Não é neccessário vivermos ao lado de alguém para nos sentirmos ligados a esse alguém mais do que a qualquer outra pessoa...
domingo, 14 de janeiro de 2018
Peregrinações e viagens...
Um forma diferente de peregrinação...
Nunca mais ler a Peregrinação causava-me uma angústia indizível. O acaso, o destino ou a sorte colocam esta obra no meu caminho e aí vou eu, "por este rio acima", a reler excertos, a recordar o português do século XVI, uma língua que me sabe a passado, a presente e a futuro... O reencontro com estes textos é assaz comovente, como o são todos os reencontros... Talvez seja um dos meus traços mais definidores: gosto de reencontrar ( talvez , por isso, até nem me importe de perder ...)
Quando às vezes ponho diante dos olhos os muitos e grandes trabalhos e infortúnios que por mim passaram...acho que com muita razão me posso queixar da ventura,que parece que tomou por particular tenção a empresa sua de perseguir-me e maltratar-me,como se isso lhe houvera de ser matéria de grande nome e de grande glória...
E vendo eu quão pouco me fundiam tanto os trabalhos e serviços passados como o requerimento presente, determinei de me recolher com essa miséria que trouxera comigo, adquirida por meio de muitos trabalhos e infortúnios, e que era o resto do que tinha gasto em serviço deste reino, e deixar o feito à justiça divina, o que logo pus em obra, pesando-me ainda por que o não fizera mais cedo, porque se assim o fizesse, quiçá me pouparia nisso um bom pedaço de fazenda.
Lembra-me um sonho lindo, quase acabado Lembra-me um céu aberto, outro fechado Estala-me a veia em sangue, estrangulada Estoira no peito um grito, à desfilada...
Namban significa, em japonês, "bárbaros do sul", termo com que os nipónicos apelidaram os europeus, devido aos seus hábitos pouco requintados: Comem com os seus dedos, em vez de usarem os pauzinhos... Manifestam os seus sentimentos, sem qualquer autocontrole. São incapazes de entender a nossa escrita.
Esta capa de um ebook da Peregrinação é retirada de um biombo japonês, que, à semelhança das tiras de banda desenhada, conta uma história, através de imagens...Com a chegada dos portugueses, em 1543, iniciam-se os contactos com o japão, ficando este encontro de civilizações e de trocas culturais registado em biombos namban.
Os biombos Namban contam A história alegre das navegações Pasmo de povos de repente Frente a frente Alvoroço de quem vê O tão longe tão de pé Laca e leque Kimono camélia Perfeição esmero E o sabor de tempero Cerimónias mesuras Nipónicas finuras Malícia perante Narigudas figuras Inchados calções Enquanto no alto Das mastreações Fazem pinos dão saltos Os ágeis acrobatas das navegações Dançam de alegria Porque o mundo encontrado É muito mais belo Do que o imaginado
Peregrinatio Egeriae - A ida de Egéria à Terra Santa, nos anos 381 a 384, é o segundo documento escrito de uma peregrinação ao Oriente e o primeiro que se conhece redigido por uma mulher. É o texto latino mais antigo que se pode atribuir a território ocidental, um testemunho essencial da evolução do latim para as línguas românicas.
Outra peregrinação ao passado, mas esta de má memória, apesar de adorar o texto e de não ter embirrado com a santidade de egéria...
A quem me abriu portas e mostrou caminhos — e também em lembrança de Almeida Garrett, mestre de viajantes.
Tome o leitor as páginas seguintes como desafio e convite. Viaje segundo um seu projeto próprio...
O mal do viajante nasce de duas opostas vontades: a de ficar em todos os lugares, a de chegar a todos os lugares ...
Há uma palavra para designar cada objeto, e o viajante descobre, estupefacto, que a história dos homens é afinal a história desses objetos e das palavras que os nomeiam, e dos nexos existentes entre eles e elas, mais os usos e desusos, o como, para quê, onde e quem produziu. A história assim contada não se atravanca de nomes, é a história dos atos materiais, do pensamento que os determina, dos atos que determinam o pensamento
A viagem não acaba nunca. Só os viajantes acabam. E mesmo estes podem prolongar-se em memória, em lembrança, em narrativa [...];O fim de uma viagem é apenas o começo doutra [...]. É preciso recomeçar a viagem. Sempre. O viajante volta já.
" Meu Caro José:
A última carta que o seu Ricardo Reis escreve não é carta, nem vai assinada. É um sobrescrito endereçado a Marcenda Sampaio, para a posta restante de Coimbra. Dentro leva, sozinhos, estes versos, de que o José apenas transcreve os dois primeiros:
Saudoso já deste verão que vejo, / Lágrimas para as flores dele emprego/ Na lembrança invertida / De quando hei-de perdê-las./ Transpostos os portais irreparáveis / De cada ano,me antecipo a sombra / Em que hei de errar, sem flores,/ No abismo rumoroso./E colho a rosa porque a sorte manda./ Marcenda, guardo-a; murche-se comigo / Antes que com a curva /Diurna da ampla terra.
Marcenda é murchante, flor que murcha. É essa menina doente de si mesma, de braço pendente e mão inerte. Descrente da esperança, trava a seiva de um amor nascente e, deste, o viço para sempre se quedará secreta memória. O José foi atrás do gosto classicista de Reis, que assim cria a forma verbal "marcenda" ( de "marceo,-es,-ere,-ui = murchar) , e dali fez um nome de mulher e o deu como contraponto de Lídia. Se, como escreve João Gaspar Simões, "com efeito, é através de Ricardo Reis que Fernando Pessoa se aproxima de si mesmo, de si mesmo como Fernando Pessoa. E Ricardo Reis, no fim de contas, quem descobre Fernando Pessoa a si próprio", a Marcenda de José Saramago descobre-nos o namoro de Fernando e Ofélia... Mas tudo isso é mera conjetura, Marcenda é criação sua, José, tal como a Lídia que se deita com Ricardo Reis não é a musa das odes,a menos que o poeta afinal a ela também diga "Temo, Lídia,o destino. Nada é certo... / ...Fora do conhecido é estranho o passo / Que próprio damos." E em mais odes repetirá "Sofro, Lídia, do medo do destino. / Qualquer pequena cousa de onde pode / Brotar uma ordem nova em minha vida, / Lídia, me aterra." Mas esta Lídia, criada de profissão e solteira, anuncia ao homem, que é médico e pessoa de outra condição, a esperança - também chamada embaraço - que ele lhe fez. E logo lhe corta a ilusão de poder ou querer fugir do que - a ela,mais do que a ele, pois é desamparada e de humilde condição - lhe mudará o destino e a vida: " Lídia mete-se adiante e responde,Vou deixar vir o menino. Então, pela primeira vez, Ricardo Reis sente um dedo tocar-lhe o coração... ...Que é um embrião de dez dias, pergunta mentalmente Ricardo Reis a si mesmo, e não tem resposta para dar, em toda a sua vida de médico nunca aconteceu ter diante dos olhos esse minúsculo processo de multiplicação celular, do que os livros ao acaso lhe mostraram não conservou memória, e aqui não pode ver mais do que esta mulher calada e séria... ... Puxou-a para si, e ela veio como quem enfim se protege do mundo, de repente corada, de repente feliz, perguntando como uma noiva tímida, ainda é tempo delas, Não ficou zangado comigo, Que ideia a tua,por que motivo iria eu zangar-me, e estas palavras não são sinceras,justamente nesta altura se está formando uma grande cólera dentro de Ricardo Reis, Meti-me em grande sarilho, pensa ele, se ela não faz o aborto fico para aqui com um filho às costas, terei de o perfilhar, é minha obrigação moral, que chatice, nunca esperei que viesse a acontecer-me uma destas. Lídia aconchegou-se melhor, quer que ele a abrace com força, por nada, só pelo bem que sabe, e diz as incríveis palavras, simplesmente, sem nenhuma ênfase particular, Se não quiser perfilhar o menino não faz mal, fica sendo filho de pai incógnito,como eu. Os olhos de Ricardo Reis encheram-se de lágrimas, umas de vergonha, outras de piedade, distinga-as quem puder, num impulso, enfim, sincero, abraçou-a, e beijou-a, imagine-se, beijou-a muito, na boca, aliviado daquele grande peso, na vida há momentos assim,julgamos que está uma paixão a expandir-se e é só o desafogo da gratidão." Conjeturando ainda, pergunto-me --- pergunto-lhe, a si, talvez o José, desde esse assento etéreo, me responda - que mais teria feito Ricardo Reis, se Fernando não o tivesse vindo buscar para donde não se regressa tão cedo... Sei, posto que o afirma, que o médico-poeta assentiu que devia ter ficado à espera de Lídia, ali no Alto de Santa Catarina, para a consolar da perda do irmão marinheiro, o próprio Pessoa lho diz. Mas acha, afinal, que não poderia valer-lhe, a ela que dele tantas vezes cuidou. Mais sei que, ao ouvir o som dos canhões que atiravam contra o navio Afonso de Albuquerque, ele vai correndo por Lisboa, na ânsia de poder ser de algum préstimo no eventual salvamento do irmão de Lídia. E que a procura no Hotel Bragança, onde ela é serviçal, a ver se poderá oferecer-lhe apoio e conforto. Não a encontra, mas algo terá já mudado nesse monárquico, antigo aluno dos jesuítas, hoje cético dos deuses todos, que o seu neopaganismo situa num olimpo distante dos homens e onde "há só noite lá fora". O Ricardo que pensa que "sábio é o que se contenta com o espetáculo do mundo", e assim se considera, sairá afinal ao encontro do outro, desse desconhecido irmão da mulher humilde que quiçá o converteu à misteriosa capacidade do amor. Que pena tenho, José Saramago, de que não esteja agora aqui para me contar que caminhos imaginou para esse homem novo. " Camilo Martins de Oliveira
O bagageiro levanta o boné e agradece, o táxi arranca, o motorista quer que lhe digam, Para onde, e esta pergunta, tão simples, tão natural, tão adequada à circunstância e ao lugar, apanha desprevenido o viajante, como se ter comprado a passagem no Rio de Janeiro tivesse sido e pudesse continuar a ser resposta para todas as questões, mesmo aquelas, passadas, que em seu tempo não encontraram mais que o silêncio, agora mal desembarcou logo vê que não, talvez porque lhe fizeram uma das duas perguntas fatais, Para onde, a outra, e pior, seria, Para quê. O motorista olhou pelo retrovisor, julgou que o passageiro não ouvira, já abria a boca para repetir, Para onde, mas a resposta chegou primeiro, ainda irresoluta, suspensiva, Para um hotel, Qual, Não sei, e tendo dito, Não sei, soube o viajante o que queria, com tão firme convicção como se tivesse levado toda a viagem a ponderar a escolha, Um que fique perto do rio, cá para baixo, Perto do rio só se for o Bragança, ao princípio da Rua do Alecrim, não sei se conhece, Do hotel não me lembro, mas a rua sei onde é, vivi em Lisboa, sou português, Ah, é português, pelo sotaque pensei que fosse brasileiro, Percebe-se assim tanto, Bom, percebe-se alguma coisa, Há dezasseis anos que não vinha a Portugal...
Já lá vai a caminho do segundo andar, É o duzentos e um, ó Pimenta, desta vez o Pimenta está com sorte, não tem de ir aos andares altos, e enquanto ele sobe tornou o hóspede a entrar na recepção, um pouco ofegante do esforço, pega na caneta, e escreve no livro das entradas, a respeito de si mesmo, o que é necessário para que fique a saber-se quem diz ser, na quadrícula do riscado e pautado da página, nome Ricardo Reis, idade quarenta e oito anos, natural do Porto, estado civil solteiro, profissão médico, última residência Rio de Janeiro, Brasil, donde procede, viajou pelo Highland Brigade, parece o princípio duma confissão, duma autobiografia íntima, tudo o que é oculto se contém nesta linha manuscrita, agora o problema é descobrir o resto, apenas. E o gerente, que estivera de pescoço torcido para seguir o encadeamento das letras e decifrar-lhes, acto contínuo, o sentido, pensa que ficou a saber isto e aquilo, e diz, Senhor doutor, não chega a ser vénia, é um selo, o reconhecimento de um direito, de um mérito, de uma qualidade, o que requer uma imediata retribuição, mesmo não escrita, O meu nome é Salvador, sou o responsável do hotel, o gerente, precisando o senhor doutor de qualquer coisa, só tem que me dizer...
os livros numa prateleira, estes poucos que trouxera consigo, alguma latinação clássica de que já não fazia leitura regular, uns manuseados poetas ingleses, três ou quatro autores brasileiros, de portugueses não chegava a uma dezena, e no meio deles encontrava agora um que pertencia à biblioteca do Highland Brigade, esquecera-se de o entregar antes do desembarque. A estas horas, se o bibliotecário irlandês deu pela falta, grossas e gravosas acusações hão-de ter sido feitas à lusitana pátria, terra de escravos e ladrões, como disse Byron e dirá O'Brien, destas mínimas causas, locais, é que costumam gerar-se grandes e mundiais efeitos, mas eu estou inocente, juro-o, foi deslembrança, só, e nada mais. Pôs o livro na mesa-de-cabeceira para um destes dias o acabar de ler, apetecendo, é seu título The god of the labyrinth, seu autor Herbert Quain, irlandês também, por não singular coincidência, mas o nome, esse sim, é singularíssimo...
Há grandes receios na Golegã, não me lembro onde fica, ah Ribatejo, se as cheias destruírem o dique dos Vinte, nome muito curioso, donde lhe virá, veremos repetida a catástrofe de mil oitocentos e noventa e cinco, noventa e cinco, tinha eu oito anos, é natural não me lembrar,
Quando Ricardo Reis chegou ao cemitério, estava a sineta do portão tocando, badalava aos ares um som de bronze rachado, como de quinta rústica, na dormência da sesta. Já a esconder-se, uma carreta levada a braço bambeava lutuosas sanefas, um grupo de gente escura seguia a carroça mortuária, vultos tapados de xales pretos e fatos masculinos de casamento, alguns lívidos crisântemos nos braços, outros ramos deles enfeitando os varandins superiores do esquife, nem mesmo as flores têm um destino igual. Sumiu-se a carreta lá para as profundas, e Ricardo Reis foi à administração; ao registo dos defuntos, perguntar onde estava sepultado Fernando António Nogueira Pessoa, falecido no dia trinta do mês passado, enterrado no dia dois do que corre, recolhido neste cemitério até ao fim dos tempos, quando Deus mandar acordar os poetas da sua provisória morte.(...) A rua desce suavemente, como em passeio, ao menos não foram esforçados os últimos ossos, a derradeira caminhada, o final acompanhamento, que a Fernando Pessoa ninguém tornará a acompanhar, se em vida realmente o fizeram aqueles que em morto o seguiram
Pisa o lixo das ruas, ladeia os caixotes virados, debaixo dos pés rangem vidros partidos, só faltou que tivessem atirado os velhos pelas janelas com o manequim, não é assim tão grande a diferença, a partir de certa idade nem nos governa a cabeça nem as pernas sabem aonde hão de levar-nos, no fim somos como as criancinhas, inermes, mas a mãe está morta, não podemos voltar a ela, ao princípio, àquele nada que esteve antes do princípio, o nada é verdade que existe, é o antes, não é depois de mortos que entramos no nada, do nada, sim, viemos, foi pelo não ser que começamos, e mortos, quando o estivermos, seremos dispersos, sem consciência mas existindo. Todos tivemos pai e mãe, mas somos filhos do acaso e da necessidade, seja o que for que esta frase signifique, pensou-a Ricardo Reis, ele que a explique...
"Por mim penso, e com gratidão, que em Antero de Quental, me foi dado conhecer, neste mundo de pecado e de escuridade, alguém, filho querido de Deus, que muito padeceu porque muito pensou, que muito amou porque muito compreendeu, e que, simples entre os simples, pondo a sua vasta alma em curtos versos – era um Génio e era um Santo." Eça
De 1864 a 1874, Antero de Quental é niilista como filósofo, anarquista como político; é tudo o que for negativo, é tudo o que for excessivo; e é-o de um modo tão determinante, tão dogmático e tão afirmativo, que por isso mesmo hesitamos em crer na consciência com que o é. Da sinceridade não é lícito duvidar, mas contra a segurança depõe a própria violência. A nevrose contemporânea, que produzira nele a terceira época, dá de si ainda a quarta; mas se pôde galgar a saltos por entre a floresta incendiada que devorou e consumiu os satânicos, não poderá também sair da estepe lúgubre onde apodrecem os pessimistas, embriagados na negação universal, sem se lembrarem de que são contraditórios no próprio facto de pregarem o que quer que seja? Ora a isto responde esta própria série, porque, ao lado dos sonetos crepuscularmente desolados, levantam-se como auroras os sonetos estoicos. Para curar o poeta da vertigem satânica serviu-lhe a metafísica pessimista; para o curar mais tarde dessa metafísica, servir-lhe-á a reação do sentimento moral sobre a razão especulativa.
Lembremo-nos que a literatura, porque se dirige ao coração, à inteligência, à imaginação e até aos sentidos, toma o homem por todos os lados; toca por isso em todos os interesses, todas as ideias, todos os sentimentos; influi no indivíduo como na sociedade, na família como na praça pública; dispõe os espíritos; determina certas correntes de opinião; combate ou abre caminho a certas tendências; e não é muito dizer que é ela quem prepara o berço aonde se há-de receber esse misterioso filho do tempo - o futuro.
Acabo de ler um escripto e v. ex.ª onde, a proposito de faltas de bom-senso e de bom-gosto, se falla com aspera censura da chamada eschola litteraria de Coimbra, e entre dois nomes illustres se cita o meu, quasi desconhecido e sobre tudo desambicioso. Esta minha obscuridade faz com que a parte de censura que me cabe seja sobre maneira diminuta: em quanto que, por outro lado, a minha despreoccupação de fama litteraria, os meus habitos de espirito e o meu modo de vida, me tornam essa mesma pequena parte que me resta tão indifferente, que é como que se a nada a reduzissemos. (...) Isto, resumido em poucas palavras, quer dizer: combatem-se os hereges da eschola de Coimbra por causa do negro crime de sua dignidade, do atrevimento de sua rectidão moral, do attentado de sua probidade litteraria, da impudencia e miseria de serem independentes e pensarempor suas cabeças. E combatem-se por faltarem ás virtudes de respeito humilde ás vaidades omnipotentes, de submissão estupida, de baixeza e pequenez moral e intellectual.
V. ex.ª, com a imparcialidade que todos lhe conhecemos, deve confessar que uma guerra assim feita é não só mal feita, mas tambem pequena e miseravelmente feita. Mas é que a eschola de Coimbra commetteu effectivamente alguma cousa peior de que um crime—commetteu uma grande falta: quiz innovar. Ora, para as litteraturas officiaes, para as reputações estabelecidas, mais criminoso do que manchar a verdade com a baba dos sophismas, do que envenenar com o erro as fontes do espirito publico, do que pensar mal, do que escrever pessimamente, peior do que isto é essa falta de querer caminhar por si, de dizer e não repetir, de inventar e não de copiar. (...) nnovar é dizer aos prophetas, aos reveladores encartados: «ha alguma cousa que vós ignoraes; alguma cousa que nunca pensastes nem dissestes; ha mundo além do circulo que se vê com os vossos oculos de theatro; ha mundo maior do que os vossos systemas, mais profundo do que os vossos folhetins; ha universo um pouco mais extenso e mais agradavel sobre tudo do que os vossos livros e os vossos discursos.» Isto, sim, que é intoleravel! Isto, sim, que é infame e revoltante e impio e subversivo! Contra isto, sim, ás armas, ergamo-nos na nossa força, mostremos o que somos e o que podemos... escrevamos tres folhetins e um prologo!..
"Properly speaking there has been no Portuguese literature before Antero de Quental; before that there has been either a preparation for a future literature, or foreign literature written in the Portuguese language." Pessoa
Os que amei, onde estão? Idos, dispersos,
arrastados no giro dos tufões,
Levados, como em sonho, entre visões,
Na fuga, no ruir dos universos...
N'um céu intemerato e cristalino
Pode habitar talvez um Deus distante,
Vendo passar em sonho cambiante
O Ser, como espectáculo divino.
Mas dentro encontro só, cheio de dor,
Silêncio e escuridão - e nada mais!
Viagem aos infernos, realizada por Eneias, guiado por Sibila de Cumas:
Daqui parte um caminho que leva às ondas do Tartáreo Aqueronte.
Aqui um redemoinho de espesso lodo e vasta voragem
referve e vomita no Cocito toda a sua areia.
Um barqueiro arrepiante guarda as águas destes rios,
Caronte, esquálido e terrível, no queixo, uma espessa,
desgrenhada, barba branca, olhos fixos, em chamas;
um sórdido manto atado com um nó pende-lhe dos ombros.
Ele mesmo com a vara faz andar a jangada, iça a vela
e transporta na barca da cor da ferrugem os corpos;
já avançado em anos, mas a velhice dos deuses é fresca e viçosa.
Para aqui corria, para as margens, toda a turba dispersa,
mães e varões, corpos sem vida
de valentes heróis, rapazes e donzelas inuptas,
jovens colocados na pira à vista dos pais:
tal como nas florestas, aos primeiros frios outonais,
as folhas caem numerosas; tal como, dos fundos redemoinhos,
vêm juntar-se em terra multidões de aves, quando a gelada estação
as faz atravessar o pélago e as leva para terras soalheiras.
de pé, imploravam que os deixassem fazer a travessia primeiro,
e estendiam as mãos, no anseio de passar à outra margem.
Porém o nauta sombrio recebe, ora uns, ora outros,
mas a alguns, afasta-os para longe da areia da praia.
Surpreso, de verdade, e abalado por este tumulto,
Eneias pergunta: «Diz-me, ó virgem, que corrida é esta para o rio?
Que procuram as almas? Ou que distinção leva
a que estas deixem a margem, e aquelas varram com os remos o lívido elemento?»
Respondeu-lhe em poucas palavras a longeva sacerdotiza:
«Filho de Anquises, descendente inegável dos deuses,
o que vês são do Cocito os pântanos profundos e os Estígios paúis,
por quem os deuses temem jurar e quebrar o juramento.
Toda esta turba que avistas são desgraçados sem sepultura.
Aquele barqueiro é Caronte; estes, que as ondas levam, foram sepultados.
Não é dado fazê-los transpor as horrendas margens
e as roucas correntes, antes de os seus ossos repousarem na tumba.
Durante cem anos vagueiam, volitando em torno destas praias;
só depois são admitidos, enfim, a tornar a ver o almejado pântano.
- 1438 - Ainda que Deus por sua grande , absoluta, infinda e segreda vontade algumas vezes escolha e chame alguns de estados viciosos e culpados...tão grande sandice é um atrevimento da boa vontade de Deus desprezar o estado das virtudes, e escolher o dos pecados, como seria se algum quisesse passar algum rio perigoso e tormentoso, e achasse duas barcas: uma forte e segura e mui bem aparelhada , e em que raramente algum se perde e por a maior parte todos com ela se salvam, e outra velha, fraca, podre, rota, em que todos se perdem, e alguns poucos se salvam. A barca firme e segura e forte e bem aparelhada, o estado das virtudes é, e de bom e santo viver honesto, e sem querela de Deus e do próximo(...)A barca fraca, pobre, rota, o estado dos pecados é, e da má e corrupta e dissoluta vida, em tal estado assim como em barca podre não pode com segurança e sem prigo as tormentas da presente vida passar, nem a porto de folgança e desejado aportar(...) Deste ensinamento...podeis entender que cousa perigosa é dar-se o homem a destemperança, e cousa segura à temperança salva muitos, e destroi poucos, e a destemperança corrompe e destroi muitos, e salva mui poucos.
Auto da Barca do Inferno - 1516 - A didascália, no texto princeps, é a seguinte:
Auto de Moralidade, composto per Gil Vicente, por contemplação da sereníssima e muito católica rainha Dona Lianor, nossa senhora, e representado per seu mandado ao poderoso príncipe e mui alto rei D. Manuel, primeiro de Portugal deste nome.
Começa a declaração e argumento da obra: Primeiramente, no presente auto, se figura que, no ponto que acabamos d'espirar, chegamos supitamente a um rio, o qual per força havemos de passar em um de dous batéis que naquele porto estão, scilicet , um deles passa pera o Paraíso, e o outro pera o Inferno; os quais batéis tem cada um seu arrais na proa: o do Paraíso um Anjo; e o do Inferno, um arrais infernal e um Companheiro.
1847 - O acesso habitual a Arnheim fazia-se através do rio. O visitante deixava a cidade ao amanhecer. Ao longo da manhã passava por entre margens de uma beleza tranquila e familiar onde pastavam inúmeros carneiros, o seu velo branco pintalgando o verde fulgurante dos prados ondulantes [ ...] . Conforme a tarde se aproximava, o canal ia-se tornando mais estreito; as margens cada vez mais alcantiladas; e estas vestidas de folhagem mais rica, mais profusa e mais sombria. A água ganhava transparência. O curso do rio tornava-se de tal forma sinuoso que a sua superfície cintilante não se podia avistar a uma distância superior a alguns metros. Em todo o momento a embarcação parecia prisioneira no interior de um círculo encantado ladeado por paredes de vegetação indomável e impenetrável, encimado por uma cobertura de cetim azul ultramarino e desprovido de fundo - a quilha balançando por si só com admirável simetria, sobre a de um barco fantasma que, por qualquer acidente, tivesse sido invertido, conduzido por uma tripulação permanente e essencial com o único propósito de o suster. O canal tornava-se então um desfiladeiro - embora o termo não seja o mais adequado e eu o empregue unicamente devido a não existir qualquer palavra que represente o mais impressionante - não o mais distintivo - traço fundamental do cenário. O aspecto de desfiladeiro dizia apenas respeito à altura e paralelismo das margens; tinham-se perdido totalmente as outras características. As paredes da ravina (por entre as quais deslizava tranquilamente a água límpida) erguiam-se a uma altura de cem e por vezes de cento e cinquenta pés, e aproximavam-se tanto entre si como para expulsar a luz do dia; enquanto os longos líquenes semelhantes a plumas que pendiam densamente dos matagais que se entrelaçavam em cima impregnavam todo o abismo de uma lúgubre obscuridade. As curvas sinuosas do rio tornavam-se mais frequentes e intrincadas parecendo, por vezes, desenhar-se sobre si próprias de tal forma que o viajante há muito havia perdido todo o sentido de orientação. Além disso, este tinha sido envolvido por um sentimento de aguda estranheza. A noção de natureza mantinha-se ainda mas as suas qualidades pareciam ter-se alterado, reinava uma misteriosa simetria, uma inquietante uniformidade, uma perfeição mágica nestes novos atributos. Não se avistava um ramo caído - uma folha ressequida - um seixo perdido - um pedaço de terra queimado pelo sol. A água cristalina irrompia contra o granito imaculado, ou sobre o musgo irrepreensível, com uma exactidão de contornos que simultaneamente deleitava e confundia o olhar. Tendo transposto ameaçadoramente os labirintos deste canal durante algumas horas, com a obscuridade aprofundando-se a cada momento, uma curva acentuada e inesperada da embarcação conduziu-a repentinamente, como se caída do céu, ao interior de uma lagoa circular de considerável extensão comparada à largura do desfiladeiro.
O excerto, que, em 1962, inspirou este quadro de magritte, relata um percurso por um rio que, à medida que o viajante vai avançando, não só em termos espaciais como temporais, se vai estreitando e aprofundando, «Conforme a tarde se aproximava, o canal ia-se tornando mais estreito; as margens cada vez mais alcantiladas», carregando-se de sombras e de tal maneira se torna tortuoso que provoca a desorientação: «As curvas sinuosas do rio tornavam-se mais frequentes e intrincadas parecendo por vezes desenhar-se sobre si próprias, de tal forma que o viajante há muito havia perdido todo o sentido de orientação». A personagem realiza um percurso ao abismo labiríntico e espiralar que a amedronta e confunde mas que a transporta a uma outra dimensão da realidade que a vai deslumbrar. O que impressiona neste texto são os sentimentos contraditórios que sugere - a melancolia e o temor evocados pela obscuridade do abismo mas simultaneamente deslumbramento pela limpidez das águas e pela geometria e perfeição da natureza. É interessante a comparação «a embarcação parecia prisioneira no interior de um círculo encantado [ ...] a quilha balançando por si só com admirável simetria, sobre a de um barco fantasma» para sugerir a imagem do barco reflectida nas águas, reflexo que, como Bachelard diz, duplica não só o mundo mas também o sonhador/viajante, metamorfose que provoca estranheza, inquietação: «l’eau, par ses reflets, double le monde, double les choses. Elle double aussi le rêveur, non pas simplement comme une vaine image, mais en l’engageant dans une nouvelle expérience onirique». A idealização da natureza que «simultaneamente deleitava e confundia o olhar» é fruto do convite à libertação da realidade sensível que constitui esta viagem. Não esqueçamos que para Platão a alma era espelho e em todo o texto «l’eau donne au monde ainsi créé une solennité platonicienne».
- 1912 - O livro inicia com a descrição do Inferno, onde “Satã consome o fogo dos seus dias cuidando, com amor, do martírio das almas” que ali lhe chegam. Da fronte do Diabo sobressai o símbolo do seu Império, a serpente que seduziu Eva ao enroscar-se na árvore do Paraíso, transformando-a, e a Adão, nos dirigentes das nocturnas legiões de Satã. Quando Satã, ouvindo a serpente que prevê o fim da humanidade, envia Adão e Eva para o mundo “à frente dos demónios aguerridos”, não esperava que, através das recordações do Paraíso, estes revivessem o amor original, sentindo piedade dos seus filhos. Trava-se, assim, uma batalha entre Anjos e Demónios em que, se Adão vencer o demónio que nele se entranhou, poderá regressar ao Paraíso. O homem vive uma tragédia onde as personagens principais são Deus e Satã.
A figura de Caronte é substituída, devido à influência do catolicismo, por Satã , mas mantém ainda alguns traços da personagem na Eneida:Satã consome o fogo dos seus dias,/ Cuidando, com amor,/ do martírio das almas, que aos Infernos/ Chegam da Terra, em ondas e tumultos.// Junto à porta infernal, que tem escrita a trágica lenda do Poeta,/ Já comida das chamas e do fumo,/ Satã espera as almas, que se espantam/ E dizem, a tremer os seus pecados:/ Seus ódios, seus amores.../ E depois ajoelham e murmuram/ Súplicas de perdão,/ E sussurram palavras sem sentido;/ Lembram débeis arbustos, sob as patas/ dos ventos a galope.
Satã faz despertar nas almas recém-chegadas ao Inferno os mesmos sentimentos de terror e vulnerabilidade perante o caráter inexorável dos seus atos que os gestos do «nauta sombrio» provocam nas almas implorantes que volitavam nas margens do rio. A fragilidade do destino humano é também associada por Pascoaes à natureza pela evocação da debilidade dos arbustos perante a violência do vento sugerindo a impotência do homem face à implacabilidade das forças que governam a sua existência.
Outras viagens...
Viagens...
Ave atque vale, ó assombroso universo!
Do eterno erro na eterna viagem,
O mais que saibas na alma que ousa,
É sempre nome, sempre linguagem
O véu e a capa de uma outra cousa.
A ideia de viajar seduz-me por translação, como se fosse a ideia própria para seduzir alguém que eu não fosse. Toda a vasta visibilidade do mundo me percorre, num movimento de tédio colorido, a imaginação acordada; esboço um desejo como quem já não quer fazer gestos, e o cansaço antecipado das paisagens possíveis aflige-me, como um vento torpe, a flor do coração que estagnou. E como as viagens as leituras, e como as leituras tudo... Do mesmo modo se me estiola a ideia de viajar se acaso me aproximo de onde possa haver embarque...
Viajar, num sentido profundo, é morrer. É deixar de ser manjerico à janela do seu quarto e desfazer-se em espanto, em desilusão, em saudade, em cansaço, em movimento, pelo mundo além.
Durante muito tempo, deitava-me cedo. Às vezes, mal apagada a vela,os meus olhos fechavam -se tão depressa que eu nem tinha tempo de pensar: "Vou dormir". E, meia hora depois, a ideia de que já era tempo de conciliar o sono me despertava: queria deixar o livro que julgava ainda ter nas mãos e assoprar a vela; dormindo, não havia deixado de refletir sobre o que acabara de ler, porém tais reflexões haviam tomado um aspeto um tanto singular; parecia-me que era de mim mesmo que o livro falava: uma igreja, um quarteto, a rivalidade de Francisco I e Carlos V. Essa crença sobrevivia por alguns segundos ao meu despertar; não ofendia a razão, mas pesava como escamas sobre os olhos, impedindo-os de perceber que a vela já não estava acesa. Depois, principiava a parecer-me ininteligível, como, após a metempsicose, as ideias de uma existência anterior; o assunto do livro desligava -se de mim, eu ficava livre para me adaptar ou não a ele; logo recobrava a vista e surpreendia -me bastante por estar rodeado de uma obscuridade, suave e repousante para os olhos, porém ainda mais talvez para o espírito, ao qual surgia como uma coisa sem causa, incompreensível, como algo verdadeiramente obscuro. Perguntava-me que horas poderiam ser; ouvia o silvo dos comboios que, mais ou menos afastado, como um canto de pássaro na floresta, assinalando as distâncias, me informava sobre a extensão da campina deserta onde o viajante se apressa em direção à próxima parada: o caminho que ele segue vai-lhe ficar gravado na lembrança pela excitação de conhecer novos lugares, praticar atos inusitados, pela conversação recente e as despedidas sob a lâmpada estranha que o seguem ainda no silêncio da noite, e pela doçura próxima do regresso.
Mas de há pouco tempo para cá recomeço, se lhes dou ouvidos, a distinguir muito bem os soluços que tive forças para conter... Na realidade esses soluços nunca cessaram: e só porque a vida está agora mais calada à minha volta é que os ouço outra vez, como os sinos dos conventos que são tão bem cobertos pelos ruídos das cidades durante o dia que parecem ter parado, mas que recomeçam a tocar no silêncio da noite.
A minha tristeza já não era considerada como uma falta punível,mas como um mal involuntário que acabavam de reconhecer oficialmente como um estado nervoso pelo qual não era responsável; tinha o alívio de já não ter que misturar escrúpulos com a amargura das minhas lágrimas, podia chorar sem pecado.
É trabalho baldado procurarmos evocar o passado,todos os esforços da nossa inteligência são inúteis.Ele está escondido,fora do seu domínio e do seu alcance,em algum objecto material de que não suspeitamos. Depende do acaso encontrarmos esse objecto antes de morrermos, ou não o encontramos.
Durante a minha leitura,executava incessantes movimentos de dentro para fora,para a descoberta da verdade,vinham as emoções que me eram dadas pela acção em que tomava parte,porque todas aquelas tardes eram mais cheias de acontecimentos dramáticos do que muitas vezes uma vida inteira.(...) Um ser real, por muito profundamente que simpatizemos com ele, é em grande parte apreendido pelos nossos sentidos, o que quer dizer que permanece para nós opaco, que apresenta um peso morto que a nossa sensibilidade não pode levantar.
Nunca me deixo influenciar pelas perturbações da atmosfera nem pelas divisões convencionais do tempo. De bom grado reabilitaria o uso do cachimbo do ópio e do kriss malaio, mas ignoro esses instrumentos infinitamente mais perniciosos e aliás chatamente burgueses, que são o relógio e o guarda -chuva.
Um balde,sim guarda a chuva. Pelo menos, uma parte dela.O guarda-chuva, esse, não guarda propriamente a chuva. Pelo contrário: deixa cair a chuva ao chão. O guarda-chuva é na verdade um afasta - chuva. Um mãos_de_manteiga.
Demoramos muito tempo a reconhecer na fisionomia própria de um novo escritor o modelo que tem o nome de " grande talento"no nosso museu de ideias gerais. Justamente por se tratar de uma fisionomia nova, não achamos que se assemelhe inteiramente àquilo a que chamamos talento.
Ega atravessou, devagar, por entre soldados de capote enrolado a tiracolo que corriam a beber à cantina. À porta do bufete voltou-se ainda, ergueu o chapéu. Ela, de pé, moveu de leve o braço num lento adeus. E foi assim que ele pela derradeira vez na vida viu Maria Eduarda, grande, muda, toda negra na claridade, à portinhola daquele wagon que para sempre a levava.
No barco sem ninguém, anónimo e vazio,
ficámos nós os dois, parados, de mão dada...
Como podem só dois governar um navio?
Melhor é desistir e não fazermos nada!
Agora sei que és tu quem me fora indicada.
O resto passa, passa... alheio aos meus sentidos.
— Desfeitos num rochedo ou salvos na enseada,
a eternidade é nossa, em madeira esculpidos!
E assim escondo-me atrás da porta, para que a Realidade, quando entra, me não veja. Escondo-me debaixo da mesa, donde subitamente, prego sustos à Possibilidade. De modo que desligo de mim como aos dois braços de um amplexo, os dois grandes tédios que me apertam — o tédio de poder viver só o Real, e o tédio de poder conceber só o Possível. Triunfo assim de toda a realidade. Castelos de areia, os meus triunfos? De que coisa essencialmente divina são os castelos que não são de areia? Como sabeis que, viajando assim, não me segui ... mesmo obscuramente?
Infantil de absurdo, revivo a minha meninice...
Cortei relações com o sol e as estrelas, pus ponto no mundo.
Levei a mochila das coisas que sei para o lado e p'ro fundo
Fiz a viagem, comprei o inútil, achei o incerto,
E o meu coração é o mesmo que fui, um céu e um deserto
Falhei no que fui, falhei no que quis, falhei no que soube.
Não tenho já alma que a luz me desperte ou a treva me roube,
Não sou senão náusea, não sou senão cisma, não sou senão ânsia
Sou uma coisa que fica a uma grande distância
E vou, só porque o meu ser é cómodo e profundo,
Colado como um escarro a uma das rodas do mundo.
Mas nenhuma voz lhe respondeu, pois no grande silêncio nítido e sonoro só se ouvia o rolar das pedras. Ela estava sozinha, vestida de terror, agarrada ao chão em frente do vazio.
- Responde! - gritou debruçada sobre o abismo. Longe, o eco da sua voz repetiu:
- Responde.Estava estendida na terra, com as mãos enterradas na terra, e começou a gritar como quem está perdido no meio dum sonho. Depois parou de gritar e murmurou:
- Tenho de o ir procurar.
Seguiu de rasto pelo carreiro, tateando o chão com as mãos à busca duma passagem por onde pudesse descer para procurar o homem. Mas não havia passagem. Então tentou descer pela própria vertente do abismo. Agarrando-se a ervas e raízes deixou-se escorregar ao longo do precipício. Mas os seus pés não encontravam nenhum apoio onde pudessem firmar-se. Pois a vertente descia a pique, era uma parede lisa de pedra nua.
- Tenho de voltar para o carreiro - pensou a mulher - e tenho de procurar mais adiante uma passagem.
E, agarrada a ervas e raízes, içou-se para o carreiro. Mas o carreiro tinha desaparecido. Agora havia apenas um estreito rebordo onde ela não cabia, onde nem os seus pés cabiam. Um rebordo sem saída. Aí ficou, de lado, com os pés um em frente do outro, com o lado direito do seu corpo colado à pedra da arriba e o lado esquerdo já banhado pela respiração fria e rouca do abismo. Sentia que as erva se as raízes a que se segurava cediam lentamente com o peso do seu corpo. Compreendia que agora era ela que ia cair no abismo. Viu que, quando as raízes se rompessem, não se poderia agarrar a nada, nem mesmo a si própria. Pois era ela própria o que ela agora ia perder. Compreendeu que lhe restavam somente alguns momentos. Então virou a cara para o outro lado do abismo. Tentou ver através da escuridão. Mas só se via escuridão. Ela, porém, pensou:
- Do outro lado do abismo está com certeza alguém.
E começou a chamar.
Adeus, adeus, adeus, toda a gente que não veio despedir-se de mim,
Minha família abstrata e impossível...
Adeus dia de hoje, adeus apeadeiro de hoje, adeus vida, adeus vida!
Ficar como um volume rotulado esquecido,
Ao canto do resguardo de passageiros do outro lado da linha.
Ser encontrado pelo guarda casual depois da partida —
"E esta? Então não houve um tipo que deixou isto aqui?" —
Ficar só a pensar em partir,
Ficar e ter razão,
Ficar e morrer menos...
Vivemos todos, neste mundo, a bordo de um navio saído de um porto que desconhecemos para um porto que ignoramos; devemos ter uns para os outros uma amabilidade de viagem. Não tenho fé em nada, esperança de nada, caridade para nada. Abomino com náusea e pasmo os sinceros de todas as sinceridades e os místicos de todos os misticismos ou, antes e melhor, as sinceridades de todos os sinceros e os misticismos de todos os místicos. Essa náusea é quase física quando esses misticismos são activos, quando pretendem convencer a inteligência alheia, ou mover a vontade alheia, encontrar a verdade ou reformar o mundo. Nunca amei ninguém. O mais que tenho amado são sensações minhas...É esta a minha moral, ou a minha metafísica, ou eu; transeunte de tudo - até de minha própria alma -, não pertenço a nada, não desejo nada, não sou nada - centro abstracto de sensações impessoais, espelho caído sentiente virado para a variedade do mundo. Com isto, não sei se sou feliz ou infeliz; nem me importa.
Foi-se a última nau, ao sol aziago Erma, e entre choros de ânsia e de pressago Mistério. Não voltou mais. A que ilha indescoberta Aportou? Voltará da sorte incerta Que teve? (...) Vejo entre a cerração teu vulto baço Que torna. Não sei a hora, mas sei que há a hora,(...)
O mar! O infinito! O meu amor pelo mar, cuja gigantesca simplicidade sempre preferi à sofisticada pluralidade das montanhas, é tão antigo quanto o meu amor ao sono, e sei muito bem qual a raiz que essas duas simpatias têm em comum. Trago dentro de mim muito da sabedoria dos hindus, um desejo pesado e indolente por aquela forma ou não forma da perfeição chamada “nirvana” ou o “nada”, e, embora seja artista, cultivo uma inclinação muito pouco artística à eternidade, que se exterioriza em uma repulsa contra a estrutura e a medida. O argumento contrário, acredita-me, é a correção e a decência, e, para utilizar a palavra mais séria, a moral… O que é a moral? O que é a moral do artista?
A moral do artista é a força da concentração egoísta, a determinação rumo à forma,à configuração, à delimitação, à corporalidade, rumo à renúncia à liberdade, ao infinito, ao dormitar e tecer no espaço ilimitado da percepção – resumindo numa palavra, é a vontade para a obra. Mas quão pouco nobre e ética, exangue e asquerosa é a obra nascida da uniformidade fria, sábia e virtuosa de um artista! A moral do artista é devoção, engano e autorrenúncia, é luta e necessidade, vivência, conhecimento e paixão.
19 de maio de 1934
Estou diante de minha primeira viagem pelo Atlântico, do meu primeiro encontro e convívio com o oceano, e ao fim e ao cabo, do outro lado da curvatura terrestre, do outro lado destas águas imensas, está à nossa espera Nova Amsterdão, a metrópole. Como essa, não há mais que quatro ou cinco, espécie singular e monstruosa de cidade, desmesurada no estilo e diversa da classe das cidades grandes, assim como, no âmbito da natureza e da paisagem, a categoria do primevo e do elementar se destaca monstruosamente do resto, na forma de desertos, cordilheiras e mares.
Leitura de viagem – um género cheio de conotações de pouco valor. A opinião geral pretende que o que se lê em viagem deve ser o mais fácil e leve possível,algum disparate para se “passar o tempo”. Nunca entendi por quê. Pois, deixando de lado que a dita literatura de entretenimento é sem dúvida a coisa mais aborrecida que há na Terra, não consigo aceitar que, justamente numa ocasião séria e solene como uma viagem, devamos abdicar de nossos hábitos espirituais, entregando -nos à palermice. O ambiente relaxado e descontraído da viagem criaria talvez uma disposição dos nervos e do espírito em que a palermice causasse menos repulsa que de costume? Falava ainda há pouco sobre respeito. Como tenho estima pela nossa empreitada, parece-me certo e apropriado que também tenha estima pela leitura que há de acompanhá-la. O Dom Quixote é um livro mundial – o livro justo para uma viagem pelo mundo. Escrevê-lo foi uma aventura ousada, e a aventura recetiva que se cumpre ao lê-lo está à altura dascircunstâncias. É estranho, mas jamais levei sua leitura sistematicamente até ao fim. Quero fazê-lo a bordo e chegar à outra margem deste mar de histórias, assim como, dentro de dez dias, chegaremos à outra margem do oceano Atlântico.
Não deveria fazer o que faço, isto é, sentar-me curvado e escrever. Não contribui para o bem-estar pois, como dizem os nossos companheiros de mesa norte-americanos, o mar está “a little rough”, e as oscilações do navio – tranquilas e comedidas, deve-se reconhecer – são naturalmente mais sensíveis num pavimento superior como este, onde fica a sala de leitura, do que lá em baixo. Olhar pela janela não é boa ideia, pois o sobe e desce do horizonte leva a cabeça a um estado que conhecemos de outra época da vida e que deixámos para trás; mas olhar para baixo, para o papel e para a escrita, tampouco surte melhores efeitos. Estranha obstinação em manter um hábito de toda a vida e, depois da movimentação matinal, do café da manhã, exercer alguma atividade estilística, mesmo na contramão de circunstâncias tão adversas!
Li um bom trecho do Dom Quixote ontem à tarde e à noite, ao som da música no salão azul, e quero continuar daqui a pouco numa poltrona do deque, transposição da confortável espreguiçadeira de Hans Castorp para o polo oposto. Que singular monumento! Submisso ao gosto de sua época, mais até do que a sátira dirigida a esse mesmo gosto deixaria adivinhar, submisso a ela também pelo seu espírito às vezes francamente servil e leal – ao mesmo tempo em que dela se destaca crítica e humanamente quando ingressa na esfera da poesia e da sensibilidade. Mal consigo dizer a que ponto me encanta a tradução de Tieck, esse alemão luminoso e ricamente articulado da era clássico-romântica – a nossa língua no seu momento mais feliz. Ela se presta de modo muito belo ao estilo cómico e solene da obra, que me seduz de novo a pensar que o elemento fundamental do épico é, de facto, o humor, que o humorístico e o épico são uma e a mesma coisa, por menos que essa equação se sustente objetivamente. De caráter romântico e humorístico é já o truque de estilo por meio do qual se apresenta toda a “grande e memorável história”(...)
“Da discreta e graciosa conversação que houve entre Sancho Pança e sua mulher Teresa Pança, e outros sucessos dignos de feliz recordação”. Ou, em tom paródico e zombeteiro: “Das coisas que, diz Benengeli, há de saber quem as ler, se as ler com atenção”. Humorística ainda, no sentido mais profundo, é a densidade humana, a viva ambivalência das duas personagens principais, da qual o autor tem consciência e orgulho, sobretudo diante da continuação de Avellaneda, tão odiada e tão medíocre. Essa obra de um espertalhão desajeitado que se deixou seduzir pelo sucesso mundial do livro via em dom Quixote um louco merecedor das tareias que leva e em Sancho simplesmente um comilão. O protesto ciumento e desdenhoso contra essa simplificação manifesta-se em mais de uma passagem da segunda parte de Dom Quixote e toma forma polémica no prólogo, cujo tom, de resto, é digno e comedido – ainda que apenas em aparência. Cervantes vale-se do recurso retórico de atribuir ao leitor o desejo de vingança e de zombaria, ao passo que ele mesmo se contém com uma compostura digna do cavaleiro de la Mancha. “Bem quiseras que o tratasse de asno, mentecapto e atrevido, mas coisa tal não me passa pelo pensamento: que o seu pecado o castigue, que ele coma o seu pão e com ele se avenha.” Muito cristão, muito bonito; o que o ofende mesmo é que “aquele senhor” o chame de velho e aleijado – como se estivesse ao alcance do poeta “deter o curso do tempo, como se sua ferida fosse fruto de um entrevero de taberna e não do mais glorioso dos dias” – assim ele se refere à batalha de Lepanto. “Além disso”, ele retruca engenhosamente, “há que se ter em conta que não se escreve com os cabelos grisalhos, mas com o entendimento, que soi melhorar com os anos.” Mais uma vez, encantador; mas a serenidade amena de sua cabeça grisalha não se mantém nas histórias crassas e maliciosas que ele encarrega o leitor de recontar “àquele senhor” e que devem mostrar ao espertalhão que “uma das maiores tentações do demónio consiste em pôr na cabeça de um homem que também ele é capaz de compor e mandar imprimir um livro que lhe valha fama e dinheiro”. Essas histórias dão mostra do desejo de vingança, da ira tremenda, do ódio robusto, do sofrimento ainda não apaziguado de um artista diante da confusão entre o que faz sucesso apesar de ser bom e o que faz sucesso porque é mau.
Cervantes teve que ver uma obra espúria, que se passava por continuação de seu próprio livro, “ganhar o mundo” e ser lida com igual fervor. A continuação copiava as qualidades mais grosseiras do original de sucesso – a comédia da loucura punida e da gula camponesa – e ficava nisso; faltavam-lhe a profundidade, o estilo, a melancolia e a perspicácia humana, sem que ninguém, espantosamente, desse por sua falta: a multidão não pareceu notar nenhuma diferença. É a humilhação mais terrível para um escritor: quando Cervantes fala do “dissabor e repulsa” que causou o outro Dom Quixote, ele refere -se à sua experiência pessoal, por mais que a atribua ao público, e o facto é que teve de escrever a verdadeira segunda parte de sua obra não por causa do público, mas para livrar-se do dissabor, do asco que não apenas a obra espúria mas também o sucesso de sua própria obra lhe causavam agora. É bem verdade que a segunda parte de Dom Quixote – diante da qual o leitor há de recordar que “foi talhada pelo mesmo artesão e no mesmo pano que a primeira” – foi feita para reabilitar o sucesso da primeira, para resgatar a honra literária desse sucesso estropiado. Mas é também verdade que essa segunda parte já não tem o frescor inaugural, a desenvoltura feliz da primeira, a qual mostra como, a partir de uma concepção modesta, de uma sátira vivaz e divertida, escrita inicialmente sem maiores ambições, veio a tomar forma, par hasard et par génie, um livro popular e universal. Essa segunda parte teria sido menos carregada de humanismo, de erudição e de momentos de certa frieza literária se o anseio por distinção não tivesse desempenhado um papel tão significativo na sua composição. Em especial, a segunda parte trabalha aquela densidade das personagens principais com mais nitidez e consciência; nisso, sobretudo, ela mostra ser “talhada pelo mesmo artesão e no mesmo pano que a primeira”. Dom Quixote é certamente um louco, por conta e obra da mania cavaleiresca, mas o capricho anacrónico é também a fonte de tanta e tão verdadeira nobreza, pureza, grandeza de alma, de uma compostura tão cativante e digna de respeito em todas as suas maneiras (nas
espirituais como nas físicas), que o riso por conta de sua “triste” e grotesca figura sempre se mistura a certo respeito; e não há quem dê com ele e, mesmo abanando a cabeça, não se sinta atraído por esse nobre risível e magnânimo, maníaco e irrepreensível. É o espírito, na figura de um spleen, que o move e o enobrece, que permite que sua dignidade ética saia incólume de todas as humilhações por que passa. E que Sancho Pança, o comilão, com os seus provérbios, o seu humor natural e seu bom senso campónio (mais afeito ao farnel que à “ideia”, que só rende pancadas), atine para esse espírito, tenha afeto pelo seu mestre tão bondoso quanto absurdo, permaneça a seu lado apesar das tribulações que o serviço lhe traz, não o abandone e, muito pelo contrário, continue a ser o escudeiro fiel, por mais que volta e meia tenha que contar uma mentira, é belíssimo, torna-o adorável, confere à sua figura humanidade e eleva -a da esfera da mera comicidade à esfera do humorístico e do profundo. Sancho é genuinamente popular na medida em que representa a relação do povo espanhol com a nobre loucura que ele é chamado a servir, quer queira,
quer não. Desde ontem ando com isso na cabeça. Eis aí uma nação que toma uma imagem melancólica, travestida e absurda das suas qualidades mais clássicas – a saber, a grandeza, o idealismo, a altivez fora de lugar, o cavalheirismo tão pouco lucrativo –, transforma-a no seu livro de honra, no seu livro modelar, e reconhece -se nela com uma espécie de nostalgia orgulhosa e serena. Não é notável? A grandeza histórica de Espanha é coisa de séculos distantes; por agora, o país luta por se adaptar ao nosso século. Mas o que me interessa é justamente a
diferença entre aquilo que se chama pomposamente de “história” e aquilo que é do âmbito da alma e do homem. A auto- ironia, a liberdade e a desenvoltura artística consigo mesmo talvez não tornem um povo mais apto para a história; mas essas são qualidades cativantes, e afinal de contas o cativante e o repulsivo têm lá seu papel na história. Digam o que disserem os que veem a história com pessimismo, o facto é que a humanidade é dona de uma consciência, ainda que talvez apenas estética, uma consciência derivada do gosto. Ela pode bem curvar-se diante do sucesso, do fait accompli do poder, pouco importa como ele se tenha feito valer. Mas, no fundo, ela não esquece o que se praticou de humanamente feio, violento, injusto e brutal no seu seio; e sem a sua simpatia não há, feitas as contas, nenhum poder ou sucesso que se mantenha. A história é aquela realidade comum para a qual nascemos, para a qual devemos estar aptos e contra a qual fracassa a nobreza desajustada de dom Quixote. Isso é cativante e ridículo. Mas o que seria então um dom Quixote anti-idealista, um dom Quixote sombrio, pessimista e violento, um dom Quixote da brutalidade que continuasse a ser um dom Quixote? Tão longe não foram o humor e a melancolia de Cervantes.
21 de maio de 1934
Divirto-me o dia inteiro com o engenho épico de Cervantes, que faz com que as aventuras ou pelo menos algumas aventuras da segunda parte derivem da fama literária de dom Quixote, da popularidade de que ele e Sancho Pança gozam graças ao “seu” romance, ao grande relato em que tomam corpo – isto é, graças à primeira parte. Não teriam acesso à corte dos duques se estes não tivessem antes lido sobre a formidável dupla e não quisessem agora conhecê-los “na realidade” e acolhê-los como passatempo principesco. Isso é novo e único: não conheço outro herói romanesco da literatura universal que viva, por assim dizer, da fama de sua fama, da sua condição de personagem – pois o mero retorno de figuras conhecidas em ciclos romanescos como o de Balzac é coisa bem diferente. Neste último caso, a realidade das personagens é de certo modo legitimada, fortalecida e aprofundada pela nossa velha familiaridade com eles: já andavam por aí, e agora voltam a aparecer. Mas com isso não se troca de nível, a ordem de ilusão a que pertencem continua a ser a mesma. Em Cervantes há muito mais espelhismo romântico, há muito mais magia irónica em jogo. Na segunda parte, dom Quixote e o seu escudeiro saem da esfera de realidade a que pertenciam, do livro romanesco em que viviam, para vagar em carne e osso como realidades potenciadas, alegremente saudados pelos leitores da sua história, por um mundo que, também ele, representa um grau mais alto de realidade em relação ao mundo impresso – mas que por sua vez também é um mundo criado pela narrativa, uma evocação ilusionista de um passado fictício, de modo que Sancho se pode permitir um gracejo e dizer à duquesa: “… e o seu escudeiro, que também anda pela história e que vai pelo nome de Sancho Pança, sou eu mesmo, se é que não me trocaram no berço, quer dizer, se é que não me trocaram no prelo”. E, a certa altura, Cervantes chega ao ponto de introduzir uma personagem da tão falsa e odiada continuação de Avellaneda para o convencer, à luz da realidade, de que o cavaleiro com o qual ele conviveu no âmbito do relato não tem como ser o verdadeiro e autêntico dom Quixote. São piruetas bem à maneira de E.T.A. Hoffmann, e por aí percebe-se onde os românticos as foram aprender. Talvez não fossem os maiores artistas, mas foram eles que refletiram com mais inteligência sobre as profundezas do engenho, os abismos espelhados da arte e da ilusão – e justamente porque eram artistas tanto na criação como na reflexão, estiveram perigosamente perto da dissolução irónica da forma. É sempre bom ter em mente que esse perigo ronda toda a técnica artística e humorística da evocação da realidade. Não há mais que um passo a separar a graça de certas técnicas de evocação épica e o mero truque engenhoso, o malabarismo sem forma nem fé na forma. É assim que eu mesmo ofereço ao leitor a inesperada ocasião de ver com os próprios olhos José, o filho de Jacó, sentado junto ao poço, à luz da lua, bem como a oportunidade de comparar a sua presença corpórea, atraente mas humanamente imperfeita, com a fama ideal que milénios teceram à volta de sua figura. Quero crer que o humor de um tal artifício evocativo ainda se mantenha no âmbito do que é honradamente artístico.
22 de maio de 1934
Dom Quixote é realmente uma criação singular, ingénua, de magnífica espontaneidade, soberana nas suas contradições. Não tenho como não balançar a cabeça diante das novelas intercaladas, de teor aventureiro e sentimental, bem ao estilo e ao gosto dos mesmos produtos de que o autor queria escarnecer, de tal modo que o público leitor podia reencontrar no livro exatamente aquilo de que se devia afastar – curioso regime de abstinência! Cervantes abandona o seu figurino quando entra pelas histórias pastoris, como se quisesse mostrar que também sabe fazer as coisas que a época pedia, mais ainda, que sabe as fazer como um mestre. Mas não sei ao certo se ele também abandona o seu modelo por ocasião dos discursos humanistas que põe na boca do seu herói, se com isso ele rompe a sua caracterização, leva-o além de seu nível e, em atitude contrária à arte, toma para si mesmo a palavra. São excelentes, por exemplo, o discurso sobre a educação ou aquele outro sobre a poesia que o viajante da capa verde tem a ocasião de ouvir; são repletos de razão, sentido de justiça, humanidade e nobreza formal, a tal ponto que deixam pasmo o sujeito da capa verde, “a tal ponto que foi abandonando a ideia de que fosse ele apenas um louco”. É justo que assim seja, e também o leitor deve abandonar essa opinião. Dom Quixote é louco, decerto, mas não tem nada de tolo, como talvez o próprio autor pensasse de início. Seu respeito pela criatura da sua invenção cómica vai crescendo ao longo da narrativa; esse processo é talvez o que há de mais empolgante em todo o romance; mais: ele constitui por si só um romance e coincide com o respeito crescente diante da própria obra, concebida primeiramente em termos modestos,
como brincadeira pícara e satírica, sem nenhuma antecipação da posição simbólica e humana que a figura do herói estava destinada a ocupar. Essa
mudança de perspectiva permite e aciona uma ampla solidaridade do autor com o seu herói, a tendência de elevá-lo a seu próprio nível, de torná-lo porta-voz das suas próprias ideias e opiniões e de rematar assim, com dignidade espiritual e cultura elevada, a graça cavaleiresca que a loucura confere a dom Quixote, a despeito de todas as suas manifestações lamentáveis. É precisamente ao espírito e à veemência do seu mestre que Sancho Pança muitas vezes dedica uma admiração sem fim, e outras personagens se sentem igualmente atraídos.
23 de maio de 1934
...Vou lendo meu volumezinho cor de laranja e admiro-me perante a crueldade desenfreada de Cervantes. A despeito daquela ampla solidariedade do autor com o herói, sobre a qual escrevi ontem, a despeito da estima que tem por dom Quixote, Cervantes não se cansa de inventar as humilhações mais ridículas e lamentáveis para ele e para os seus sumos desígnios, na forma de fantasias de degradação cómica. É o que acontece no episódio dos queijos que Sancho Pança, criatura de “senso comum”, levava dentro do elmo do mestre e que, num momento patético, começam a derreter sobre a cabeça do cavaleiro; o creme escorre pelos olhos e pela barba de dom Quixote, que julga que seu cérebro se está a derreter ou que ele mesmo esteja a transpirar algum humor maligno – mas não de medo, como ele declara com veemência! Há algo de sardónico, de humor selvagem nessas invenções, por exemplo, no episódio francamente execrável em que o cavaleiro é “enjaulado” e levado numa gaiola de pau – a degradação derradeira. Dom Quixote é espancado a torto e a direito, quase tanto quanto Lucius no Asno de ouro. E, todavia, o autor ama e estima o herói. Essa crueldade solta não terá algo de expiação, de troça e punição infligidas a si mesmo? Chego a pensar que o autor age como quem submete ao riso as próprias crenças nas ideias, nos homens e na perfectibilidade humana – e esse esforço amargo de se pôr em sintonia com a realidade comum talvez seja a
melhor definição de humor. Insuperável é a crítica à tradução que Cervantes põe na boca de dom Quixote: traduzir de uma língua para outra seria como ver um tapete flamengo pelo verso– “Ainda que se vejam as figuras, estão elas cheias de fios que as deformam e não têm o liso e a tez da face … . Mas não quero com isso dizer que não seja digno de louvor esse exercício de traduzir.” A caracterização é certeira. E dom Quixote só abre exceção para dois tradutores espanhóis, Figueroa e Xauregui. Com esses, não há meio de distinguir o que é tradução e o que é original. Devem
ter sido sujeitos formidáveis. Mas, em nome de Cervantes, quero abrir exceção para mais um: Ludwig Tieck, que deu ao Dom Quixote um segundo anverso, desta vez em alemão.
29 de de maio de 1934
Estou de ânimo sonhador, por ter despertado tão cedo, por conta do teor singular deste momento. Também sonhei à noite, em meio ao insólito silêncio sem máquinas, e tento recuperar o sonho nascido de minha leitura de viagem. Sonhei com dom Quixote em pessoa e sonhei que falava com ele. Assim como a realidade com que nos deparamos se distingue da concepção prévia que fazíamos dela, assim também ele tinha aspecto diferente do que se vê nas ilustrações: usava um bigode espesso e farto, tinha a testa alta e recuada, os olhos eram cinzentos, quase cegos, de sobrancelhas igualmente fartas. Não se chamava Cavaleiro dos Leões, mas Zaratustra. Agora que o tinha bem à minha frente, ele mostrava-se tão suave e tão cortês que recordei com emoção indescritível as palavras que tinha lido ontem: “Fosse apenas como dom Alonso Quixano, o Bom, fosse ainda como dom
Quixote de la Mancha, foi ele sempre de índole suave e trato agradável, pelo que era querido não só dos de casa, mas de todos os seus conhecidos.” Fui tomado de pena, amor, compaixão e admiração sem limite, à medida que aquela caracterização se confirmava diante de mim – e, como em sonho, tudo isso continua a vibrar em mim neste momento de chegada. Ideias e sentimentos demasiadamente europeus, voltados para trás! Bem à frente, no meio do nevoeiro matinal, vão-se desprendendo lentamente os altos edifícios de Manhattan, uma fantástica paisagem colonial, uma vertiginosa cidade de gigantes.
Durmo. Regresso ou espero?
Não sei. Um outro flui
Entre o que sou e o que quero
Entre o que sou e o que fui.
Sonho uma vida erudita, entre o convívio mudo dos antigos e dos modernos, renovando as emoções pelas emoções alheias, enchendo-me de pensamentos contraditórios na contradição dos meditadores e dos que quase pensaram que são a maioria dos que escreveram. Mas só a ideia de ler se me desvanece se tomo de cima da mesa um livro qualquer, o facto físico de ter que ler anula-me a leitura... Do mesmo modo se me estiola a ideia de viajar se acaso me aproximo de onde possa haver embarque. E regresso às duas coisas nulas em que estou certo, de nulo também que sou — a minha vida quotidiana de transeunte incógnito, e aos meus sonhos como insónias de acordado. E como as leituras tudo... Desde que qualquer coisa se possa sonhar como interrompendo deveras o decurso mudo dos meus dias, ergo olhos de protesto pesado para a sílfide que me é própria, aquela coitada que seria talvez sereia se tivesse aprendido a cantar.
Adormecer em casablanca e acordar em paris ou o contrário. Não interessa, nunca houve paris nem casablanca... Há um projeto que não quer adiar mais: regressar ao casablanca em madrid, mesmo sabendo que corre o risco de não encontrar nada similar ao que imagina, mas gostava de iniciar lá uma história, a beber gim, tipo intelectual de botequim...
Às vezes, em sonhos distraídos, que me surgem das esquinas do pensamento e da emoção, visiono amores.(...) Ah, que enredos complexos, em conveses de navios, em ilhas distantes, em hotéis universais, em viagens passageiras, me não encantam a distracção como vestidos expostos. Mas, de repente, e com um regresso de pesadelo estatelado, desperto do meu romantismo sexual, e coro a sós comigo de fazer com a mente de dentro a mesma coisa que fazem todos os homens. E tenho, como timbre de fidalguia fraseada, a vantagem ridícula de contra. Sim, às vezes, sonho deste modo. Às vezes sou costureira masculina, e tenho príncipes, que são princesas, e muitas vezes são outra coisa, na imaginação inevitável. E então acordado de todo, rio, quase alto, de me ver assim, como se me visse nu por baixo da nudez, como se me conhecesse esqueleto da alma, e uma alegria ponteaguda valsa nos meus devaneios. Que tristeza!
E se um dia ou uma noite um demónio se esgueirasse na tua mais solitária solidão e te dissesse: "Esta vida, assim como tu vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes: e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indivisivelmente pequeno e de grande na tua vida há de retornar, e tudo na mesma ordem e sequência - e do mesmo modo esta aranha e este luar entre as árvores, e do mesmo modo este instante e eu próprio. A eterna ampulheta da existência será sempre virada outra vez, e tu com ela, poeira da poeira!". Não te lançarias ao chão e rangerias os dentes e amaldiçoarias o demónio que te falasses assim? Ou viveste alguma vez um instante inefável, em que lhe responderias: "Tu és um deus e nunca ouvi nada mais divino!" Se esse pensamento adquirisse poder sobre ti, assim como tu és, ele transformar-te-ia e talvez te triturasse: a pergunta diante de tudo e de cada coisa: "Quero isto ainda uma vez e inúmeras vezes?" pesaria como o mais pesado dos pesos sobre o teu agir!
A criança é criativa porque é crescimento e se cria a si própria. É como um rei, porque impõe ao mundo as suas ideias, os seus sentimentos e as suas fantasias. Ignora o mundo do acaso, pré-elaborado, e constrói o seu próprio mundo de ideais. Tem uma sexualidade própria. Os adultos cometem um pecado bárbaro ao destruir a criatividade da criança pelo roubo do seu mundo, sufocando-a com um saber artificial e morto, e orientando-a no sentido de finalidades que lhe são estranhas. A criança é sem finalidade, cria brincando e crescendo suavemente; se não for perturbada pela violência, não aceita nada que não possa verdadeiramente assimilar; todo o objecto em que toca vive, a criança é cosmos, mundo, vê as últimas coisas, o absoluto, ainda que não saiba dar-lhes expressão: mas mata-se a criança ensinando-a a ater-se a finalidades e agrilhoando-a a uma rotina vulgar a que, hipocritamente, se chama realidade.
Pensemos, por exemplo, nos grandes escritores. Podemos orientar a nossa vida por eles, mas não podemos extrair das suas obras o elixir da vida. Eles deram uma forma tão rígida àquilo que os moveu que tudo isso está ali, mesmo nas entrelinhas, como metal laminado. Mas, que disseram eles na verdade? Ninguém sabe. Eles próprios nunca o souberam explicar cabalmente. São como um campo sobre o qual voam as abelhas; e ao mesmo tempo, eles são esse próprio voo. Os seus pensamentos e sentimentos assumem toda a escala da transição entre verdades ou erros que, se necessário, podem ser demonstrados, e seres mutáveis que se aproximam ou afastam de nós quando os queremos observar.
É impossível destacar o pensamento de um livro da página que o encerra. Acena-nos como o rosto de alguém que passa rapidamente por nós, numa fila com outros rostos, e por um instante surge carregado de sentido. Estou outra vez a exagerar um pouco. Mas agora queria perguntar-lhe: que coisa acontece na nossa vida que não seja aquilo que acabo de descrever? Não falo das impressões mais exactas, mensuráveis e definíveis; todos os outros conceitos em que baseamos a nossa vida não passam de metáforas que ficaram cristalizadas. Entre quantas ideias não oscila e paira um conceito tão simples como o da virilidade? E como um sopro que muda de forma a cada respiração, e nada é estável, nenhuma impressão, nenhuma ordem. Se, como eu disse, pomos de lado na literatura aquilo que não nos convém, tudo o que fazemos é reconstituir o estado original da vida.
Nunca voltes ao lugar Onde já foste feliz Por muito que o coração diga Não faças o que ele diz ...Nada do que por lá vires Será como no passado Não queiras reacender Um lume já apagado São as regras da sensatez Vais sair a dizer que desta é de vez Por grande a tentação Que te crie a saudade Não mates a recordação Que lembra a felicidade Nunca voltes ao lugar Onde o arco-íris se pôs Só encontrarás a cinza Que dá na garganta nós São as regras da sensatez Vais sair a dizer que desta é de vez...
( Junho de 2016: viagem sem retorno...)
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