Não é neccessário vivermos ao lado de alguém para nos sentirmos ligados a esse alguém mais do que a qualquer outra pessoa...

quarta-feira, 17 de janeiro de 2018

( Des) ilusões e utopias...

Eu estava recém-separada e com aquele discurso cafona de de não morar junto nunca mais. Mas aí você começou a jogar sujo, e fez coisas terríveis e imperdoáveis, como brincar com o meu filho e saber o número do meu pé. E eu fui estudando desesperadamente para descobrir os seus defeitos, porque não era possível alguém acordar bem-humorado e ainda por cima fazer cappuccino com aquela espuma profissional. E assim eu fui ficando… uma semana, um mês, sete anos. E assim estou, sem planos de ir embora.

Ser companheira dos meus medos e dar a mão a eles foi a coisa mais bonita que me aconteceu. Também decidi que não quero saber de gente bem resolvida. E que nunca mais vou planejar assassinar ninguém que tenha fechado um cruzamento no trânsito. O homem é projeto. E a informação a respeito de si é puro ouro.

E de repente, tudo mudou. Não, não foi de repente. Foi aos poucos. Foi indo, ficando longe, sendo de outro jeito. Talvez também não tenha sido tudo, mas só você, que foi deixando de ser você — você, no caso, eu — apesar do nome mantido e daquela amiga da vida toda. Mas não era esse o combinado, sair de si e começar de novo, e sempre, como uma boneca russa, uma dentro da outra? E por que eu não percebi logo? Como uma criança que se vê crescer todos os dias e não se percebe a enorme diferença que cada par de meses pode fazer no córtex de cérebro tão pequeno, eu também não vi a garota indo embora, e em seguida a filha. Eu só vi que tava estranho.
E não foram dois meses. Foram 40 anos. Atari, PUC, filho, separação, casamento, despedidas, 7 a 1. Vim vindo como em um videogame cujas fases se sucederam sem que eu me desse conta, e agora não dá pra voltar. Prazer, você virou outra pessoa. Maldito Freud.


«Entristecem-me as belezas que não atravessam o oceano. Entristece-me que a maioria dos brasileiros não conheça Sérgio Godinho, Ricardo Araújo Pereira, Adília Lopes, alheiras ou peixinhos da horta. Imagina que existência triste a de um sujeito que nunca comeu peixinhos da horta. Na mesma medida, entristece-me que Portugal ainda não conheça Maria Ribeiro. Maria faz o Brasil rir alto — semanalmente — daquele jeito que a gente só ri com amigo de infância. Ler a Maria é ganhar uma amiga de infância. Maria escreve como quem conversa, e conversa como ninguém. Este livro que você tem em mãos foi um baita sucesso num país em que livros não costumam fazer um baita sucesso. Agora você não tem mais desculpas. Maria atravessou o oceano. Isto há de ser um baita sucesso.» — Gregorio Duvivier

The deconstruction has begun Time for me to fall apart And if you think that it was rough I tell you nothing changes Till you start to break it down And break apart... The reconstruction will begin Only when there's nothing left But little pieces on the floor That made of what I was Before I had to break it down


Talvez desilusão seja o medo de não pertencer...

"O meu orgulho lapidado por cegos e a minha desilusão pisada por mendigos." - Bernardo Soares
"Prefiro um enfarte do que a desilusão do Benfica perder" - Ricardo Araújo Pereira

Meu coração é um enorme estrado
Onde se expõe um pequeno animálculo...
A microscópio de desilusões
Findei, prolixo nas minúcias fúteis...
Minhas conclusões práticas, inúteis...
Minhas conclusões teóricas, confusões...
Que teorias há para quem sente
O cérebro quebrar-se, como um dente
Dum pente de mendigo que emigrou?
Fecho o caderno dos apontamentos
E faço riscos moles e cinzentos
Nas costas do envelope do que sou...


Quando te der saudade de mim Quando tua garganta apertar Basta dar um suspiro Que eu vou ligeiro Te consolar

E quando o nosso tempo passar Quando eu não estiver mais aqui Lembra-te Desta cantiga Que fiz pra ti


Desilusão, desilusão Danço eu dança você Na dança da solidão...

Toda a noite, e pelas horas fora, o chiar da chuva baixou. Toda a noite, comigo entredesperto, a monotonia fria me insistiu nos vidros. Ora um rasgo de vento, em ar mais alto, açoitava, e a água ondeava de som e passava mãos rápidas pela vidraça; ora com som surdo só fazia sono no exterior morto. A minha alma era a mesma de sempre, entre lençóis como entre gente, dolorosamente consciente do mundo. Tardava o dia como a felicidade — àquela hora parecia que também indefinidamente. Se o dia e a felicidade nunca viessem! Se esperar, ao menos, pudesse nem sequer ter a desilusão de conseguir.(...)
Nas paredes escuramente visíveis do meu quarto, se eu abria os olhos do sono falso, boiavam fragmentos de sonhos por fazer, vagas luzes, riscos pretos, coisas de nada que trepavam e desciam. Os móveis, maiores do que de dia, manchavam vagamente o absurdo da treva. A porta era indicada por qualquer coisa nem mais branca, nem mais preta do que a noite, mas diferente. Quanto à janela (eu só) a ouvia.
Nova, fluida, incerta, a chuva soava. Os momentos tardavam ao som dela. A solidão da minha alma alargava-se, alastrava, invadia o que eu sentia, o que eu queria, o que eu ia a sonhar. Os objectos vagos, participantes, na sombra, da minha insónia, passavam a ter lugar e dor na minha desolação.


E uma desilusão. Mas desilusão de quê? Se, sem ao menos sentir, eu mal devia estar tolerando minha organização apenas construída? Talvez desilusão seja o medo de não pertencer mais a um sistema. No entanto, se deveria dizer assim: ele está muito feliz porque finalmente foi desiludido. O que eu era antes não me era bom. Mas era desse não-bom que eu havia organizado o melhor: a esperança. De meu próprio mal eu havia criado um bem futuro. O medo agora é que meu novo modo não faça sentido? Mas por que não me deixo guiar pelo que for acontecendo? Terei que correr o sagrado risco do acaso. E substituirei o destino pela probabilidade.

A miséria da minha condição não é estorvada por estas palavras conjugadas, com que formo, pouco a pouco, o meu livro casual e meditado. Sobrevivo nulo no fundo de toda a expressão, como um pó indissolúvel no fundo do copo de onde se bebeu só água. Escrevo a minha literatura como escrevo os meus lançamentos — com cuidado e indiferença. Ante o vasto céu estrelado e o enigma de muitas almas, a noite do abismo incógnito e o choro de nada se compreender — ante tudo isto ó que escrevo no caixa auxiliar e o que escrevo neste papel da alma são coisas igualmente restritas à Rua dos Douradores, muito pouco aos grandes espaços milionários do universo.
Tudo isto é sonho e fantasmagoria, e pouco vale que o sonho seja lançamentos como prosa de bom porte. Que serve sonhar com princesas mais que sonhar com a porta da entrada do escritório? Tudo o que sabemos é uma impressão nossa, e tudo o que somos e uma impressão alheia, melodrama de nós, que, sentindo-nos, nos constituímos nossos próprios espectadores activos, nossos deuses por licença da Câmara.




Eu a obedecer e tu a mandar Os dois na mesma triste peça Os dois à espera do fim

O vocábulo utopia é usado, pela primeira vez, por thomas more, para designar uma ilha imaginária. Título de uma obra, escrita em latim, por volta de 1516, que preconiza o ideal de viver feliz em lugar-nenhum, numa cidade de sonhos e nuvens, com um castelo no ar, banhada por um rio sem água , habitada por cidadãos sem cidade, governada por aqueles que não têm povo, tendo como vizinhos homens sem país...

Podemos pensar num olhar utópico de uma forma um pouco distinta, como sendo um olhar que não se localiza nem no espaço, nem no tempo. Um olhar que não conseguimos identificar completamente: onde está quem observa isto? Observador utópico pode ser uma categoria relativa às condições do observador e não relativa àquilo que ele vê ou tenta criar.
É interessante pensar que há utopias que partem de um olhar para o passado e não para um futuro ideal. A ideia da época de ouro e a ideia de que nós seríamos o resultado da decadência de uma anterior espécie humana extraordinária são bons exemplos disso. Talvez estas utopias, indiferentes àquilo que aí vem, sejam as mais perigosas — as que só vêem o belo e forte naquilo que desapareceu e que nunca mais poderá ressuscitar. É aquilo a que se poderia chamar de utopistas-de-nuca: para trás está a solução.
500 anos depois, o sentido de Utopia não se perdeu - A literatura cria espaços que não existem, mas também inventa e cria acontecimentos. A ficção talvez tenha por natureza um instinto utópico — é a definição de alternativas à realidade, mesmo que estas não sejam muito solares ou alegres. A ficção diz: poderia ter acontecido isto ou aquilo. São hipóteses, possibilidades, alternativas em relação a uma realidade que não satisfaz, que não é suficiente.
A imaginação, a capacidade de produzir imagens mentais de coisas que não estão imediatamente à frente dos olhos, é uma capacidade humana invulgar que, infelizmente, muitas vezes é desvalorizada, e quase atacada, no processo educativo. Aliás, as frases: "— está atento!, tens a cabeça na lua!, etc." são expressões repressivas que mostram como a escola está constantemente a dizer: não imagines, vê! Como se aquilo que é mostrado fosse sempre mais importante e relevante do que aquilo que é imaginado. Uma escola paralela, quase utópica também, seria aquela em que os professores por vezes diriam: hoje não estás suficientemente na lua!, ou: não estejas tão atento, colado, ao que te estou a mostrar! Ou, dizendo de uma forma não tão extrema, mais realista: a escola deveria dar a ver, dar a conhecer, apenas aquilo que potencie a imaginação. Vou mostrar-te algo que te permitirá mais tarde imaginares muitas outras coisas. Imagens que alimentem a imaginação e não que a diminuam. Substituir definições por imaginações — este podia ser um lema; contestável, claro, mas que permitiria, talvez, uma discussão e uma deslocação do espaço mental do ensino.

O progresso tecnológico e as utopias estão sempre muito ligados, quando se fala de ficção científica. As utopias políticas, por outro lado, muitas vezes estiveram associadas à ideia de uma mudança do homem, e não apenas a uma mudança da paisagem que rodeia o homem. Mudar de vida, mudar o que é característico do humano ou mudar de máquinas. São utopias bem diferentes, estas. Algumas utopias bem antigas, religiosas, por exemplo, estão nesse aspecto muito mais centradas na acção humana. A ideia de mudar a posição do coração, no sentido de alterar os instintos humanos, de transferir o homem da agressividade para a compaixão, é uma utopia antiquíssima que podemos ler, por exemplo, em textos cristãos e outros. Talvez um ponto de pobreza actual, neste início do século XXI, seja a fixação em utopias que apenas mudam de máquinas.
A tecnologia tem vindo a instalar novas utopias que passam muitas vezes pela questão de o homem querer viver cada vez mais tempo. Não é bem a imortalidade, o elixir da longa vida, que se perseguia e fantasiava noutros séculos, mas é algo próximo. E é interessante ver que o centro destas utopias é viver mais tempo, mais! — e não viver de forma diferente. O que me parece forte em algumas utopias sociais ou artísticas do século XX é que o centro da utopia não era viver mais tempo, era viver de forma diferente.

Quando o essencial das utopias humanas passa pela tecnologia talvez algo esteja em queda. É uma utopia desanimada, a que quer mudar a paisagem, natural ou técnica, e já desistiu de mudar o humano.


O reino que idealizei foi um utópico ponto de encontro... Tenho saudades desse espaço sem espaço: lá tinha reaprendido a sorrir e a ser... Toda a utopia é uma desimpossibilidade...A palavra foi criada a partir dos radicais gregos οὐ, "não", e τόπος, "lugar", portanto, etimologicamente, a utopia é o "não-lugar" ou " o lugar que não existe". Pensar um ser que não existe em nenhum espaço é uma forma de utopia...
O meu sebastianismo, sendo falso, dentro do fingimento fantasioso em que a minha mente é exímia, é profundamente autêntico. Gosto do mito, gosta de acreditar em d.sebastião, "quer ele venha quer não", gosta de utopiar. Quando olho o longe da varanda da sala, um ritual que cumpro religiosamente sempre que me levanta, e vislumbra o nada, fico fascinada com essa mancha compacta de ... Não faço ideia nem me interessa saber o que é o nevoeiro, basta-me saber que é, que existe...Sou egocêntrica e só escreve sobre mim... Mesmo quando falo de um tu, esse tu é uma projeção do meu eu ou eu sou uma projeção desse tu. Quando lleio certos textos , quando olho a beleza , quando me sinto existir só espiritualmente, quando su invadida por uma emoção particularmente intensa,"Desejava ser dois para me poder comunicar, transmitir esse deleite." Quando a solidão interior se agudiza, gostaria de ter um outro eu capaz de me ser...Outrar-se, ser o eu que fala e o eu que escuta...Quando me surpreendo como um ser interiormente bonito,lamento que ninguém o anseie conhecer...Ao contrário de tertuliano, gostaria de ser duplicada..
( Utopias privativas: organizar tudo de modo perfeito; ler tudo o que merece ser lido; recordar tudo o que li; pensar tudo o que é pensável; conciliar castidade com sensualidade; beber e nunca ultrapassar a fase em que o álcool me transporta para um paraíso, mesmo que artificial; comer o que me apetece e não engordar; nunca sentir dor...Os meus refúgios são, afinal,remédio para a desimpossibilidade das utopias...)

O não sentir desejo é um subterfúgio do desejo que se sente, mas que não se quer sentir porque, sentindo-o, sem nunca o concretizar, ele passa a ser não um subterfúgio, mas uma utopia que desencadeia uma frustração inaceitável.

De optimo reipublicae statu deque nova insula Utopia

Está ilha forma naturalmente uma península que foi conquistada pelo rei Utopos, que acabou dando nome à ilha, que anteriormente era conhecida como Abraxa, e que hoje […] talvez seja a nação mais civilizada do mundo.

Cada casa tem uma porta principal que dá para a rua, e uma porta dos fundos que dá para o jardim. Nenhuma dessas portas é fechada a chave, abrindo-se a um simples toque e fechando automaticamente após a saída de alguém. Assim, todos podem entrar e sair, pois ali inexiste a propriedade privada (Que falta de privacidade...)

É fácil confessar que muitíssimas coisas há na terra da Utopia que gostaria de ver implantadas nas nossas cidades, em toda a verdade e não apenas em expectativa.


Eu chamo-me Teodoro — e fui amanuense do Ministério do Reino. Nesse tempo vivia eu à Travessa da Conceição nº 106, na casa de hóspedes da D. Augusta, a esplêndida D. Augusta, viúva do major Marques. Tinha dois companheiros: o Cabrita, empregado na Administração do Bairro Central, esguio e amarelo como uma tocha de enterro; e o possante, o exuberante tenente Couceiro, grande tocador de viola francesa. A minha existência era bem equilibrada e suave.

«No fundo da China existe um mandarim mais rico que todos os reis de que a fábula ou a história contam. Dele nada conheces, nem o nome, nem o semblante, nem a seda de que se veste. Para que tu herdes os seus cabedais infindáveis, basta que toques essa campainha, posta a teu lado, sobre um livro. Ele soltará apenas um suspiro, nesses confins da Mongólia. Será então um cadáver: e tu verás a teus pés mais ouro do que pode sonhar a ambição de um avaro. Tu, que me lês e és um homem mortal, tocarás tu a campainha?»

Uma influência sobrenatural apoderandose de mim, arrebatava-me devagar para fora da realidade, do raciocínio: e no meu espírito foram-se formando duas visões — de um lado um mandarim decrépito, morrendo sem dor, longe, num quiosque chinês, a um ti-li-tim de campainha; do outro toda uma montanha de ouro cintilando aos meus pés! Isto era tão nítido, que eu via os olhos oblíquos do velho personagem embaciarem-se, como cobertos de uma ténue camada de pó; e sentia o fino tinir de libras rolando juntas. E imóvel, arrepiado, cravava os olhos ardentes na campainha, pousada pacatamente diante de mim sobre um dicionário francês — a campainha prevista, citada no mirífico in-fólio...

Pouco a pouco fui esquecendo o meu episódio fantasmagórico: e ao mesmo tempo, como gradualmente o meu espírito resserenava, voltaram de novo a mover-se as antigas ambições que lá habitavam — um ordenado de diretor-geral, um seio amoroso de Lola, bifes mais tenros que os da D. Augusta.

E a vós, homens, lego-vos apenas, sem comentários, estas palavras: «Só sabe bem o pão que dia a dia ganham as nossas mãos: nunca mates o Mandarim!»
E todavia, ao expirar, consola-me prodigiosamente esta ideia: que do norte ao sul e do oeste a leste, desde a Grande Muralha da Tartária até às ondas do mar Amarelo, em todo o vasto Império da China, nenhum mandarim ficaria vivo, se tu, tão facilmente como eu, o pudesses suprimir e herdar-lhe os milhões, ó leitor, criatura improvisada por Deus, obra má de má argila, meu semelhante e meu irmão!


Jurou não se deixar deter, por nenhuma dificuldade do caminho ou pela preocupação com a volta, na continuação da caminhada: afinal, para poder ser arrastado em frente, as suas energias sem dúvida bastariam. Pois o caminho podia não ter fim? Durante o dia o castelo apresentava -se diante dele como um alvo fácil, e o mensageiro certamente conhecia a rota mais curta.

O castelo, cujos contornos já principiavam a desvanecer -se, permanecia silencioso como sempre, nunca ainda K. tinha visto o menor sinal de vida nele, talvez não fosse possível reconhecer alguma coisa daquela distância e no entanto os olhos exigiam isso e não queriam suportar a quietude. Quando K. fitava o castelo, às vezes era como se observasse alguém que estivesse calmamente sentado ali e dirigisse o olhar para a frente, não porventura perdido nos próprios pensamentos e com isso fechado a tudo, mas sim livre e despreocupado: como se estivesse sozinho e ninguém o observasse. Tinha no entanto de notar que era observado, sem que isso afetasse o mínimo que fosse a sua tranqüilidade; na realidade – não se sabia se era a causa ou a consequência, os olhares do observador não se podiam fixar e desviavam -se. Essa impressão estava hoje mais reforçada pela escuridão prematura: quanto mais ele fitava tanto menos reconhecia, tanto mais fundo tudo mergulhava no crepúsculo.

Alguns livros funcionam como uma chave para as salas desconhecidas do nosso próprio castelo.

Já deu para compreender que Sísifo é o herói absurdo. Ele é-o tanto pelas suas paixões como pelo seu tormento. O desprezo pelos deuses, o ódio à Morte e a paixão pela vida valeram -lhe esse suplício indescritível em que todo o ser se ocupa em não completar nada. É o preço a pagar pelas paixões deste mundo. Nada nos foi dito sobre Sísifo nos infernos. Os mitos são feitos para que a imaginação os anime. Neste caso, vê-se apenas todo o esforço de um corpo estirado para levantar a pedra enorme, rolá-la e fazê-la subir uma encosta, tarefa cem vezes recomeçada. Vê-se o rosto crispado, a face colada à pedra, o socorro de uma espádua que
recebe a massa recoberta de barro, e de um pé que a escora, a repetição na base do braço, a segurança toda humana de duas mãos cheias de terra. Ao final desse esforço imenso, medido pelo espaço sem céu e pelo tempo sem profundidade, o objetivo é atingido. Sísifo, então, vê a pedra desabar em alguns instantes para esse mundo inferior de onde será preciso reerguê-la até os cimos. E desce de novo para a planície.


Deixo Sísifo no sopé da montanha! Encontramos sempre o nosso fardo. Mas Sísifo ensina a fidelidade superior que nega os deuses e levanta os rochedos. Ele também julga que tudo está bem. Esse universo enfim sem dono não lhe parece estéril nem fútil. Cada grão dessa pedra, cada estilhaço mineral dessa montanha cheia de noite, forma por si só um mundo. A própria luta para atingir os píncaros basta para encher um coração de homem. É preciso imaginar Sísifo feliz.

A utopia: imaginar Sísifo feliz...


Uma utopia é mais ou menos o equivalente de uma possibilidade; o facto de uma possibilidade não ser uma realidade significa apenas que as circunstâncias com as quais a primeira está articulada num determinado momento a impedem de ser a segunda, porque de outra forma ela mais não seria do que uma impossibilidade. Se essa possibilidade for liberta das suas dependências e puder desenvolver-se, nasce a utopia. É um processo semelhante àquele que se verifica quando um investigador observa a transformação de um elemento num composto para daí tirar as suas conclusões. A utopia é a experiência na qual se observam a possibilidade de transformação de um elemento e os efeitos que ela provocaria naquele fenómeno composto a que chamamos vida.


E no dia seguinte lá fui, depois das aulas, ter com a minha avó. Ela disse-me para me sentar, fez um gesto com a mão engelhada em direção ao sofá das riscas. Sento-me sempre nessas riscas, sempre que a visito. Ela também se sentou com a sua lentidão e um vestido florido. Passou as mãos pelo cabelo, ajeitou a voz e os óculos. Por vezes a voz dela fica um pouco amarrotada, quando se senta, quando acaba de fazer um esforço. Explicou-me – enquanto eu mastigava um bolo – que eu já era um homenzinho e que começava a ter responsabilidades. Estava na altura de saber a verdade. As palavras dela vinham cheias de cabelos brancos, podia sentir que havia nelas muita vida vivida. (…)

Há inúmeros lugares onde um ser humano se pode perder, mas não há nenhum tão complexo como uma biblioteca. Mesmo um livro solitário é um local capaz de nos fazer errar, capaz de nos fazer perder. Era nisto que eu pensava enquanto me sentava no sótão entre tantos livros.

Basta eu acordar, que não posso escapar deste lugar que Proust [A recuperação do corpo no processo do acordar é um tema recorrente na obra de Marcel Proust], docemente, ansiosamente, ocupa uma vez mais em cada despertar. Não que me prenda ao lugar – porque depois de tudo eu posso não apenas mexer, andar por aí, mas posso movimentá-lo, removê-lo, mudá-lo de lugar –, mas somente por isso: não me posso me deslocar sem ele. Não posso deixá-lo onde está para ir a outro lugar. Posso ir até o fim do mundo, posso-me esconder, de manhã, debaixo das cobertas, encolher o máximo possível, posso deixar-me queimar ao sol na praia, mas o corpo sempre estará onde eu estou. Ele está aqui, irreparavelmente, nunca em outro lugar. Meu corpo é o contrário de uma utopia, é o que nunca está sob outro céu, é o lugar absoluto, o pequeno fragmento de espaço com o qual, em sentido estrito, eu me corporizo.
O meu corpo, uma topia desapiedada. E se, por ventura, eu vivesse com ele em uma espécie de familiaridade gasta, como com uma sombra, como com essas coisas de todos os dias que finalmente deixei de ver e que a vida passou para segundo plano, como essas chaminés, esses telhados que se amontoam cada tarde diante da minha janela? Mas, todas as manhãs, a mesma ferida; sob os meus olhos se desenha a inevitável imagem que o espelho impõe: rosto magro, costas curvadas, olhos míopes, careca, nada lindo, na verdade. O meu corpo é uma jaula desagradável, na qual terei que me mostrar e passear. É através das suas grades que eu vou falar, olhar, ser visto. O meu corpo é o lugar irremediável a que estou condenado.
Depois de tudo, creio que é contra ele e como que para apagá-lo, que nasceram todas as utopias. A que se deve o prestígio da utopia, da beleza, da maravilha da utopia? A utopia é um lugar fora de todos os lugares, mas é um lugar onde terei um corpo sem corpo, um corpo que será belo, límpido, transparente, luminoso, veloz, colossal na sua potência, infinito na sua duração, desligado, invisível, protegido, sempre transfigurado; e é bem possível que a utopia primeira, aquela que é a mais inextirpável no coração dos homens, seja precisamente a utopia de um corpo incorpóreo. O país das fadas, dos duendes, dos génios, dos magos, e bem, é o país onde os corpos se transportam à velocidade da luz, onde as feridas se curam imediatamente, onde caímos de uma montanha sem nos aleijarmos, onde se é visível quando se quer e invisível quando se deseja. Se há um país mágico é realmente para que nele eu seja um príncipe encantado...
Mas há ainda outra utopia dedicada a desfazer os corpos. Essa utopia é o país dos mortos, são as grandes cidades utópicas deixadas pela civilização egípcia. Mas, o que são as múmias? São a utopia do corpo negado e transfigurado. As múmias são o grande corpo utópico que persiste através do tempo. Há as pinturas e esculturas dos túmulos; as estátuas, que, desde a Idade Média, prolongam uma juventude que não terá fim. Atualmente, existem esses simples cubos de mármore, corpos geometrizados pela pedra, figuras regulares e brancas sobre o grande quadro negro dos cemitérios. E nessa cidade de utopia dos mortos, eis aqui que meu corpo se torna sólido como uma coisa, eterno como um deus.
Mas, talvez, a mais obstinada, a mais poderosa dessas utopias através das quais apagamos a triste topologia do corpo nos seja administrada pelo grande mito da alma, fornecido desde o fundo da história ocidental. A alma funciona maravilhosamente dentro do meu corpo. Nele se aloja, evidentemente, mas sabe escapar dele: escapa para ver as coisas, através das janelas dos meus olhos, escapa para sonhar quando durmo, para sobreviver quando morro. A minha alma é bela, pura, branca. E se meu corpo é barro... A minha alma durará muito tempo, e mais que muito tempo, quando o meu velho corpo apodrecer. Viva a minha alma! É o meu corpo luminoso, purificado, virtuoso, ágil, móvel, tíbio, fresco; é o meu corpo liso, castrado, arredondado como uma bolha de sabão. E eis que o meu corpo, pela virtude de todas essas utopias, desapareceu. Desapareceu como a chama de uma vela que alguém sopra.
Mas o meu corpo, para dizer a verdade, não se deixa submeter com tanta facilidade. Depois de tudo, ele mesmo tem os seus recursos próprios e fantásticos. Também ele possui lugares sem-lugar e lugares mais profundos, mais obstinados ainda do que a alma, do que a tumba, do que o encanto dos magos. Tem as suas adegas e os seus celeiros, os seus lugares obscuros e praias luminosas. A minha cabeça, por exemplo, é uma estranha caverna aberta ao mundo exterior através de duas janelas, de duas aberturas – estou seguro disso, posto que as vejo no espelho. E, além disso, posso fechar um e outro separadamente. E, no entanto, não há mais que uma só dessas aberturas, porque diante de mim não vejo mais que uma única paisagem, contínua, sem tabiques nem cortes. E nessa cabeça, como acontecem as coisas? E, se as coisas entram na minha cabeça – e disso estou muito seguro, de que as coisas entram na minha cabeça quando olho, porque o sol, quando é muito forte e me deslumbra, vai a desgarrar até o fundo do meu cérebro –, e, no entanto, essas coisas ficam fora dela, posto que as vejo diante de mim e, para alcançá-las, devo me adiantar. Corpo incompreensível, penetrável e opaco, aberto e fechado: corpo utópico. Corpo absolutamente visível – porque sei muito bem o que é ser visto por alguém de alto a baixo, sei o que é ser espiado por trás, vigiado por cima do ombro, surpreendido quando menos espero, sei o que é estar nu. Entretanto, esse mesmo corpo é também tomado por uma certa invisibilidade da qual jamais posso separá-lo. A minha nuca, por exemplo, posso tocá-la, mas jamais vê-la; as costas, que posso ver apenas no espelho; e o que é esse ombro, cujos movimentos e posições conheço com precisão, mas que jamais poderei ver sem retorcer-me espantosamente. O corpo, fantasma que não aparece senão na miragem de um espelho e, mesmo assim, de maneira fragmentada. Necessito realmente dos génios e das fadas, e da morte e da alma, para ser ao mesmo tempo indissociavelmente visível e invisível? E, além disso, esse corpo é ligeiro, transparente, imponderável; não é uma coisa: anda, mexe, vive, deseja, se deixa atravessar sem resistências por todas as minhas intenções. Sim. Mas até o dia em que fico doente, sinto dor de estômago e febre. Até o dia em que estala no fundo da minha boca a dor de dentes. Então, então deixo de ser ligeiro, imponderável, etc.: me torno coisa, arquitetura fantástica e arruinada.

Não, realmente, não se necessita de magia, não se necessita de uma alma nem de uma morte para que eu seja ao mesmo tempo opaco e transparente, visível e invisível, vida e coisa. Para que eu seja utopia, basta que seja um corpo. Todas essas utopias pelas quais esquivava o meu corpo, simplesmente tinham seu modelo e seu ponto primeiro de aplicação, tinham seu lugar de origem em meu corpo. Estava muito equivocado há pouco ao dizer que as utopias estavam voltadas contra o corpo e destinadas a apagá-lo: elas nasceram do próprio corpo e depois, talvez, se voltarão contra ele. Uma coisa, entretanto, é certa: o corpo humano é o ator principal de todas as utopias. Depois de tudo, uma das utopias mais velhas que os homens contaram a si mesmos, não é o sonho de corpos imensos, sem medidas, que devorariam o espaço e dominariam o mundo? É a velha utopia dos gigantes, que se encontra no coração de tantas lendas, na Europa, na África, na Oceania, na Ásia. Essa velha lenda que durante tanto tempo alimentou a imaginação ocidental, de Prometeu a Gulliver. O corpo é também um grande ator utópico quando se pensa nas máscaras, na maquiagem e na tatuagem. Usar máscaras, maquiar-se, tatuar-se, não é exatamente, como se poderia imaginar, adquirir outro corpo, simplesmente um pouco mais belo, melhor decorado, mais facilmente reconhecível. Tatuar-se, maquiar-se, usar máscaras, é, sem dúvida, algo muito diferente; é fazer entrar o corpo em comunicação com poderes secretos e forças invisíveis. A máscara, o sinal tatuado, o enfeite colocado no corpo é toda uma linguagem: uma linguagem enigmática, cifrada, secreta, sagrada, que se deposita sobre esse mesmo corpo, chamando sobre ele a força de um deus, o poder surdo do sagrado ou a vivacidade do desejo. A máscara, a tatuagem, o enfeite coloca o corpo em outro espaço, o fazem entrar em um lugar que não tem lugar diretamente no mundo, fazem desse corpo um fragmento de um espaço imaginário, que entra em comunicação com o universo das divindades ou com o universo do outro. Alguém será possuído pelos deuses ou pela pessoa que acaba de seduzir. Em todo o caso, a máscara, a tatuagem, o enfeite são operações pelas quais o corpo é arrancado do seu espaço próprio e projetado a outro espaço.
Mas, se fosse preciso descer mais uma vez abaixo das vestimentas, se fosse preciso alcançar a própria carne, e então se veria que em alguns casos, em seu ponto limite, é o próprio corpo que volta contra si seu poder utópico e faz entrar todo o espaço do religioso e do sagrado, todo o espaço do outro mundo, todo o espaço do contra-mundo, no interior mesmo do espaço que lhe está reservado. Então, o corpo, em sua materialidade, em sua carne, seria como o produto de suas próprias fantasias. Depois de tudo, acaso o corpo de um dançarino não é justamente um corpo dilatado segundo todo um espaço que lhe é interior e exterior ao mesmo tempo? E também os drogados, e os possuídos; os possuídos, cujo corpo se torna um inferno; os estigmatizados, cujo corpo se torna sofrimento, redenção e salvação, paraíso sangrante.
É um dispate dizer, portanto, como fiz no início, que meu corpo nunca está em outro lugar, quer era um aqui irremediável e que se opunha a toda utopia. O meu corpo, de faCto, está sempre em outro lugar. Está ligado a todos os outros lugares do mundo, e, para dizer a verdade, está num outro lugar que é o além do mundo. É em referência ao corpo que as coisas estão dispostas, é em relação ao corpo que existe uma esquerda e uma direita, um atrás e um na frente, um próximo e um distante. O corpo está no centro do mundo, ali onde os caminhos e os espaços se cruzam, o corpo não está em nenhuma parte: o coração do mundo é esse pequeno núcleo utópico a partir do qual sonho, falo, me expresso, imagino, percebo as coisas em seu lugar e também as nego pelo poder indefinido das utopias que imagino. O meu corpo é como a Cidade de Deus, não tem lugar, mas é de lá que se irradiam todos os lugares possíveis, reais ou utópicos.
As crianças demoram muito tempo para descobrir que têm um corpo. Durante meses, durante mais de um ano, não têm mais que um corpo disperso, membros, cavidades, orifícios, e tudo isto não se organiza, tudo isto não se corporiza literalmente, senão na imagem do espelho. De uma maneira mais estranha ainda, os gregos de Homero não tinham uma palavra para designar a unidade do corpo. Por mais paradoxal que possa parecer, diante de Tróia, sob os muros defendidos por Heitor e os seus companheiros, não havia corpo, havia braços levantados, havia peitos valorosos, pernas ágeis, cascos brilhantes acima das cabeças: não havia um corpo. A palavra grega que significa corpo só aparece em Homero para designar o cadáver. É esse cadáver, por conseguinte, é o cadáver e é o espelho que nos ensinam (enfim, que ensinaram os gregos e que ensinam agora as crianças) que temos um corpo, que esse corpo tem uma forma, que essa forma tem um contorno, que nesse contorno há uma espessura, um peso, numa palavra, que o corpo ocupa um lugar. O espelho e o cadáver assinalam um espaço à experiência profunda e originariamente utópica do corpo; o espelho e o cadáver fazem calar e apaziguam e fecham sobre um fecho – que agora está para nós selado – essa grande raiva utópica que deteriora e volatiliza a cada instante o nosso corpo. É graças a eles, ao espelho e ao cadáver, que o nosso corpo não é pura e simples utopia. Ora, se se pensa que a imagem do espelho está alojada para nós em um espaço inacessível, e que jamais poderemos estar ali onde estará o nosso cadáver, se pensamos que o espelho e o cadáver estão eles mesmos em um invencível outro lugar, então descobre -se que só utopias podem encerrar-se sobre elas mesmas e ocultar um instante a utopia profunda e soberana de nosso corpo.
Talvez seria preciso dizer também que fazer amor é sentir o seu corpo fechar-se sobre si, é finalmente existir fora de toda a utopia, com toda a sua densidade, entre as mãos do outro. Sob os dedos do outro que te percorrem, todas as partes invisíveis do teu corpo começam a existir, contra os lábios do outro, os teus tornam -se sensíveis, diante dos seus olhos semi-abertos, o teu rosto adquire uma certeza, há um olhar finalmente par ver as tuas pálpebras fechadas. Também o amor, assim como o espelho e como a morte, acalma a utopia do teu corpo, cala -a, acalma -a, fecha -a como numa caixa, fecha-a e sela-a. É por isso que é um parente tão próximo da ilusão do espelho e da ameaça da morte; e se, apesar dessas duas figuras perigosas que o rodeiam, se gosta tanto de fazer amor é porque, no amor, o corpo está aqui...

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