Não é neccessário vivermos ao lado de alguém para nos sentirmos ligados a esse alguém mais do que a qualquer outra pessoa...

segunda-feira, 8 de janeiro de 2018

Prodígios, Conselhos e Chicotadas...

Prodígios...
"A História não é mais do que um imenso poema paralelístico, às vezes até com idêntico refrão." -Joaquim-Francisco Coelho

O físico prodigioso tem como ponto de partida os exempla insertos no Orto do Esposo, uma obra de feição didático-teológica anónima, redigida na transição do século XIV para o século XV, por um monge do mosteiro de Alcobaça. Desta obra, que revela influências de Petrarca e do pensamento ascético de Bernardo de Claraval, teve Jorge de Sena conhecimento através da Crestomatia Arcaica . Sendo considerada muito importante para compreender a mentalidade medieval, defende a renúncia aos bens terrenos e aos prazeres mundanos e elogia a procura pessoal da salvação e da verdade eterna.

Apesar de todas as suas virtudes, aquele prodigioso físico do capítulo I do Livro III do Orto do Esposo não teria suspeitado vir a renascer pelo punho imaginativo de Jorge de Sena no século XX. Na categoria actancial em que surge, no interior da obra medieva de anónimo autor, ele é o mais notável, porque, ao derramar o seu sangue virgem, salva a vida a uma nobre dama e ao seu exército, constituído por 500 cavaleiros. Por sete vezes será imersa a senhora do castelo no casto líquido que correra nas veias do príncipe, recuperando nesse banho a sua quentura natural.Depois de vários físicos terem tentado, em vão, curá-la é o pródigo viandante que traz o revigoramento à castelã e ressuscita os soldados mortos. Dom de excecionalidade à parte (que três prebendas fortalecem), o jovem físico não é o único a assomar ao longo dos quatro Livros da obra quatrocentista com capacidade de dirimir afeções e de inverter o curso da morte.


O seu autor revela-se, nesta obra, profundamente comprometido com a crítica à fugacidade dos bens terrenos, com o confronto entre o tempo e a eternidade, com a crítica à vaidade e à soberba dos sábios do mundo, num permanente elogio da simplicidade, da solidão e da contemplação, orientado por um acentuado pessimismo, onde se agiganta a meditação sobre a morte, numa linguagem marcada pela mística, veiculando o elogio da vida solitária de Petrarca, quando se refere aos filósofos gentios que souberam fugir para o ermo, numa aliança entre a sabedoria e o ascetismo, tão marcante no nosso movimento monacal. Inscreve-se pois este livro na corrente ligada aos quadros da cultura monástica e da ruralidade, que na época vinha sendo posta em causa pelas escolas catedralícias, bem como pela figura central de Pedro Abelardo.
O conteúdo doutrinal desta obra é profundamente marcado pelo estoicismo de raiz senequista, aí avultando a figura de S. Bernardo. A marca da espiritualidade cisterciense surge com mais evidência no livro III, onde o monge português aborda a vaidade das coisas humanas e acentua a vanidade e a precaridade dos valores terrenos, insubsistentes como o vento, bem como no capítulo XXXIII do livro IV, onde discorre sobre o exemplo dos filósofos que na adversidade «se mantinhão estóicos».
Não espanta por isso que neste livro se possa ler que «a vida he miragam e comparada à sombra» ou a uma imagem que aparece no espelho, discorrendo de seguida sobre as três categorias de vaidade a que estão sujeitas as coisas do mundo: variabilidade, cobiça, mortalidade, pelo que o mundo se tem de considerar como um «amigo falso», inimigo de todos os que fazem a sua vontade, destruindo cruelmente os que a ele se encostam.


Assim, assim, quero-te assim invisível.Vem.E ele(...)deixou-se ser levado para o leito, invisível o corpo mas não o prazer que sentia, perdeu a virgindade.

E, sendo assim invisível o mesmo homem que visível em um espanto de formosura,só tu podias curar-me dos meus males: eras formoso e virgem. Que eras um físico prodigioso...tu o tinhas dito e o provaste. Mas o que me curou foi poder amar-te sem te ver, sendo tu o mesmo corpo maravilhoso que eu tinha visto e que nunca é tão maravilhoso quanto se imagina que poderá ser.Invisível, foste muito mais que tudo o que, visível, me prometias. Agora, és meu, e nunca me cansarei de ti. Porque, quando quisermos, quando temermos que eu vr-te nos canse um do outro, pois que os gestos de amor são sempre os mesmos, e só o prazer o não é se não o virmos como um corpo que se move para tê-lo e dá-lo sempre poderei não ver-te, para poder ver-te, na minha alma e no fundo do meu corpo a que por graça do teu atinges, como eras e foste no momento em que, invisível, deixaste de ser virgem em mim...

CIPRIANO: Cuando importara el moverlos, genios hay, que buenos y malos llaman todos los doctos, que son unos espíritus que andan entre nosotros, dictando las obras buenas y malas, argumento que asegura la inmortalidad del alma; y bien pudiera ese dios, con ellos, sin que llegara a mostrar que mentir sabe, mover afectos.
DEMONIO: Repara en que esas contrariedades no implican al ser las sacras deidades una, supuesto que en las cosas de importancia nunca disonaron. Bien en la fábrica gallarda del hombre se ve, pues fue sólo un concepto al obrarla.


CIPRIANO: La hermosa cuna temprana del infante sol, que enjuga lágrimas cuando madruga, vestido de nieve y grana; la verde prisión ufana de la rosa cuando avisa que ya sus jardines pisa abril, y entre mansos hielos al alba es llanto en los cielos lo que es en los campos risa; el detenido arroyuelo, que el mormurar más suave aun entre dientes no sabe, porque se los prende el hielo; el clavel, qu en breve cielo es estrella de coral; el ave, que liberal vestir matices presuma, veloz cítara de pluma, al órgano de cristal; el risco que al sol engaña, si a derretirle se atreve, pues, gastándole la nieve, no le gasta la montaña; el laurel que el pie se baña con la nieve que atropella, y, verde Narciso de ella, burla sin temer desmayos en esta parte los rayos y los hielos en aquélla; al fin, cuna, grana, nieve, campo, sol, arroyo o rosa, ave que canta amorosa, risa que aljófares llueve, clavel que cristales bebe, peñasco sin deshacer, y laurel que sale a ver si hay rayos que le coronen son las partes que componen a esta divina mujer. Estoy tan ciego y perdido, porque mi pena te asombre, que, por parecerla otro hombre, me engañé con el vestido.


Um personagem levantou-se e disse. Isto é uma história. E eu disse. Sim. É uma história. Por isso podem ficar tranquilos nos seus postos. A todos atribuirei os eventos previstos, sem que nada sobrevenha de definitivamente grave. Outro ainda disse. E falamos todos ao mesmo tempo. E eu disse. Seria bom para que ficasse bem claro o desentendimento. Mas será mais eloquente. Para os que crêem nas palavras. Que se entenda o que cada um diz. Entrem devagar. Enquanto um pensa, fala e se move, aguardem os outros a sua vez. O breve tempo de uma demonstração.

"Depois deste preâmbulo, apresentado por um narrador que a revolução trouxe para ouvir as pessoas, é nomeada a primeira habitante da aldeia. Com «Carminha parecia fazer adeus, mas apenas lavava janelas», Lídia Jorge inicia um fio condutor a toda a história: em Vilamaninhos, as parecenças que iludem a realidade e trivialidades da vida de uma aldeia podem ser elevadas à condição de acontecimento invulgar, mágico. Vilamaninhos é uma pequena aldeia no sul de Portugal, mas poderia ser de qualquer outro país. A posição no planeta pouco interessa; apenas o ser pequena é condição importante. Tal como em O Físico Prodigioso, de Jorge de Sena, o romance de Lídia Jorge apresenta alguns trechos paralelos. Ainda que tenha sido pedido às pessoas para que não falassem todas ao mesmo tempo. Fica, pois, claro que todas gostam de falar. A obra é, aliás, falada. A sua singular oralidade está assente numa construção textual não convencional."

E Matilde disse. Desde o ano passado que me partiram nesta venda cinco copos de três, três copos de quartilho e dez de meios. Só havi disso tudo, trinta e cinco mil réis. Mas quem deve, tem o nome escrito naquele papel da parede. E Macário disse. Oh gente. Ouçam aqui o dó.

Conselhos...

Refugia‐te dentro de ti próprio, em especial quando fores forçado a estar no meio da multidão! É bom que te tornes diferente da maioria, desde que te possas refugiar com segurança dentro de ti mesmo.

‘Quem és tu para me dar conselhos? Acaso já te aconselhaste a ti próprio, já corrigiste o teu carácter, para te poderes armar em director da consciência alheia?’ Objecção justa, a tua; eu, contudo, não sou tão descarado que, doente eu próprio, me aplique a dar remédio aos outros! É como companheiro de sanatório que eu falo contigo da nossa comum enfermidade e te dou parte dos medicamentos que uso. Escuta, portanto, as minhas palavras como se me estivesses a ouvir falar comigo mesmo; é como se eu te permitisse o acesso aos meus segredos e discutisse comigo mesmo na tua presença.

Devemos eleger um homem de bem como modelo e tê‐lo sempre diante dos olhos, de modo a vivermos como se ele nos observasse, a procedermos como se ele visse os nossos atos’. Esse preceito, caro Lucílio, foi enunciado por Epicuro, que assim nos dota de um guardião, de um pedagogo; e com razão, pois grande parte das faltas não seria cometida se ante os faltosos se erguesse uma testemunha. Que a nossa alma, portanto, tenha alguém a quem venere e graças a cuja autoridade torne mais nobre mesmo o seu mais íntimo recesso. Feliz o homem que, não apenas pela sua presença, mas até pela sua imagem torna os outros melhores! Feliz o homem capaz de ter por alguém tanto respeito que a simples lembrança do modelo basta para lhe dar ordem e harmonia espiritual! Quem for capaz de ter por alguém um tal respeito, em breve inspirará por seu turno respeito idêntico.

Máximas
Ter opiniões definidas e certas, instintos, paixões e carácter fixo e conhecido — tudo isto monta ao horror de tornar a nossa alma um facto, de a materializar e tornar exterior. Viver é um doce e fluido estado de desconhecimento das coisas e de si próprio (e o único modo de vida que a um sábio convém e aquece). Saber interpor-se constantemente entre si próprio e as coisas é o mais alto grau de sabedoria e prudência. A nossa personalidade deve ser indevassável, mesmo por nós próprios: daí o nosso dever de sonharmos sempre, e incluirmo-nos nos nossos sonhos, para que nos não seja possível ter opiniões a nosso respeito. E especialmente devemos evitar a invasão da nossa personalidade pelos outros. Todo o interesse alheio por nós é uma indelicadeza ímpar. O que desloca a vulgar saudação — como está? — de ser uma indesculpável grosseria e o ser ela em geral absolutamente vã e insincera.
Amar é cansar-se de estar só: é uma cobardia portanto, e uma traição a nós próprios (importa soberanamente que não amemos).
Dar bons conselhos é insultar a faculdade de errar que Deus deu aos outros. E, de mais a mais, os actos alheios devem ter a vantagem de não serem também nossos. Apenas é compreensível que se peça conselhos aos outros — para saber bem, ao agir ao contrário, quem somos bem nós, bem em desacordo com a Outragem.


Conselhos às mal-casadas (as mal-casadas são todas as mulheres casadas e algumas solteiras)

a)A arte toda, toda a libertação, está em submeter o espírito o menos possível, deixando ao corpo, que se submeta à vontade. Ser imoral não vale a pena, porque diminui, aos olhos dos outros, a vossa personalidade e a banaliza. Ser imoral dentro de si, cercada do máximo respeito alheio. Ser esposa e mãe corporeamente virginal e dedicada, e ter, porém contactos inexplicáveis com todos os homens da vizinhança, desde os merceeiros até (…) — eis o que maior sabor tem a quem realmente quer gozar e alargar a sua individualidade, sem descer ao método da criada de servir, que, por ser também delas é baixo, nem cair na honestidade rigorosa da mulher profundamente estúpida, que é decerto filha do interesse. Segundo a vossa superioridade, almas femininas que me ledes, sabereis compreender o que escrevo. Todo o prazer é do cérebro, todos os crimes que se dão é só em sonhos que se cometem. Lembro-me de um crime belo, real. Não o houve nunca. São belos os que nós só sonhamos. Bórgia cometeu belos crimes? Acreditai-me que não cometeu. Quem os cometeu belíssimos, profusos, frutuosos foi o nosso sonho de Bórgia, foi a ideia de Bórgia que há em nós. Tenho a certeza que o César Bórgia que existiu era um banal e um estúpido, tinha de o ser porque existir é sempre estúpido e banal.
Dou-vos estes conselhos desinteressadamente aplicando o meu método a um caso que me não interessa. Pessoalmente os meus sonhos são de império e glória; não são sensuais de modo algum. Mas quero ser-vos útil, ainda que mais não seja só para me arreliar porque detesto o útil. Sou altruísta a meu modo.
b) Proponho-me ensinar-lhes como trair o seu marido em imaginação. Acreditem-me: só as criaturas ordinárias traem o marido realmente. O pudor é uma condição sine qua non de prazer sexual. O entregar-se a mais de um homem mata o pudor.Concedo que a inferioridade feminina precisa de macho. Acho que, ao menos se deve limitar a um macho só, fazendo dele, se disso precisar, centro de um círculo de raio crescente de machos imaginados. A melhor ocasião para fazer isso é nos dias que antecedem os da menstruação.Assim:
Imaginam o seu marido mais branco de corpo. Se imaginam bem, senti-lo-ão mais branco sobre si.
Retenham todo o gesto de sensualidade excessiva. Beijem o marido que lhes estiver em cima do corpo e mudem com a imaginação o homem num olhar belo que lhes estiver em cima da alma.
A essência do prazer é o desdobramento. Abram a porta da janela ao Felino em vós.
Como tracasser o marido. Importa que o marido às vezes se zangue.O essencial é começar a sentir a atracção pelas coisas que repugnam não perdendo a disciplina exterior.
A maior indisciplina interior junta à máxima disciplina exterior compõe perfeita sensualidade. Cada gesto que realiza um sonho ou um desejo, irrealiza-o realmente.
A substituição não é tão difícil como julgam. Chamo substituição à prática que consiste em imaginar o gozo com um homem A quando se está copulando com um homem B.
Minhas queridas discípulas, desejo-lhes, com um fiel cumprimento dos meus conselhos, inúmeras e desdobradas volúpias […] com o animal macho a que a Igreja ou o Estado as tiver atado pelo ventre ou pelo apelido.
Porque não aconselho eu isto aos homens também? Porque o Homem é outra espécie de ente. Se é inferior, recomendo-lhe que use de quantas mulheres puder: faça isso e sirva-se do meu desprezo quando (…). E o Homem superior não tem necessidade de nenhuma mulher. Não precisa de posse sexual para a sua volúpia. Mas a mulher, mesmo superior, não sente [?] isto: a mulher é essencialmente sexual.

Chicotadas...

Cessar, acabar finalmente, mas com uma sobrevivência translata, ser a página de um livro, a madeixa de um cabelo solto, o oscilar da trepadeira ao pé da janela entreaberta, os passos sem importância no cascalho fino da curva, o último fumo alto da aldeia que adormece, o esquecimento do chicote do carroceiro à beira matutina do caminho... O absurdo, a confusão, o apagamento — tudo que não fosse a vida... E durmo, a meu modo, sem sono nem repouso, esta vida vegetativa da suposição, e sob as minhas pálpebras sem sossego paira, como a espuma quieta de um mar sujo, o reflexo longínquo dos candeeiros mudos da rua. Durmo e desdurmo.

Mas ah, nem a alcova era certa — era a alcova velha da minha infância perdida! Como um nevoeiro, afastou-se, atravessou materialmente as paredes brancas do meu quarto real, e este emergiu nítido e menor da sombra, como a vida e o dia, como o passo do carroceiro e o som vago do chicote, que põem músculos de se levantar no corpo deitado da besta sonolenta.

"Como evitar o naufrágio de um romance? O novo livro de Ana Margarida de Carvalho dá fim à deriva na literatura nacional, ao recuperar estruturas e vozes das nossas letras em vez de experimentalismos pouco certeiros."

"Aviso ao leitor de escritores nacionais sobre o romance Não Se Pode Morar Nos Olhos de um Gato: este livro não é para menores. Destina-se aos que não aceitam que a língua portuguesa possa continuar a ser maltratada com textos em que se usam poucos vocábulos e o esforço intelectual do escritor morre ainda muito longe da praia, às mãos de leituras sem objetivo.
Nas epígrafes iniciais do livro está uma em que se diz: "Nenhum animal foi maltratado durante a escrita deste romance." A ser verdade, diga-se então que a crueldade da escritora esteve apenas centrada no maltratar dos leitores ao seu segundo romance, Não Se Pode Morar Nos Olhos de um Gato. Isto porque ao longo das 341 páginas não há um momento de sossego para quem as vai virando uma atrás da outra de forma urgente, tal é a forma como Ana Margarida de Carvalho maneja o chicote da escrita. Como se fosse o capataz da sua história a esfolar o escravo amedrontado, ou as mulheres distantes e os homens com medo, a lutarem pela vida uns à custa dos outros e contra a maldição do mar. Não se assuste o leitor com este início de opinião, é que quando pegar no romance vai espantar-se ainda mais com o efeito em si do frémito criativo que ocupa todas as páginas. A escritora desfaz o cânone literário em vigor e oferece uma nova leitura àquilo a que se chama romance nacional - já o tinha conseguido em muito à primeira experiência ficcional - , trazendo à memória do leitor momentos que soam a José Saramago, a Gil Vicente, a António Lobo Antunes e a Miguel Torga. Até à ladainha das mulheres das aldeias perdidas e dos homens que gemiam antigamente a lavrar a terra, ou de missas desesperadas. Não é que imite esses escritores, antes se lhe assemelha na capacidade de redigir um romance em que o leitor é obrigado a lembrar-se destes nomes por esta ou aquela razão, comprovando que a nossa literatura tem uma corda que de vez em quando uns a vão pegando e não negando..."

Esta apresentação é totalmente pertinente, ao afirmar: "Ana Margarida de Carvalho maneja o chicote da escrita,". Eu devo ser uma leitora menor, neste romance que , com enorme humildade, a autora considera só para " bons leitores". Irritou-me lê-lo, entediou-me :achei-o confuso, pretensiosamente confuso,penoso de ler. Senti-me, de facto, chicoteada pelo abuso de, despropositadamente, roubar um verso de O'Neill para um título que me impeliu a comprar este romance ...

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