolta conformada é, por vezes, entediante. Não basta pensar e escrever bem, é preciso construir livros " que nos afetem como um desastre..." Há mais virilidade( não tenho medo desta palavra/ conceito tão fora de moda) numa página de Agustina do que em todos os romances de VF e de JLP.


I'm up in the woods I'm down on my mind I'm building a still to slow down the time...


Exista ou não unidade linguística entre o galego e o português, como defendem muitos estudiosos, o galego é a língua mais bonita que existe.( Só esse facto justifica a presença de julio iglesias na minha biblioteca. Talvez nem fique mal depois da " morriña" lusitana...)

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