Não é neccessário vivermos ao lado de alguém para nos sentirmos ligados a esse alguém mais do que a qualquer outra pessoa...

segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

Imperfeições, odes e outras inutilidades

Pedro Chagas Freitas, talvez saturado das suas patéticas lamúrias amorosas e da descrição de intensos orgasmos, resolveu fazer uma "ode" a cristiano ronaldo ... E teve leitores, teve "gostos", teve aplausos... Está tudo doido?

"ERA SÓ ISTO QUE TE QUERIA DIZER, CRISTIANO:

Quando aos doze anos chegaste a Lisboa, carregado de lágrimas e de esperanças, eles disseram que eras só mais um miúdo madeirense. Em menos de cinco anos estavas a jogar na equipa principal do Sporting.
Quando fizeste os primeiros jogos com os seniores, eles disseram que eras só mais um puto habilidoso. Alguns meses depois assinaste pelo Manchester United.
Quando chegaste a Inglaterra, eles disseram que eras só uma promessa. Em seis épocas fizeste 118 golos.
Quando o Real Madrid te contratou, eles disseram que eras só um nome para vender camisolas. Desde 2009 já marcaste 422 golos em 418 jogos e já bateste praticamente todos os recordes que tinhas para bater no clube.
Quando em 2008 recebeste a primeira Bola de Ouro, eles disseram que ia ser só essa. Já ganhaste mais quatro.
Quando te tornaste capitão da seleção, eles disseram que eras só mais um capitão sem carisma, sem espírito de liderança. Em 2016 foste o primeiro português de sempre a levantar a Taça de Campeão Europeu de Seleções.
Agora, que não marcas como um extraterrestre há dois ou três jogos, eles dizem que és só mais um jogador em fim de carreira, quase acabado, a dar as últimas, na curva descendente. Não te preocupes. Quando sorrires com um troféu na mão no alto de uma Torre Eiffel desta vida, ou quando marcares mais um golo decisivo, ou quando bateres mais um recorde, vais tê-los lá a olhar, atentos. A aplaudir, claro. Coitados. É só o que lhes resta."


Considerar esta canhestra sequência de palavras uma ode é uma ofensa, reveladora de uma total falta de senso. Isto é mera bajulação, não pindárica, mas pindérica.

O cair da noite era lento, pacífico, como que adormecido [?]. O doente sentiu a depressão da derrota, a agoniada tristeza da consciência de não ter feito nada, das suas intenções terem sido inutilidades, reais apenas para ele, sepultas ainda em vida no âmago do seu coração. Quis poder chorar mas tinha - e sentiu-o - a alma como que mirrada, seca, imaleável ao sentimento da dor. Suspirou apenas, mais mental do que fisicamente...
Fixou desprendidamente os olhos nas coisas que o rodeavam e angustiou-o passivamente a nitidez da banalidade objectiva de tudo... A grosseria da matéria era parte também das cadeiras, do toucador entre as duas janelas, da cómoda ao outro canto do quarto - nem se virou para a olhar, viu-a subconscientemente, meio por memória dela - e do papel que forrava as paredes, amarelado, já um tanto antigo, com um desenho qualquer de um dragão dourado, amiudadamente banal e oco como coisa, desde a (board above floor) até quase ao tecto. O tecto era de estuque branco, com um floreado no centro no meio do qual havia um gancho para candeeiro. Tudo isto foi-lhe doloroso ver, tão brutalmente real se lhe afigurava, tão mais real do que esperanças, compaixões, mágoas e desesperos. As cortinas das janelas impediam ver para fora, uma porém (...) dum lado mostrava ao longe o azul muito azul do céu, muito azul, muito longe, muito azul, muito de um azul liso, puro e perfeito.
Esboçou mentalmente o gesto de encolher os ombros.



Não sou o meu corpo, não sou o meu nome, não sou esta idade. Não sou o que tenho, não sou estas palavras, não sou o que dizem que sou, não sou o que penso que sou.

Eu punha bastante empenho em diferenciar-me dos turistas e, por isso, estava muito divertido.Acreditava que tinha uma missão mais elevada.Estava ali para escrever um livro - este livro- , não por mero lazer. Eu estava divertido porque não estava ali para me divertir, como eles.

Incomoda-me quando alguém acha que sabe quem sou apenas porque leu um livro escrito por mim - como este - ou, até, porque leu uma frase mal citada ou viu a minha cara numa fotografia. Sinto-me agredido quando tentam reduzir-me a conceitos fechados e intransigentes, construÍdos por olhares que não se questionam a si próprios, que não admitem qualquer hipótese de falha no seu preconceito.

Registo de curiosidades nesta coisa mas - do- que - imperfeita: há muitos gatos; tudo é preferível a conflitos, até a mentira; tocar na rainha ou na princesa é ofensa capital; o rei tem de ser budista; 1 em cada 165 homens vivem como mulheres;há aproximadamente 200 tipos de cobras terrestres e 20 são mortais; pompoarismo é uma técnica para trabalhar o músculo;as prevaricações mais comuns dos monges envolvem drogas sexo ou corrupção; há cerca de 300 mil monges budistas; a homossexualidade dos monges é criminalizada; cheirar é um gesto de ternura; descrição do trânsito, páginas 70-71;

Alternância - uma estratégia narrativa que poderia ser perfeita, mas ... " O problema, então, está em saber no que é que consiste a literatura de viagens de hoje, nos dias em que o capital do escritor em nada aumenta por viajar? Para a História dos países há historiadores, tratados etnográficos e crónica variada; para estados de alma há os diários, para reflexões ideológicas há a História das ideias ou uma qualquer espécie de filosofia comparada. O lugar é estreito; Peixoto, porém, também pouco faz por alargá-lo.
Este livro vagueia entre Banguecoque, Las Vegas e a nossa ditosa pátria. Dos países visitados, Peixoto vem com as histórias comuns dos visitantes – as proezas vaginais com bolas de pingue-pongue, a profusão de feiras – e uma ou outra de repórter em trabalho. Histórias de Homens e mulheres comuns, não mais assinaláveis do que outras quaisquer, que não parecem escolhidas em função de nada: perpetua o registo impressionista, mais ou menos demorado, em que se colhe o que vem ter connosco, sem tese ou objectivo. Há, claro, alguns pormenores tétricos, umas histórias sensíveis, na concupiscência emocional do costume.
Esta escolha, porém, podia ser apenas uma sucessão de episódios, mais interessantes uns, menos interessantes outros, sem grande fio condutor, mas que de alguma forma captassem o ambiente das cidades. Acontece que José Luís Peixoto insiste em repassar as suas impressões de viagem pela sua personalidade, de tal modo que todo o livro se torna uma espécie de longo passeio pelo seu merencório coração. A Las Vegas da sua melancolia é igual no tom a Banguecoque ou ao Alentejo. Ora, não haveria mal se Peixoto quisesse fazer um livro sobre si próprio; aquilo que nos parece é que o vincar da personalidade, sobretudo numa toada monocórdica, não é amigo de um livro de impressões de viagem, em que se pede variações de cor, ou capacidade de distinção de ambientes; mais, se o objectivo fosse criar um livro sobre a sua psicologia, impunha-se, em primeiro lugar, uma consciência desta mente que tudo igualiza e, além disso, mais profundidade no olhar sobre si próprio.
José Luís Peixoto é um escritor intimista. Mesmo que deixemos de lado algumas opções mais insólitas – como o facto de lembrar, a propósito da Tailândia, as suas idas infantis ao restaurante chinês ou ao cinema para ver o Bruce Lee, ou o convite ao leitor para, quando o encontrar na rua, pedir para ver uma das suas tatuagens – abundam referências aos filhos, às irmãs, aos pais, e até reflexões sobre a nobreza da sua exposição da intimidade.
Contudo, a um escritor tão intimista, exigia-se maior detenção nos seus próprios pensamentos. As suas causas são comuns e maçadoras de politicamente correctas, os seus pensamentos tão originais como “Há pessoas que fazem muita questão de defender as impressões que tiveram – são a verdade” e, sobretudo, nunca se estendem por mais do que um ou dois parágrafos: Peixoto faz a pergunta e não espera pela resposta, como se a questão fosse apenas formal, como se – apesar de ser perguntada com grande gravidade – não impedisse a vida de continuar normalmente. O mais estranho, porém, para um escritor que tanto fala de emoções e que tanta atenção lhes dá, é o modo completamente pacificado como olha para si próprio. Todas as críticas, todos os problemas da humanidade, são introduzidos por locuções do género “há pessoas”: é assim, com distância, que ajusta contas com os seus zoilos, que olha para a maldade da espécie e para as opiniões que considera menores. É confessional, mas só para contar episódios familiares: se é para confessar defeitos, só os dos outros. O livro começa e acaba com um interesse meio místico num episódio de compra de órgãos humanos numa feira, e continua pelos recantos da sua alma sensível: mesmo que a pieguice não empape tantas páginas como nos seus romances, continua a ser um caminho pouco recomendável. " - Crítica de Carlos Maria Bobone.


Perfeições imperfeitas...

Agustina Bessa Luís ainda está, mas já morreu: morremos quando deixamos de ser, não quando deixamos de estar...

As pessoas estão prontas a viver em bom entendimento, mas não querem ser viciadas em agradar. A condição humana assenta num pressuposto equilibrado: a vida agrada a uns e desagrada a outros. Há uma parte da solidão que não podemos compor, e é melhor que assim seja, porque é na solidão que assenta a diferença tão falada. É isso que se receia: que nos proíbam a solidão, esse pequeno espinho que afinal nos faz solidários na multidão. Observem um grupo de pessoas que ri da mesma anedota: estão abertas a esse prazer do momento, mas não se distraem da faculdade de serem sós na sua fundamental forma de orgulho que é serem únicas.
O Português - Prefere ser um rico desconhecido, a ser um herói pobre. É melhor do que parece. O homem português é dissimulado, e fez da inveja um discurso do bom senso e dos direitos humanos. Mas é também um homem de paixões moderadas pela sensibilidade, o que faz dele um grande civilizado. Gosta das mulheres, o que explica o estado de dependência em que as pretende manter. A dependência é uma motivação erótica. É inovador mas tem pouco carácter, como é próprio dos superiormente inteligentes, tanto cientistas, como filósofos e criadores em geral. Mente muito, e a verdade que se arroga é uma culpa inibida. Vemos que ele se mantém num estado primitivo quando defende a sua área de partido, de seita e de família, à custa de corrupções e de crimes, se for preciso. Gosta do poder mas não da notoriedade. Não tem o sentido da eternidade, mas sim o prazer da liberdade imediata. Não é democrata; excepto se isso intimidar os seus adversários. Não tem génio, tem habilidade. É imaginativo mas não pensador. É culto mas não experiente. Não gosta da lei, porque ela desvaloriza a sua própria iniciativa. É místico com a fábula e viril com a desgraça.

Escrever é isto: comover para desconvocar a angústia e aligeirar o medo, que é sempre experimentado nos povos como uma infusão de laboratório, cada vez mais sofisticada. Eu penso que o escritor com maior sucesso (não de livraria, mas de indignação social profunda) é aquele que protege os homens do medo: por audácia, delírio, fantasia, piedade ou desfiguração. Mas porque a poética precisão de dum acto humano não corresponde totalmente à sua evidência. Ama-se a palavra, usa-se a escrita, despertam-se as coisas do silêncio em que foram criadas. Depois de tudo, escrever é um pouco corrigir a fortuna, que é cega, com um júbilo da Natureza, que é precavida.

A arte é, provavelmente, uma experiência inútil; como a «paixão inútil» em que cristaliza o homem. Mas inútil apenas como tragédia de que a humanidade beneficie; porque a arte é a menos trágica das ocupações, porque isso não envolve uma moral objectiva. Mas se todos os artistas da terra parassem durante umas horas, deixassem de produzir uma ideia, um quadro, uma nota de música, fazia-se um deserto extraordinário. Acreditem que os teares paravam, também, e as fábricas; as gares ficavam estranhamente vazias, as mulheres emudeciam. A arte é, no entanto, uma coisa explosiva. Houve, e há decerto em qualquer lugar da terra, pessoas que se dedicam à experiência inútil que é a arte, pessoas como Virgílio, por exemplo, e que sabem que o seu silêncio pode ser mortal. Se os poetas se calassem subitamente e só ficasse no ar o ruído dos motores, porque até o vento se calava no fundo dos vales, penso que até as guerras se iam extinguindo, sem derrota e sem vitória, com a mansidão das coisas estéreis. O laço da ficção, que gera a expectativa, é mais forte do que todas as realidades acumuláveis. Se ele se quebra, o equilíbrio entre os seres sofre grave prejuízo.

O medo é o que impede que tudo o que chega às maõs dos homens não se torne em sua propriedade. Basta produzir uma impressão que não se pode explicar, inserindo no medo o desconforto da culpa. É assim que milhões de pessoas podem ser pastoreadas nas ribeiras da paz por muito poucas. E nas trincheiras da guerra por outras tantas, senão as mesmas.

Não sei o que acontecerá quando formos todos funcionários aureolados pela organização de aparências que acentua a satisfação dos privilégios. A aparência vai tomando conta até da vida privada das pessoas. Não importa ter uma existência nula, desde que se tenha uma aparência de apropriação dos bens de consumo mais altamente valorizados. Há de facto um novo proletariado preparado para passar por emancipação e conquistas do século. As bestas de carga carregam agora com a verdade corrente que é o humanismo em foco — a caricatura do humano e do seu significado.

D. Sebastião tem quinze anos, é um pedante acabado.A sua inegável capacidade mental,trabalhada pelo mestre inexcedível e veemente, a sua fina tendência para a emoção estética,fazem dele um príncipe de teatro. Todas as épocas em que estremecemos alicerces de grandes valores morais e em que a perspectiva duma nova cultura se desenha são pódigas no príncipe de teatro. Aconteceu com Calígula e Nero,que os cronistas cripto-cristãos converteram em monstros e que, na melhor das hipóteses( a melhor das hipóteses é sempre a que viola as regras o jogo), não passaram de príncpes actores. Mas uma nova cultura embebe-se do velho sangue da cultura morta.Não é estranho,portanto, encontrar em D. Sebastião esse exausto sonho de conquista que o faz ler a história de Carlos V a ponto de cair de fadiga e parecer desmaiado na sua cadeira.(...)Com esta indumentária heróica o rei integra um quê criador,a sua provocação, aquilo que o identifica ao actor e que está em grande parte das personagens de Shakespeare.A provocção é a ordem ostensiva,é o escândalo e é, não raro, a incomunicabilidade." A gente de Combra o pateava"- diz António Sérgio.Patear é o termo exacto,porque D.Sebastião não se faz compreender.Como actor,é vaiado pelo senso comum, a a História, vasta tela de senso comum,exerceu os seus direitos a ponto de o deturpar. D. Sebastão nunca procede como um desequilibrado. É um extravagante,ou antes,um original,e a profundidade do espaço onde se move tem muito de comum com os quadros surrealistas, o onírico transborda de verdade.

É duma comovente solidão esse rei que nunca se libertou dos terrores infantis e que toda a vida lutou,com astúcias impressionantes,contra,não só os seus medos,mas também contra os meios que os podiam aliviar. A sua inibição sexual inclui-se também no comportamento fóbico, uma vez que o desejo é relacionado com um perigo destruidor;

Esta sensibilidade desajustada personifica a degradação do ideal masculino,mercê do ideal de perfeição que é ministrado ao príncipe desde a mais tenra infância.(...)Daí o carácter feminino larvado,sufocado pela representação do guerreiro cuja crueldade é um atributo de coragem.(...) E, ainda como mulher,não respeitava preceitos, e os caprichos predominavam sobre os deveres.(...) Não suporta ser visto nu,e ele próprio se despe sozinho,despedindo o camareiro. Até o facto de lhes verem os pés( de resto, tem os dedos todos iguais) o incomoda.

Não há dúvida que D. Sebastião foi uma figura histórica interessante. Não como exemplo de utopia ou um continuador de rotas comerciais, mas como um portador de ruínas, que é a mais profunda vocação dos homens. Anormal nunca o foi. Mas aqueles considerados normais são gente sem desacato, o que vale dizer bons feitios, a cinzenta superfície dos séculos. É dos outros que o mundo recebe inspiração e as suas maiores calamidades também. A paixão das pessoas sofre mil explicações e todos lhe querem dar sentido. Provavelmente não tem nenhum. Pelo que já foi notado que a vida é um insucesso, não importa se breve se extenso.A repercussão que teve Alcácer-Quibir ainda hoje actua como uma espécie de escarificação do insucesso,transformando-o em epifania indispensável ao curso das nossas vidas. A sua actividade fantasmal perdura ainda, como uma espécie de impedimento do regresso da líbido ao inconsciente.

É de admitir o facto de D. Sebastião sofrer de impotência psíquica... O certo é que esse tipo de inibição sexual projeta o indivíduo para uma efabulação não distante da apropriação da divindade. E tão forte é a sua convicção e capacidade de elaborar uma realidade absolutamente infundada, que todos os próximos e coniventes são afectados pela euforia do líder. As mais loucas empresas podem ser autorizadas pelo consenso dos privados e até do povo em geral.A heroicidade fictícia, o arrebatamento da glória, o simples descaro, são a transfiguração duma secreta e imensa humilhação, e a sua consequente compensação neurótica.

Odes...



Lira de ouro, bem comum de Apolo e das Musas de trança violeta: os passos de dança, princípio de júbilo, te escutam, os aedos obedecem ao teu sinal quando pulsas vibrada os primeiros compassos dos prelúdios condutores de coros. Consegues apagar o pontiagudo raio de fogo semprefluente. Sobre o cetro de Zeus adormece a águia, que recolhe de um flanco e de outro suas asas rápidas, rainha dos pássaros. Toldas a sua cabeça em gancho de uma névoa escura, doce claustro das pálpebras; possuídas pelos teus sons ela crispa no sono o dorso flexível. E mesmo o violento Ares rejeitando a rudeza das armas arrefece o coração que dorme. Sábios, os teus dardos aplacam o íntimo da alma dos deuses por arte do filho de Latona e das Musas vestidas de dobras sinuosas.

Meus irmãos em amarmos Epicuro
E o entendermos mais
De acordo com nós-próprios que com ele,
Aprendamos na história
Dos calmos jogadores de xadrez
Como passar a vida.
Tudo o que é sério pouco nos importe,
O grave pouco pese,
O natural impulsa dos instintos
Que ceda ao inútil gozo
(Sob a sombra tranquila do arvoredo)
De jogar um bom jogo.


Ah, todo o cais é uma saudade de pedra!
E quando o navio larga do cais
E se repara de repente que se abriu um espaço
Entre o cais e o navio,
Vem-me, não sei porquê, uma angústia recente,
Uma névoa de sentimentos de tristeza
Que brilha ao sol das minhas angústias relvadas
Como a primeira janela onde a madrugada bate,
E me envolve com uma recordação duma outra pessoa
Que fosse misteriosamente minha.



ODE MARCIAL
Inúmero rio sem água — só gente e coisas
Pavorosamente sem água!
Soam tambores longínquos no meu ouvido,
E eu não sei se vejo o rio se ouço os tambores,
Como se não pudesse ouvir e ver ao mesmo tempo!
Helahoho! helahoho!
A máquina de costura da pobre viúva morta à baioneta
Ela cosia à tarde indeterminadamente...
A mesa onde jogavam os velhos,
(...)
Tudo misturado, tudo misturado com corpos, com sangues,
Tudo um só rio, uma só onda, um só arrastado horror.
Helahoho! helahoho!
Desenterrei o comboio de lata da criança calcado no meio da estrada,
E chorei como todas as mães do mundo sobre o horror da vida.
Os meus pés panteístas tropeçaram na máquina de costura da viúva que mataram à baioneta
E esse pobre instrumento de paz meteu uma lança no meu coração.
Sim, fui eu o culpado de tudo, fui eu o soldado todos eles
Que matou, violou, queimou e quebrou,
Fui eu e a minha vergonha e o meu remorso como uma sombra disforme
Passeiam por todo o mundo como Ashavero,
Mas atrás dos meus passos soam passos do tamanho do infinito
E um pavor físico de encontrar Deus faz-me fechar os olhos de repente.
Cristo absurdo da expiação de todos os crimes e de todas as violências,
A minha cruz está dentro de mim, hirta, a escaldar, a quebrar E tudo dói na minha alma extensa como um Universo.
Arranquei o pobre brinquedo das mãos da criança e bati-lhe,
Os seus olhos assustados do meu filho que talvez terei e que matarão também
Pediram-me sem saber como toda a piedade por todos.
Do quarto da velha arranquei o retrato do filho e rasguei-o,
Ela, cheia de medo, chorou e não fez nada...
Senti de repente que ela era minha mãe e pela espinha abaixo passou-me o sopro de Deus.
Quebrei a máquina de costura da viúva pobre.
Ela chorava a um canto sem pensar na máquina de costura.
Haverá outro mundo onde eu tenha que ter uma filha que enviuve e a quem aconteça isto?
Mandei, capitão, fuzilar os camponeses trémulos,
Deixei violar as filhas de todos os pais atados a árvores,
Agora vi que foi dentro de meu coração que tudo isso se passou,
E tudo escalda e sufoca e eu não me posso mexer sem que tudo seja o mesmo
Deus tenha piedade de mim que a não tive de ninguém!




Then sing, ye Birds, sing, sing a joyous song!
And let the young Lambs bound
As to the tabor's sound!
We in thought will join your throng,
Ye that pipe and ye that play,
Ye that through your hearts to-day
Feel the gladness of the May!
What though the radiance which was once so bright
Be now for ever taken from my sight,
Though nothing can bring back the hour
Of splendour in the grass, of glory in the flower;



We will grieve not, rather find
Strength in what remains behind;
In the primal sympathy
Which having been must ever be;
In the soothing thoughts that spring
Out of human suffering;
In the faith that looks through death,
In years that bring the philosophic mind.


Sempre a indesencorajada alma do homem resoluta indo à luta.
(Os contingentes anteriores falharam?
Pois mandaremos novos contingentes
e outros mais novos.)
Sempre o cerrado mistério
de todas as idades deste mundo
antigas ou recentes;
sempre os ávidos olhos, hurras, palmas
de boas-vindas, o ruidoso aplauso;
sempre a alma insatisfeita,
curiosa e por fim não convencida,
lutando hoje como sempre, batalhando como sempre.

Estão todas as verdades à espera em todas as coisas: não apressam o próprio nascimento nem a ele se opõem, não carecem do fórceps do obstetra, e para mim a menos significante é grande como todas. (Que pode haver de maior ou menor que um toque?) Sermões e lógicas jamais convencem o peso da noite cala bem mais fundo em minha alma. (Só o que se prova a qualquer homem ou mulher, é que é; só o que ninguém pode negar, é que é.) Um minuto e uma gota de mim tranquilizam o meu cérebro: eu acredito que torrões de barro podem vir a ser lâmpadas e amantes, que um manual de manuais é a carne de um homem ou mulher, e que num ápice ou numa flor está o sentimento de um pelo outro, e hão-de ramificar-se ao infinito a começar daí até que essa lição venha a ser de todos, e um e todos nos possam deleitar e nós a eles.

Inutilidades...



Penso em ti no silêncio da noite, quando tudo é nada, E os ruídos que há no silêncio são o próprio silêncio, Então, sozinho de mim, passageiro parado(...) inutilmente penso em ti. Todo o passado, em que foste um momento eterno E como este silêncio de tudo.(...) E é neste sossego absurdo de mim e de tudo que penso em ti.

Repugno a vida real como uma condenação; repugno o sonho como uma libertação ignóbil. Mas vivo o mais sórdido e o mais quotidiano da vida real; e vivo o mais intenso e o mais constante do sonho. Sou como um escravo que se embebeda à sesta — duas misérias em um corpo só. Sim, vejo nitidamente, com a clareza (...) , esta inutilidade trabalhosa de todos os dias iguais, esta repetição pegada das mesmas personagens, como um drama que consiste apenas no cenário, e o cenário estivesse às avessas... E o sonho, a vergonha de fugir para mim, a cobardia de ter como vida aquele lixo da alma que os outros têm só no sono, na figura da morte com que ressonam, na calma com que parecem vegetais progredidos! Não poder ter um gesto nobre que não seja de portas adentro, nem um desejo inútil que não seja deveras inútil! Definiu César toda a figura da ambição quando disse aquelas palavras: «Antes o primeiro na aldeia do que o segundo em Roma!» Eu não sou nada nem na aldeia nem em Roma nenhuma. Ao menos, o merceeiro da esquina é respeitado da Rua da Assunção até à Rua da Vitória; é o César de um quarteirão. Eu superior a ele? Em quê, se o nada não comporta superioridade, nem inferioridade, nem comparação? É César de todo um quarteirão e as mulheres gostam dele condignamente.
E assim arrasto a fazer o que não quero, e a sonhar o que não posso ter, a minha vida, absurda como um relógio público parado. Aquela sensibilidade ténue, mas firme, o sonho longo mas consciente que forma no seu conjunto o meu privilégio de penumbra.


Desde que me convenci da inutilidade de qualquer esforço desinteressado, nunca mais pensei em escrever um livro; limito-me a apontamentos. Inútil por inútil, diminua ao menos a maçada. Estes apontamentos são a respeito da política do futuro. Contêm um plano político. Não serão adoptados na prática, porque a prática não adopta, mas cria. Escrevo-os como se escrevesse um poema - e é esta a única atitude razoável que recomenda o próprio teorista: considere-se poeta, ou, se não, cale-se.

O cansaço de todas as ilusões e de tudo o que há nas ilusões — a perda delas, a inutilidade de as ter, o antecansaço de ter que as ter para perdê-las, a mágoa de as ter tido, a vergonha intelectual de as ter tido sabendo que teriam tal fim. A consciência da inconsciência da vida é o mais antigo imposto à inteligência. Há inteligências inconscientes, brilhos do espírito, correntes do entendimento, mistérios e filosofias que têm o mesmo automatismo que os reflexos corpóreos, que a gestão que o fígado e os rins fazem de suas secreções.

São tão inferiores as criaturas que se dedicam a um ideal! Só são superiores aquelas que não se dedicam a ideal nenhum. O homem verdadeiramente superior é aquele que gostaria de ter ideais. Não os pode ter por ser superior a tê-los. As nações civilizadas que são selvagens, como, por exemplo, a Alemanha. O espírito de colectividade é uma selvajaria. A única constatação real neste mundo é a da existência do sujeito pensante — cogito ergo sum. (...) Acredite você, meu caro: só o inferior é que se esforça. Em baixo está quem se esforça. O superior gostaria de se esforçar mas reconhece a inutilidade do esforço. Toda a superioridade está além e acima do esforço — quer seja inspiração poética, quer seja intuição da acção. O esforço de um grande jogador de xadrez é maior que o de um Napoleão.

Sociologia — a inutilidade das teorias e práticas políticas.

Visto que talvez nem tudo seja falso, que nada, ó meu amor, nos cure do prazer quase-espasmo de mentir. Requinte último! Perversão máxima! A mentira absurda tem todo o encanto do perverso com o último e maior encanto de ser inocente. A perversão de propósito inocente — quem excederá, ó (...) o requinte máximo disto? A perversão que nem aspira a dar-nos gozo, que nem tem a fúria de nos causar dor, que cai para o chão entre o prazer e a dor, inútil e absurda como um brinquedo mal feito com que um adulto quisesse divertir-se! E quando a mentira começar a dar-nos prazer, falemos a verdade para lhe mentirmos. E quando nos causar angústia, paremos, para que o sofrimento nos não signifique nem perversamente prazer...
A sublimidade de desperdiçar uma vida que podia ser útil, de nunca executar uma obra que por força seria bela, de abandonar a meio caminho a estrada certa da vitória!(...) Que santificados do Absurdo os artistas que queimaram uma obra muito bela, daqueles que, podendo fazer uma obra bela, de propósito a fizeram imperfeita, daqueles poetas máximos do Silêncio que, reconhecendo que poderiam fazer obra de todo perfeita, preferiram ousá-la de nunca a fazer. (Se fora imperfeita, vá.)
Por que é bela a arte? Porque é inútil. Por que é feia a vida? Porque é toda fins e propósitos e intenções. Todos os seus caminhos são para ir de um ponto para o outro. Quem nos dera o caminho feito de um lugar donde ninguém parte para um lugar para onde ninguém vai! Quem dera a sua vida a construir uma estrada começada no meio de um campo e indo ter ao meio de um outro; que, prolongada, seria útil, mas que ficava, sublimemente, só o meio de uma estrada.
A beleza das ruínas? O não servirem já para nada.
A doçura do passado? O recordá-lo, porque recordá-lo é torná-lo presente, e ele nem o é, nem o pode ser — o absurdo, meu amor, o absurdo.
E eu que digo isto — por que escrevo eu este livro? Porque o reconheço imperfeito. Calado seria a perfeição; escrito, imperfeiçoa-se; por isso o escrevo. E, sobretudo, porque defendo a inutilidade, o absurdo (...), — eu escrevo este livro para mentir a mim próprio, para trair a minha própria teoria.
E a suprema glória disto tudo, meu amor, é pensar que talvez isto não seja verdade, nem eu o creia verdadeiro.


O que nela começara - apenas mais cedo do que habitualmente acontece - era aquela grande renúncia ...que podemos observar nas vidas que se prolongam até tarde , mesmo entre os amigos unidos pelos laços mais espirituais e que, a partir de um certo ano, deixam de fazer a viagem ou a saída necessária para se verem, deixam de escrever e sabem que não mais se comunicarão neste mundo. A minha tia devia saber perfeitamente que não tornaria a ver Swann, que nunca mais sairia de casa, mas aquela reclusão definitiva devia tornar-se para ela bastante fácil pela mesmo razão pela qual , na nossa opinião, deveria tornar-se mais dolorosa...

Que utilidade pode ter, para quem quer que seja, o simples facto de viajar? Não é isso que modera os prazeres, que refreia os desejos, que reprime a ira, que quebra os excessos das paixões eróticas, que, em suma, arranca os males que povoam a alma. Não faculta o discernimento nem dissipa o erro, apenas detém a atenção momentaneamente pelo atrativo da novidade, como a uma criança que pasma perante algo que nunca viu! Além disso, o contínuo movimento de um lado para o outro acentua a instabilidade (já de si considerável!) do espírito, tornando-o ainda mais inconstante e incapaz de se fixar. Os viajantes abandonam ainda com mais vontade os lugares que tanto desejavam visitar; atravessam-nos voando como aves, vão-se ainda mais depressa do que vieram. Viajar dá-nos a conhecer novas gentes, mostra-nos formações montanhosas desconhecidas, planícies habitualmente não visitadas, ou vales irrigados por nascentes inesgotáveis; proporciona-nos a observação de algum rio de características invulgares, como o Nilo extravasando com as cheias de Verão, o Tigre, que desaparece à nossa vista e faz debaixo de terra parte do seu curso, retomando mais longe o seu abundante caudal, ou ainda o Meandro, tema favorito das lucubrações dos poetas, contorcendo-se em incontáveis sinuosidades, fazendo incessantemente ainda mais um circuito antes de enfim descansar no leito de que se aproxima. Mas viajar não torna ninguém melhor de carácter nem mais são de espírito... Enquanto ignorares a distinção entre o evitável e o desejável, o necessário e o supérfluo, o justo e o injusto, o moral e o imoral — nunca serás um viajante, mas apenas um ser à deriva. As tuas deambulações não te trarão qualquer proveito, já que viajas na companhia das tuas paixões, seguido sempre pelos males que te dominam. E bom era que estes males apenas te seguissem! Bom era que eles estivessem longe de ti! O que se passa, porém, é que os levas em cima, e não atrás de ti. Deste modo, onde quer que estejas, eles oprimem-te, destroem-te com a mesma virulência. Um doente precisa que se lhe indique um remédio, não um panorama. Se um homem parte uma perna ou faz uma entorse não vai pôr-se a passear de carro ou de barco: manda, sim, é chamar um médico que lhe ligue o membro partido ou ponha no seu lugar o osso deslocado. Ora bem: acaso pensas tu que uma alma quebrada ou torcida em tantos lugares pode tratar-se com uma simples mudança de ambiente? Não, esta doença é demasiado grave para curar-se com um passeio! A formação de um médico ou de um orador não se faz em viagem; a aprendizagem de qualquer arte não depende da geografia. Como pensar que a sabedoria, a mais importante das artes, se pode adquirir saltando daqui para acolá?! Podes crer que nenhuma viagem te põe ao abrigo do desejo, da ira, do medo; se tal fosse o caso, todo o género humano começaria em massa a viajar. Estes males não cessarão de atormentar-te, de desgastar-te ao longo das tuas viagens, terrestres ou marítimas, enquanto tiveres em ti as suas causas. Admiras-te que de nada valha fugir quando tens dentro de ti aquilo de que foges?

Coisas de nada, naturais da vida, insignificâncias do usual e do reles, poeira que sublinha com um traço apagado e grotesco a sordidez e a vileza da minha vida humana. Escrevo sorrindo com as palavras, mas o meu coração está como se se pudesse partir, partir como as coisas que se quebram, em fragmentos, em cacos, em lixo, que o caixote leva num gesto de por cima dos ombros para o carro, eterno de todas as Câmaras Municipais.E tudo espera, aberto e decorado, o Rei que virá, e já chega, que a poeira do cortejo é uma nova névoa no oriente lento, e as lanças luzem já na distância com uma madrugada sua. A Viagem na Cabeça. Do meu quarto andar sobre o infinito, no plausível íntimo da tarde que acontece, à janela para o começo das estrelas, meus sonhos vão por acordo de ritmo com distância exposta para as viagens aos países incógnitos, ou supostos ou somente impossíveis.

Mas jura que ,se tiver de ser, ao menos que valha a pena...

Gostaria de avaliar a sua taxa de suportar contrariedades, mas, enquanto não faz os testes, decidiu que se demite de manifestar qualquer opinião.Talvez o silêncio seja uma solução... Regressou ao autismo, consciente de que tudo o que possa pensar,sentir e dizer é absolutamente irrelevante...Nada vale a pena. Seres debilitados e tristonhos desencadeiam impaciência e energias negativas ... Anda demasiado fragilizada para conseguir ser, aceitavelmente, interessante. Talvez tenha atingido o seu limite...Um aparelho para determinar os limites da sustentabiblidade do seu equilíbrio psíquico vinha mesmo a propósito: urge calcular a sua capacidade de resistir à hostilidade psicológica, ao desamor, à indiferença... Sabe-se que a alcoolémia é X, o colesterol Y, o índice de massa corporal é Z, a tensão arterial é... Todos estes medidores lhe atormentam a existência , com limites inultrapassáveis, que a desconfortam, mas conhece os limites e os riscos que corre...A inexistência de uma taxa de sustentabilidade afetiva é uma imperfeição imperdoável...

Qual será o eu que ela perceciona frágil e magoado? O real ou o virtual? O mundo virtual possibilitou- lhe que a a sua tendência para a multiplicação de eus se acentuasse. Apeteceu-lhe pensar em implicações desta constatação,de uma obviedade mais do que evidente... Em que medida o eu virtual coincide com o autêntico? O que é o eu autêntico? O eu, que todos os dias se constrói e destrói, é o que é ou o que outro percepciona?
É o que o outro quer que ela seja? É o que outro espera de si? Talvez tenha encontrado uma definição viável de amor... Amar é sentir disponibilidade interior para se identificar com o eu que o outro idealizou. Amar implica sempre um movimento de aproximação, não relativamente a um tu,como erradamente se soe pensar, mas de aproximação ao eu que o tu idealizou. A velocidade desse movimento é, afinal, um medidor da intensidade do amor:a paixão será uma corrida desenfreada em direção ao" teu eu de mim."


Estar é melhor do que não estar.Se valer a pena...

Eu hoje estou cruel, frenético, exigente; Nem posso tolerar os livros mais bizarros. Incrível! Já fumei três maços de cigarros Consecutivamente. Dói-me a cabeça. (...) Amo, insensatamente, os ácidos, os gumes E os ângulos agudos.

Era, afinal, feliz, mas não o sabia. Ela não é uma sabiá...
O derradeiro mistério somos nós próprios. Depois de termos pesado o Sol e medido os passos da Lua e delineado minuciosamente os sete céus, estrela a estrela, restamos ainda nós próprios. Quem poderá calcular a órbita da sua própria alma?

A ciência pode classificar e nomear os órgãos de um sabiá
mas não pode medir seus encantos.
A ciência não pode calcular quantos cavalos de força existem
nos encantos de um sabiá.
Quem acumula muita informação perde o condão de adivinhar: divinare.
Os sabiás divinam.


Vou voltar Sei que ainda vou voltar Para o meu lugar Foi lá e é ainda lá Que eu hei de ouvir cantar Uma sabiá Vou voltar Sei que ainda vou voltar E é pra ficar Sei que o amor existe...

Three inches above the floor Man in a box wants to burn my soul And I'm tired, and I'm tired Is that the truth, he says The pain is easy Too many words, too many words...

So Im trying to put it right Cause I want to love you with my heart All this trying has made me tight And I dont know even where to start Maybe thats a start Cause you know its a simple game That you play filling up your head with rain And you know you are hiding from your pain In the way, in the way you say your name...

Quando se tornara já insuportável - uma vez ao final do dia,em Novembro - e eu percorria o tapete estreito do meu quarto como se estivesse numa pista de corridas e assustado com a visão da rua iluminada me voltei a virar para encontrar um novo objetivo no fundo do espelho no lado oposto do quarto, e gritei só para ouvir o grito para o qual não há resposta nem nada capaz de lhe retirar a força e que por isso sobe,sem contrapeso, e não consegue parar mesmo depois de se calar,foi nessa altura que se abriu a parede na porta,tão rapidamente,porque a rapidez era necessária,que até os cavalos das carruagens lá em baixo na claçada se levantaram como cavalos numa batalha,enlouquecidos,as goelas soltas.

Vê-se mesmo que nunca falou com fantasmas. Nunca conseguimos obter deles uma informação clara.É um ir e vir. Estes fantasmas parecem ter mais dúvidas em relação à sua existência do que nós, o que não admira tendo em conta a sua fragilidade.

Os jovens muito dotados com um sentido de raça, de apologia da sua própria história física e moral, conhecem um orgulho assim. Quando atingem a idade da reflexão, são esses que dizem como Telémaco: «O que falta à minha felicidade é saber usar dela com parcimónia». Mas Eric não reflete muito profundamente. Vive em guerra, e as guerras proporcionam oráculos, mas não sábios. O que há de extraordinário nesta obra de Yourcenar é a qualidade fáustica dum Werther. A magnitude da alma que tudo sacrifica à sua liberdade. Werther, se influenciou uma geração, foi porque personificou algo diferente dum Romeu. Não se suicida por amor duma mulher, mas para não quebrar o pacto com a sua própria idealidade. A paixão corrompe a condição interrogadora do homem fáustico e o seu trajeto aventuroso. Por isso, mata -se.

Todo o processo de uma obsessão amorosa é genialmente descrito. Yourcenar compara o amor de Sophie por Eric com «uma doença nervosa que cada dia apresenta novos sintomas». Provavelmente trata -se mesmo de uma doença nervosa, na medida em que a libido está ainda submetida a uma forma de repressão, que é o respeito pelo objeto. O facto de Sophie situar em Eric von Lhomond a sua vocação erótica não quer dizer que ele seja o real móbil do seu desejo. Para as mulheres, só elas próprias têm importância, e qualquer outra escolha não passa, aos seus olhos, de uma loucura crónica ou de uma aberração passageira.

Sophie torna -se franca com Eric porque, depois de uma experiência entre humilhante e perversa, ele aparece como alguém cuja intimidade é um refúgio, uma caução para a normalidade. Mas no amor não há normalidade. Ela aspira a Eric, mas é habitada por uma paixão absurda...
A mulher é um ser sem causa. Não projeta,na história das coisas; tem, como as crianças, uma desafetação de domínio, e por isso a sua alma é vaga.. É a pretensão do domínio que faz a realidade da alma, que faz com que ela se projete sobre tudo o que não é ela própria. O que na mulher aparece como ausência de alma é esse desemprego da vontade de poder. Enquanto Eric personifica a vontade fáustica, empenhamento na distância, com todas as suas exigências de liberdade e de solidão, Sophie cria toda uma mitologia do querer que começa e acaba no homem. A isso ela chama amor; mas é antes uma espécie de fixação a uma realidade atual, espaço imaginário que escapa à investigação crítica; sobretudo quando dois mundos formais se opõem tão categoricamente.

Aos dezasseis anos, uma jovem que despreza os rapazes dá que pensar. É o tipo de rapariga com personalidade que desencadeia uma espécie de irritação polida mas persistente. A mulher, como o escravo na antiguidade, não tem uma atitude significativa na vida pública, pertence a um espaço demarcado do ideal da realidade. O conceito de vida interior não existia para um grego, mas sim a ideia de vida plástica. Cada um era objeto do acontecer exterior a ele próprio. Esse conceito perdura ainda quanto à mulher. Não é deprimente, mas sim singularmente desencontrado do princípio da vontade que é o conteúdo da vida do homem contemporâneo. Ele assumiu o carácter. A mulher continua, ou assim era na época em que Yourcenar escreveu O Golpe de Misericórdia, ausente da relação com os factos, condicionada a uma estática psíquica. Enquanto permanece objeto da vida exterior, o homem é sujeito dessa mesma vida. Daí o seu mal -estar e a luta para superar o momento do acontecer, em vez de o aperfeiçoar, conforme o conceito do próprio homem da antiguidade.
Ela desprezava os rapazes e lia muito. De facto, era decerto devorada por uma sede ardente dessas confidências, desses prazeres sem desastre e sem culpa que tão bem exprimem o primeiro élan da idade de oiro. Entre Eric e Sophie passa sempre esse irmão que, no silêncio dos grandes vazios da paixão, ambos se disputam. Como um pedaço da infância, com os seus sortilégios e as suas loucas visões, que contribuem para que o futuro seja um «insuportável monólogo de amor».
Toda a troca de palavras entre Eric e Sophie resulta desconcertante. Para criaturas tão ilimitadas, tão ambiciosas do seu retrato psicológico, o diálogo que travam é superficial; ultrapassaram o desespero da comunicação, e apenas desejam acampar solitariamente, partir cada um para as suas desconhecidas ribeiras, os seus perigos próprios, a sua emigração ideal.
Ela só encontra, para lhe responder, uma náusea vulgar e decorada nos livros em que a realidade é uma forma de simplificar as perceções. Que lhes sucedeu? O amor de Sophie abandonou-a como uma febre que deixa apenas um resto de melancolia igual a uma falta de glóbulos vermelhos. Nesse momento dá -se a sua passagem do tempo apolíneo ao tempo da vontade de poder. Veste -se de homem e, naturalmente, toma a mente dum homem. É um drama imperfeito, porque de facto ninguém lamenta nada; tudo é tão inevitável que se confunde com a necessidade.

Diz Yourcenar, no prefácio da edição de 1962: «Eric e Sophie parecem -se um com o outro, sobretudo pela intransigência e pelo seu gosto apaixonado de irem até ao extremo de si próprios.»

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