Não é neccessário vivermos ao lado de alguém para nos sentirmos ligados a esse alguém mais do que a qualquer outra pessoa...

sexta-feira, 18 de maio de 2018

Ensaio sobre a loucura...

A criação artística e a loucura...Loucura e racionalidade.
A loucura de Quixote terá intervalos de lucidez ou serão esses intervalos de lucidez a prova definitiva da sua peculiar loucura? As suas palavras são as de um excêntrico, mas não as de um homem que perdeu o juízo. Vai expondo os seus argumentos com segurança socrática: defende a superioridade das armas sobre as letras humanas porque estas almejam estabelecer as leis e preservá-las e aquelas garantem aos homens o maior bem, que é a paz.
Amor abstrato , amor petrarquista absoluto, de índole platónica, dedicado não à amada inatingível, mas inexistente. Ao fascinante tema da prevalência do sentimento sobre o objeto do amor, colocou Vergílio Ferreira , no seu livro Pensar, a seguite pergunta:“Porque te ris do pobre D. Quixote por amar a Dulcineia, que não existia? Mas todo o homem só ama a mulher que não existe. E bom é isso. Porque se ela existisse, o amor deixava de existir. Mesmo que ele a ame, como supõe. Porque todo o amor só existe nos intervalos de a pessoa amada existir”.

D. Quixote confunde rebanhos de ovelhas com exércitos inimigos e acaba alvo das pedradas certeiras dos pastores que lhe metem duas costelas para dentro e lhe fazem saltar três ou quatro queixais para fora. Nenhuma das outras ilusões nefastas que Cervantes inventou para o seu cavaleiro teve a permanência dos moinhos de vento.

A ilha não existe, o cargo de governador tampouco, mas é como se existissem, exactamente como no contrato que se estabelece entre o leitor e a obra literária, entre o leitor e o romance de Cervantes ou qualquer outra obra de ficção.




Prefácio

http://vidasemparedes.com.br/como-e-visita-ao-museu-da-loucura-em-barbacena/ - Museu da loucura




Não, não creio em mim.
Em todos os manicómios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?


A literatura e a poesia,a meu ver, estão mais perto da realidade que, por exemplo, a investigação psicológica. Esta orienta-se mais pelo mito da realidade e pelo mito das estruturas daí decorrentes. O artista, pelo contrário, consegui manter-se ligado às necessidades e motivações humanas. Um escritor escreve para se opor , com a sua força criativa, à fraude da opinião vigente.

Enquanto o conformista defende a má mãe como sendo boa, o rebelde procura a boa mãe, sendo o seu modo de agir, na realidade, determinado pela influência da má mãe.

Fugimos, cada vez mais, do nosso deserto interior, do nosso vazio (…) Enquanto a cisão ainda não se efetuou, reagimos ao que fazemos e ao que nos acontece com sensações de dor, desamparo, ou felicidade e curiosidade. Como fazem parte da nossa experiência de vida, essas reações são continuamente integradas na nossa psique e aí continuam a fazer o seu efeito. São elas que nos fornecem as energias criativas, uma vez que determinam a nossa recetividade em tudo que interfere connosco vindo de fora. Mas a criatividade diminui na medida em que menosprezamos tais sensações. Uma vez separados do nosso interior, reagimos apenas com ideias e conceitos obrigatórios e pré-fabricados. Daqui até à transformação em robot já não falta muito.
Se a dor, a preocupação e a impotência são negadas por serem consideradas fraquezas, (…) o interior é neutralizado e desligado da engrenagem da vida diária. E, assim, o mundo interior afunda-se cada vez mais no inconsciente. Mas ele continua a ser o motor, mesmo que incógnito, do nosso modo de agir, pensar e sentir.
Há, portanto, dois estados mentais diametralmente opostos: onde o mundo interior é acessível, uma pessoa será capaz de reagir de uma forma criativa aos estímulos externos. Pode mesmo existir como mundo interior inconsciente, desde que seja recuperável. A vida interior é uma entidade muito flexível que tem uma grande capacidade de reação.
No tipo contrário é diferente: se o interior sensível estiver bloqueado, os contatos do indivíduo com o mundo exterior deixá-lo-ão inalterado. Ou melhor: nem existirá um verdadeiro contato com o exterior. A medida do isolamento interior daí decorrente está diretamente relacionada com o ódio de si próprio. Este é provocado pela participação ativa na sujeição ao mando de uma “realidade” que exige a negação de sentimentos autónomos.

O recalcamento do desespero e do desequilíbrio interior, ou seja, o afastamento do seu interior, caracteriza aquelas pessoas, das quais supomos estarem plenamente inseridas na realidade. Essa impressão é causada pelo facto da nossa ideia de “realidade” estar feita à medida desse tipo de personalidade, o que leva a que tal ideia seja aparentemente confirmada as vezes que for preciso. Por isso, o poder de decidir sobre os nossos destinos costuma ser entregue justamente a esse tipo de gente, muito embora não esteja à altura de tal responsabilidade. Mas assim acontece também por essas pessoas encarnarem as nossas próprias fantasias de realismo e força.
O tema deste livro é, por isso, a índole traiçoeira de uma “saúde” que oculta a falta de um verdadeiro Eu e que, ao mesmo tempo, serve de meio para fugir ao caos interior provocado por esse defeito. A separação do interior impossibilita o desenvolvimento de um Eu autêntico.

São estas as pessoas que quero apresentar como as realmente loucas entre nós. Põem-nos todos em perigo, porque são incapazes de encarar de frente o caos, a raiva e o vazio que os preenchem.” A ideia que ressalta e que é preocupante, é que socialmente estamos a criar e favorecer robots, pessoas com funcionamento psicopático, desligadas da sua experiência interior, em negação do seu mundo interior, o que por sua vez favorece que se tornem insensíveis quer a si próprias quer aos outros.

Mais preocupante ainda é de facto este funcionamento desconectado das emoções e vivências internas estar a servir de modelo para a saúde mental – quantas vezes o objetivo verbalizado de quem nos procura é “ajude-me a deixar de sentir, isto é insuportável” ou o objetivo dos familiares e amigos é “ele/ela é demasiado sensível, cure-o/a desta sensibilidade, é intolerável”.

Enquanto rotularmos vulnerabilidade, tristeza, medo como fraquezas, e uma postura estoica e inabalável como forças, estamos condenados, vamo-nos destruindo aos poucos, perdendo o potencial humano e criativo para ideais mecanicistas e económicos que funcionam para números e robots mas definham as pessoas.

Assustador que seja permitirmo-nos sentir a tristeza, o medo, a dor,…, só nesta reconexão recuperamos o nosso potencial criativo e humano e podemos aspirar a uma verdadeira saúde mental, um verdadeiro bem-estar, e um verdadeiro sentido de humanidade.




When you’re feeling like a lover Nothing really matters anymore I saw you standing there in the supermarket With your red dressing falling And your eyes are to the ground Nothing really matters, nothing really matters When the one you love is gone You’re still in me, baby I need you In my heart, I need you / Cause nothing really matters I’m standing in the doorway You’re walking ‘round my place in your red dress, hair hanging down With your eyes on one We love the ones we can Cause nothing really matters When you’re standing, standing I need you, need you / Cause nothing really matters We follow the line of the palms of our hands You’re standing in the supermarket Nothing, holding hands In your red dress, falling, falling in, falling in A long black car is waiting ‘round I will miss you when you’re gone I’ll miss you when you’re gone away forever Cause nothing really matters I thought I knew better, so much better And I need you I need you / Cause nothing really matters On the night we wrecked like a train Purring cars and pouring rain Never felt right about, never again Cause nothing really matters Nothing really matters anymore, not even today No matter how hard I try When you’re standing in the aisle, and no, baby Nothing, nothing, nothing I need, I need, I need you / I need you I need you / Just breathe, just breathe I need you

Embora a peça de Eurípides não tenha obtido um êxito imediato, foi esta versão do mito que divulgou definitivamente a lenda de Medeia filicida. παρ' ούδετέρωι κείται ή μυθοποιία - "ο assunto desta tragédia não se encontra em nenhum dos outros dois [grandes trágicos]"

χρην γαρ άλλοθέν πόθεν βροτους παΐδας τεκνουσθαι, θηλο δ' ουκ είναι γένος
"Deviam os mortais gerar os filhos de outra maneira, e não existir o sexo feminino."

Xo. αλλ' κτανεΐν σον σπέρμα τολμήσεις, γύναι;
Μη. ούτω γαρ αν μάλιστα δηχθείη πόσις.
"Coro: Mas tu hás-de atrever-te a matar a tua descendência, ó mulher?
Medeia: Nada morderá mais rijo no coração de meu marido."

ουκ αν δυναίμην χαιρετώ βουλεύματα τα πρόσθεν αξω παΐδας έκ γαίας έμούς.
"Não, eu não seria capaz. Deixá-las ir, as minhas decisões anteriores. Levarei desta terra os filhos, que são meus."

καίτοι τί πάσχω; βούλομαι γέλωτ' οφλεΐν εχθρούς μεθεΐσα τους έμούς άζημίους;
"Ε contudo, que se passa em mim? Quero provocar o escárnio dos meus inimigos, deixando-os sem castigo?"

και μανθάνω μεν σία δραν μέλλω κακά, θυμός δε κρείσσων των έμδν βουλευμάτων,δσπερ μεγίστων αίτιος κακών βροτοΐς.
" Ε compreendo bem ο crime que vou perpetrar, mas, mais potente do que as minhas deliberações, é a paixão, que é a causa dos maiores males para os mortais."

Φίλαι, δέδοκται τοδργον ά>ς τάχιστα μοι παΐδας κτανούσηι τησδ' άφορμδσθαι χθονός, και μή σχολή ν αγουσαν έκδουναι τέκνα άλλη φονευσαι δυσμενεστέρα! χερί. πάντως σφ' ανάγκη κατθανεϊν ε πει δε χρή, ημείς κτενουμεν οϊπερ εξεφύσαμεν.
"Amigas, decidida está α minha acção: matar os filhos o mais depressa que puder e evadir-me desta terra, não vá acontecer que, ficando eu ociosa, abandone as crianças, para serem mortas com mão mais hostil. É absoluta a necessidade de as matar, e, já que é forçoso, matá-las-emos nós, nós que as gerámos."

cru δ' ουκ έμελλες ταμ' άτιμάσας Μχη τερπνόν διάξειν βίοτον έγγελων έμον
"Tu não havias de gozar uma doce vida, depois de teres desprezado o meu leito, escarnecendo de mim."

A maior parte dos homens adotou um sistema determinado de convenções: É a gente de juízo...

O Amor? Pf...Uma necessidade orgânica. Para evacuar preciso de um vaso de loiça; para amar precisamos de um recipiente de carne... Faço estátuas... Em vez de fazer carne com a minha carne, faço vida com as minhas mãos... Mulheres? ... Para quê? Não tenho as minhas estátuas, não tenho mármore? Dizem vocês, literatos cretinos, descrevendo o corpo de uma mulher ideal" as suas pernas , bem torneadas e nervosas, eram duas colunas de rijo mármore..." Apesar da vossa grande imbecilidade, compreendem que a suprema beleza está em parecer pedra. Ora eu tenho pedra, para que hei de querer carne, pateta? ... E a dizer isto, acariciava os seios duma maravilhosa dançarina grega.

A escultura faz corpos: eu faço corpos. A literatura faz almas: tu fazes almas. Se pudéssemos conjugar as nossas duas artes , faríamos vida.

Tu não podes avaliar o tamanho do meu suplício...Não podes... A tua alma não compreende a minha... Tenho horror à vida...meu amigo, tenho horror à morte; menos horror talvez...mais horror...ignoro...Não posso viver, não posso viver...Não quero morrer...não quero morrer...Que ando eu a fazer no mundo? O mesmo que as outras pessoas bem sei... Ah! mas é justamente isso que me aterra, que me horroriza.

Enganaram-se vocês e os médicos com isso a que chamam loucura. O vosso espírito é demasiadamente acanhado para compreender tudo o que não seja o comum, o vulgar.

Diálogo com kierkegaard, apesar de , certamente , Sá-Carneiro nunca tenha lido este filósofo...

Marcela e Raul. Espíritos despreendidos,francos e livres, não se envergonhando de ser animais; possuíram-se encarnando o acto como o mais natural, o mais humano, visto que é ele que fabrica a vida, que fabrica os homens.

"O que há de maldito, num noivado, continua a ser sempre o ético nele contido. O ético é tão entediante na ciência quanto na vida. Que diferença, sob o céu da estética tudo é leve, belo, passageiro! Quando chega a ética, tudo se torna duro, angular, infinitamente
langweiling. No mais rigoroso sentido, um noivado não tem entretanto realidade ética, tal como um casamento, o qual só tem validade ex consensu gentium." Kierkegaard

O meu maior prazer – exclamava – seria passear com o teu corpo nu, mostrá-lo pelas ruas para que toda a gente pudesse admirar a minha obra-prima! Sim! Fui eu que formei, que dei fogo… vida a este corpo!...

"Eros era o deus do amor, mas ele próprio não estava apaixonado. Ainda que os restantes deuses ou homens encontrassem vestígios do poder do amor em si mesmos, atribuíam-no a Eros, imputavam-lho, mas Eros, ele mesmo, não se apaixonava; e ainda que tal lhe tenha acontecido uma vez, tratara-se, então, de uma excepção e, embora fosse o deus do amor, ficava bem atrás dos outros deuses e dos homens quanto ao número de aventuras." Kierkegaard

– Porque te pões amuada? Não queres que eu trabalhe? Ciúmes?... Ah… ah… Um modelo é um manequim sem vida… uma coisa apenas… uma coisa bela, é certo.
– Ela não é um modelo.
– O que é então?
– Uma actriz.
– Ora… ora… – volveu Raul – que faz isso?
– Muito. Já uma vez te servi de modelo, e lembro-me perfeitamente que não fui para ti um simples manequim…


"Decorrido um curto espaço de tempo, um das partes é a primeira a reparar que algo vai mal; queixa-se agora a outra parte e grita aos céus: infidelidade, infidelidade! No decurso de mais algum tempo, a outra parte chega ao mesmo ponto, o que proporciona uma neutralidade, na medida em que a infidelidade recíproca é compensada pelo contentamento e prazer mútuos." Kierkegaard

É horrível a vida! Somos novos, amamos, e cada dia vai consumindo o nosso organismo, envelhecendo-nos… Assistimos, nós mesmos, à morte lenta do nosso corpo… Enquanto beijamos uma boca ardente, enquanto modelamos a carne de um corpo divino, «vai-nos minando o tempo, o tempo – o cancro enorme!...» Oh! bastante razão tinha eu queando me queria aborrecer para o Tempo levar mais tempo a passar!

Se Marcela pensasse como eu, podíamos ser tão felizes… tão felizes… Morrer nos seus braços… a beijar-lhe a boca… a morder-lhe os seios… Morrer com ela… com os nossos corpos entrelaçados… num êxtase supremo dos sentidos… da alma prestes a evolar-se… Ah! Como seria bom… Morríamos romanticamente, numa noite de luar, rodeado de flores… de orquídeas… de rosas… de muitas rosas… Gostava tanto de morrer assim… tanto… Para morrer só falta-me a coragem… tenho medo… Mas ela não pensa como eu… ela pensa como todos… Ela gosta da vida… da vida… da vida… da vida!.

"A reflexão de quase toda a gente prende-se sempre às nossas pequenas diferenças, sem que, naturalmente, nos apercebamos da nossa única necessidade (porque a espiritualidade está em nos apercebermos dela), por isso nada percebem dessa indigência, dessa estreiteza, que é a perda do eu, perdido não porque se evapore no infinito, mas porque se fecha no finito, e porque em vez de um eu se torna num número, mais um ser humano, mais uma repetição dum eterno zero." Kierkegaard

Ela disse-me muita vez: «No dia em que tu me enganares, também eu te enganarei: É a pena de Talião, meu rico…» Ela sabe que a enganei… que tive uma amante… Vingarse-ia? Ah! Vingou-se decerto… todas as mulheres são vingativas… A sua alegria é da vingança.

– Não fujas… não chores…Isto é vitríolo… vou-to lançar ao rosto… espalhá-lo pelo teu corpo… Vou-te matar o corpo para dar mais vida à alma… vou-te dar a eternidade… fazer parar o tempo… Espera… não grites… não tenhas medo… nem faz doer… nem faz doer… E mesmo que fizesse… É para seres feliz… muito feliz...
O escultor, como que pregado ao solo, não passou a porta. Com os olhos desmesuradamente abertos e os cabelos em pé, olhava como um sonâmbulo para o corredor por onde Marcela tinha desaparecido… ouvia os seus gritos alucinantes…


Se ao menos endoidecesse deveras!
Mas não: é este estar entre,
Este quase,
Este poder ser que...,
Isto.
Um internado num manicómio é, ao menos, alguém,
Eu sou um internado num manicómio sem manicómio.
Estou doido a frio,
Estou lúcido e louco,
Estou alheio a tudo e igual a todos:
Estou dormindo desperto com sonhos que são loucura
Porque não são sonhos
Estou assim..


Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...


Quando a loucura não é mera criação artística, mas uma doença cruel, toda a beleza literária da subversão linguística desaparece...


Muitos dos traços do estilo de Ângelo de Lima, como as suspensões sintáticas, a maisculação de termos, o uso significante de vocábulos, o vago, têm uma afinidade com a estética paúlica e interseccionista, e até com estéticas precedentes,pelo que as dificuldades de legibilidade levantadas pela poesia de Ângelo de Lima decorrerão menos de uma relação entre linguagem e loucura, do que de uma opção estética próxima do modernismo. Será verdade?

Fernando Guimarães, que organizou, em 1971, a primeira edição da sua obra, afirma: "se a linguagem corre um risco, não é ainda o da sua destruição. Será o de se diversificar em múltiplos eixos que nos abrem o caminho para múltiplas leituras realizadas em torno do mesmo termo ou, até, do mesmo texto."

Pára-me de repente o Pensamento ...
- Como que de repente refreado
Na Douda Correria em que levado ...
- Anda em busca da paz, do esquecimento...

Pára Surpreso... Escrutador... Atento
Como pára... um Cavalo Alucinado
Ante um Abismo... ante seus pés rasgado...
Pára... e Fica... e Demora-se um Momento...


Pára e fica na doida correria...
Pára à beira do abismo e se demora
E mergulha na noite escura e fria

Um olhar de aço que essa noite explora...
Mas a espora da dor seu flanco estria
E ele galga e prossegue sob a espora.


Este poema manifesta a interpretação poética de um fenómeno esquizofrénico peculiar, o bloqueio do pensamento, como um distúrbio das associações que regem o curso do pensamento, assim descrito nas palavras de um outro esquizofrénico, Antonin Artaud: "contracção que bloqueia o meu pensamento a partir do interior, [que] o torna rígido como num espasmo; o pensamento, a expressão pára porque o fluxo é demasiado violento, porque o cérebro quer dizer demasiadas coisas em que pensa simultaneamente. Dez pensamentos em vez de um apressam-se para a saída, o cérebro vê todo o pensamento de uma só vez com todas as suas circunstâncias, e também vê todos os pontos de vista que este pode assumir".

Ângelo de Lima parece querer traduzir no poema a necessidade consciente do desvio do pensamento para uma dimensão nova e infinita, que se mostra, ao mesmo tempo, catalisadora de realidades diferentes.

O homem rasteja, semelhante ao verme Por que não há-de a paz da sepultura - Quanto labor sob a aparente calma! Servir d'abrigo àquele ser inerme, De que há-de um dia após tarefa obscura Surgir vivaz, alada e flor, a Alma.

Eu Ontem Ouvi-te...Andava a luz Do teu olhar, Que me seduz A divagar Em torno a mim.

Não consigo apreciar como poeta. Interessa-me como homem, como paradigma humano , como exemplo geracional: viveu internado, em hospitais psiquiátricos , os últimos 25 anos da sua vida. A geração de orpheu, nomeadamente fernando pessoa, interessa-se pela sua doença ou pela qualidade da sua poesia?? Há algo de perverso no elogio de ângelo de lima:os jovens de orpheu admiram este homem que não é louco por opção, mas por condenação, transformando-o numa espécie de ídolo, fazendo dele qualquer coisa que não sei explicar, mas que não está acima do mal... Havia por parte de fernando pessoa um tal empenho no sentido de associar génio e loucura, mediante manifestações literárias, que Ângelo de Lima passa a ser um caso emblemático entre os poetas órficos...Triste celebridade...

Aos meus Amigos d’Orpheu
— Mia Soave… — Ave?!… — Almeia?!…
— Mariposa Azual… — Transe!…
Que d’Alado Lidar, Canse…
— Dorta em Paz… — Trespasse Ideia!…
— Do Ocaso pela Epopeia…
Dorto… Stringe… o Corpo Elance…
Vai À Campa… — Il C’or descanse…
— Mia soave… — Ave!… — Almeia!…
— Não doi Por Ti Meu Peito…
— Não Choro no Orar Cicio…
— Em Profano… — Edd’ora… Eleito!…
— Balsame — a Campa — o Rocio
Que Cahe sobre o Ultimo Leito!…
— Mi’Soave!… Edd’ora Addio!…


Este poema de ângelo lima é valorado pelos poetas de orpheu e por herberto hélder: "todos concordam na alta apreciação de um mesmo poema..."

Os nossos psychiatras estudaram psychiatria. Estão portanto competentes para dar uma opinião sobre assumptos psychiatricos. Se tivessem estudado biologia, estariam competentes para dar uma opinião sobre assumptos biologicos. Para dar uma opinião sobre literatura, parece, pois, que era mister que tivessem estudado – não psychiatria, que só os habilita a opinar sobre psychiatria – mas literatura.
Fernando Pessoa teve razão, ao indignar-se com a atitude dos psiquiatras, uma vez que estes, na época, diagnosticaram como alienados mentais todos os poetas de orpheu, instalando uma inadmissível confusão entre a loucura / subversão artística e loucura esquizofrénica...

Para esta confusão, quase promícua, terão contribuído textos como estes:

Começo pela parte psychiatrica. A origem dos meus heteronymos é o fundo traço de hysteria que existe em mim. Não sei se sou simplesmente hysterico, se sou, mais propriamente, um hystero-neurasthenico. Tendo para esta segunda hypothese, porque ha em mim phenomenos de abulia que a hysteria, propriamente dita, não enquadra no registo dos seus symptomas. Seja como fôr, a origem mental dos meus heteronymos está na minha tendencia organica e constante para a despersonalização e para a simulação. fernando pessoa

Não tenhas mêdo de estares a ver a tua cabeça a ir diretamente para a loucura, não tenhas mêdo! Deixa-a ir até á loucura! Ajuda-a a ir até á loucura. Vae tu também pessoalmente, co’a tua cabeça até a loucura! Vem ler a loucura escripta na palma da tua mão. Fecha a tua mão, com força. Agarra bem a loucura dentro da tua mão! Senão… se tens mêdo da duvida e te pões a fugir d’ella por môr da loucura que já está á vista, se não começas desde já a desbastar a fantasia que cresceu no logar marcado para ti, lá em baixo na terra; se não pretendes transformar essa fantasia em imaginação tranquila e creadora… … um dia a loucura virá plo seu próprio pé bater á tua porta, e tu, desprevenido, e tu sem mãos para a esganar... almada negreiros

Eu estou doido. Agora é que já não há duvidas. Se lhe disser o contrário numa carta próxima e se lhe falar como dantes – você não acredite: o Sá- Carneiro está doido. Doidice que pode passear nas ruas – claro. Mas doidice. Assim como o Ângelo de Lima.sá-carneiro

[…] após irregularidades de conduta, por excitações irregulares de sentimento, creio que judicialmente, a sociedade portuense acordando tardia da bronquidão de sentimentos mentais legais, à sobreexcitação prematura de uma espécie de poltronaria, – isto num
grosseirismo, a que a vaidade de paverna não deixou na sombra, e assim bem me foi sensível – me encerrou no Hospital do Conde de Ferreira, aonde a ingénua reclamação do revoltado na surpresa mais auxiliou mentalmente o só motivado encerramento, bastante,
custosamente sofrido durante 3 anos e tal.
ângelo de lima

Se eu quisesse enlouquecia (...)e eu que sou louco, um pouco, não ao ponto de ser belo ou maravilhoso ou assintáctico ou mágico, mas: um pouco louco, porque faço com mãos estilísticas um inverno fora e dentro dos estados naturais […]
Enquanto nós, os loucos, nos alimentamos de apenas intransigência, emoções truculentas, cândida violência de ideias, e vivemos da luminosidade da própria cabeça, os senhores, tão irrefutavelmente sentados à mesa antropófaga, devoram o, por assim dizer,o nosso corpo literal. Vivemos do medo e da sua gesticulação. E é desse medo que se alimentam os senhores, mestres de alguma vil ciência que temos de usurpar, de aprender. herberto hélder

Ser louco parecia ser conditio sine qua non para ser artista, para ser poeta...

Qual a verdade sobre a dimensão literária da loucura de ângelo de lima?

Eu não estou doudo.
Tenho sido manejado como um puro manequim. Os seus meios de manejo têm sido — a mim aqui ao seu dispor abandonado por toda uma sociedade, a começar por aqueles que mais estrito dever tinham de tal não fazer — os seus meios de acção são, já a tortura, já a sugestão, já o veneno. A tortura consiste em maus tratos aqui, sequestros, insultos, intrigas por aí, etc. A sugestão consiste em alusões nas conversas, recadinhos como que involuntariamente enviados, etc. O veneno, esse é o subministrado nas comidas que encontro por ração colocadas no meu lugar, — e consiste em venenos letais, vírus infecciosos, e micróbios, extraídos e culturados nos órgãos dos cadáveres, defuntos naturalmente, ou defuncionados por esta gente, aqui, no meio da imensa mole de carne humilde, anónima, e descurada, desta mole que faz o numerário dos hospitais. Mas também venenos d’outra origem, trazidos através d’um d’estes organismos ao seu dispor (d’um dos doentes humildes que depois defuncionam).Por meio d’estes venenos são-me senhores do cérebro (que legam, manejam, sobreexcitam, centro por centro, fazendo-me assim, rir, chorar, estar triste, falar, estar calado) — são[-]me senhores do cérebro, atacando-me já o modo de função de cada órgão, já ainda cada zona dos órgãos vários, de modo a influir n’aquela zona ou totalidade de tal ou tal pulmão, a que correspondem, e que por seu turno corresponde a tal ou tal órgão.
Longo é explicar o meu caso, minúcia por minúcia — mesmo só o poderia fazer com descanso e n’um sítio em que por um dia estivesse seguro da sua não acção, — mas aqui aonde tenho de almoçar e jantar o que me derem, eles são-me pelo processo acima senhores do organismo e perturbam-me a funcionação do cérebro, o que muito lhes convém pois sou assim confuso — e há gente superficial como aquela a quem eles com um sorriso da sua mais que abalada autoridade, fazem descrer de que se possa actuando nos centros correspondentes (sobre terem tirado todo o outro meio de desabafo e comunicação e tê-lo oprimido de modo a enfurecê-lo) fazem crer que não é possível ser motivado por manejo o bradar furioso.
De quantas moléstias me têm acusado? Sobretudo, sempre no fundo a infecção alcoólica.Eu respondo[:] A infecção alcoólica, mesmo quando incurável (e há-de aí talvez lembrar o que era dito n’uma relação oficial, feita 1 ano que não 3 meses depois (máximo tempo concedido, este de 3 meses, para definição e classificação da moléstia, definição sem a qual ninguém aqui pode ser retido — isto segundo o regulamento elaborado por um especialista eminente) — há-de aí talvez lembrar que eu era n’ela dado como curável) mesmo quando incurável isto é quando adiantada, diminui de intensidade com o tempo de abstenção de bebidas.Eu desde que aqui estou tenho bebido apenas 3 decilitros de vinho aos jantares de 5.ªs e domindo – e 2 vezes que saí com o Fiscal duas ou 3 pingas de vinho – [.]Como aumenta pois a minha infecção?(E aqui cabe dizer que não tem conta nem peso os esforços que eles fazem para me igualar com um alcoólico paralítico, procurando a toda a pressa paralisar-me os movimentos das pernas, o que será anormal que se dê diminuindo a causa, como seria o aumento da infecção).
Hão[-]de me dizer também


"O Ângelo de Lima é um alienado; (...) de fundo mental mórbido." - Miguel Bombarda

No texto«Eu não estou doudo», Ângelo de Lima declarou estar a ser manipulado pela sociedade que o abandonara.Afirma-se vítima de maus tratos e de intrigas e justifica o seu comportamento sobre-excitado como efeito dos venenos subministrados na comida e não, como lhe querem fazer crer, consequência do álcool. Na verdade, como puderam apurar António Lobo Antunes e Inês Silva Dias, em vinte anos de internamento, o Relatório de Miguel Bombarda constitui o único parecer médico sobre Ângelo de Lima, o que diz bem do abandono em que viveu durante esse lapso de tempo. Sem perceber a doença, aceitou a sua condição de alienado. Afonso de Castro, contemporâneo no liceu de Ângelo de Lima, relembra uma visita que fez ao malogrado poeta, em 1918, no Hospital de Rilhafoles, e descreve a sua «figura esguia, angulosa, aprumada de imaginário príncipe exilado», com um «rosto macerado de asceta» e os «olhos grandes, enigmáticos, possessos de todas as miragens [...] órfãos de todas as alegrias, viúvos de todas as ilusões, pobres enfermos de sonhar», numa «aparente serenidade, circunspecção e compostura, abstracto, ensimesmado». Confessou-lhe Ângelo de Lima que era «assediado, todas as noites, por flageladoras obsessões» que o obrigavam a permanecer vigilante no «sombrio desterro». Encontrou-o Afonso de Castro «inteiramente isolado dos outros, dando a impressão de que estava ali por equívoco, ou vítima de interdição imposta por criminosa má fé». Refere ainda que, nessa altura, com o «espírito quase inteiramente restabelecido», não era já a doença que o retinha naquele hospital, era a «miséria», pois fora esquecido pela família, que não lhe perdoara a tentativa de incesto com uma "meia-irmã.
(António Lobo Antunes e Inês Silva Dias referem a justificação de Ângelo de Lima, sobre a sua tentativa de incesto, «julga o doente que o feminino de um indivíduo é precisamente a sua irmã».)

Para os psiquiatras António Lobo Antunes e Inês Silva Dias, os poemas de Ângelo de Lima constituem importantes documentos artísticos da experiência da loucura. No estudo sobre o binómio loucura/criação artística,questionaram se o poeta seria o mesmo artista se fosse um indivíduo dito mentalmente são. Referem os autores que as marcas distintivas da sua poesia... são as características da escrita dos esquizofrénicos, acrescentando ser «pouco provável que o poeta [...] as possuísse sem a doença». Mas vão mais longe:ao compararem os poemas escritos nos períodos de «relativa compensação» com os compostos em «plena fase delirante», concluem que os primeiros são «claramente de uma feitura mais clássica, de uma menor invenção técnica», mas «bem menos conseguidos e belos»

Contraditando a ideia de que não há grande artista que não sofra de qualquer mania e chamando a atenção para o facto de existirem poucas obras de doentes que possam reclamar qualquer interesse artístico, Júlio Dantas publicou um estudo em 1900, com o título Pintores e Poetas de Rilhafoles, onde se pode ler: " O preconceito leigo de que não há grande poeta ou grande pintor que não tenha «aduéla de menos» poderia dar margem a que se esperassem preciosidades da arte de Rilhafolles. Puro engano. O grande valor do documento do louco é exclusivamente psychiatrico. O valor esthetico é minimo ou nullo. [...] Sem base de academias, sem technica, sem cultivo profissional, não há bom pintor nem bom modelador [...] Evidentemente, do artista louco pode esperar-se mais do que do louco artista. O que não quer dizer que se deva esperar muito. A ecclosão d’uma vesania n’um homem de talento, dá immediatamente uma baixa consideravel no valor esthetico das suas produções ulteriores."

Ângelo de Lima era, de facto, um alienado, diagnosticado e comprovado clinicamente, pelo que muitos foram afirmando ser mais famoso pela sua loucura do que pela sua genialidade. Entretanto, vários estudos sociológicos e psicológicos vieram mostrar que certas doenças ligadas à depressão maníaco-depressiva podem, por vezes, aumentar a criatividade de alguns,pois, nesses casos, a produção linguística torna-se excitável e intrusiva e os pensamentos fluem rapidamente de um tópico para o outro. A psicose poderá estimular a actividade artística e facilitar a expressão de um mundo que não é refreado por inibições racionais. A loucura torna-se assim um veículo de comunicação e não de alienação, permitindo, por um lado, a proximidade com uma linguagem que parece inacessível, facilitando a sua tradução em imagens e em palavras, e, por outro, a substituição da linguagem poética por uma outra linguagem adulterada,inconsequente e irracional, só possível de alcançar como consequência desta fusão entre poesia e loucura.

Ângelo de Lima é certamente o caso mais trágico da “literatura de manicómio astral” de Orpheu, porque nele a loucura se apoderou do homem e não apenas da obra e do trabalho de criação. Fernando Pessoa refere em vários dos seus escritos a doença fundamental do homem moderno (“Em cada homem moderno há um neurasténico que tem de trabalhar. A tensão nervosa tornou-se um estado normal na maioria dos incluídos na marcha das cousas públicas e sociais. A hiperexcitação passou a ser de regra”), doença que é também a sua e a da geração órfica (“Poucas vezes tenho tão completamente escrito o meu psiquismo, com todas as suas atitudes sentimentais e intelectuais, com toda a sua histero-neurastenia fundamental (...)”, regista no post-scriptum duma carta a Mário de Sá-Carneiro). Também o autor d’ A Confissão de Lúcio descreve reiteradamente a sua “zoina” nas cartas a Pessoa, e chega, numa delas, a tomar a loucura de Ângelo de Lima como termo de comparação com a sua. Mas a histeroneurastenia de Pessoa e de Sá-Carneiro, essa mistura de euforia e tédio que ambos relatam, é uma loucura encenada, dramática, ao passo que a loucura de Ângelo de Lima foi real, trágica. A 1 de Julho de 1915, publicava o jornal República o seguinte testemunho de Amadeu Cunha: “A propósito do novo número de Orpheu recordava ontem A Capital o nome dum grande infeliz que andou muitos anos pelo Porto, donde me parece ser natural, e cuja vida bem ao contrario de ter sido uma boémia risonha foi alguma coisa de um longo calvário, um destino irmão de Glatigny. Talvez não falte aqui quem o haja conhecido ao menos como eu, nos primeiros tempos da sua neurastenia, em que, do Conde Ferreira, onde encontrara, no director, o Sr. Dr. Júlio de Matos, um amigo, colaborava com actividade na Geração Nova, de Júlio Lobato, quer escrevendo versos quer com desenhos que nada tinham de paúlicos mas sobre os quais a inspiração duma musa de vesânica tristeza estendia já os seus véus (...)”.

Ângelo de Lima nasceu efectivamente no Porto, em 1872, sendo seus pais Pedro de Lima – também ele poeta, autor do livro Ocasos (1867) – e Maria Amália Azevedo Coutinho de Lima. Em 1882, ingressou no Colégio Militar de Lisboa, de onde acabaria por ser expulso, por “desacatos e atitudes incompreensíveis”. Regressou ao Porto em 1888, inscrevendo-se então na Academia de Belas Artes. Assentou praça e em 1891 foi enviado a Moçambique, tendo participado numa expedição militar a Manica. Regressou no ano seguinte, e em 1894 voltou a frequentar a Academia de Belas Artes do Porto. As revistas portuenses A Geração Nova (1894-95) e Revista Azul (1896) deram a conhecer alguns dos seus desenhos. Ainda em 1894, Ângelo de Lima foi internado no Hospital Conde Ferreira, onde passou quatro anos. Viveu depois no Algarve e em 1901 mudou-se para Lisboa. Em Dezembro desse ano, foi preso no promenoir do Teatro D. Amélia, “por proferir obscenidades” (como se pode ler no “Relatório sobre o estado mental de Ângelo de Lima”, assinado por Miguel Bombarda), e, na sequência desse episódio, foi internado no Hospital de Rilhafoles. Aí permaneceu durante vinte anos, até à data da sua morte, em 1921.

Os primeiros poemas de Ângelo de Lima revelam as influências cruzadas do Ultra-Romantismo e do Simbolismo, vinculados como estão a uma estética sepulcral e a uma tonalidade melancólica e dolorida. Assim acontece em “Dizem os Sábios que já nada ignoram”, “A meu Pai (no Santo Dia dos Finados)”, “Inês de Castro” e “Sozinho”. Este último constitui um “testamento” poético com algumas semelhanças formais com os de António Nobre (“Balada do caixão”) e de Mário de Sá-Carneiro (“Fim”), mas sem nenhuma encenação dandy ou funâmbula, antes comovendo o leitor pelo tom sério e pela ideação de um fim apenas chorado, sem nenhum convencionalismo, pelos elementos naturais: “Quando eu morrer m’envolva a Singeleza,/ Vá sem Pompa a caminho do coval,/ Acompanhe-me apenas a tristeza/ Não vá do bronze o som de val’ em val!// Chore o céu sobre mim de orvalho as bagas/ Luz do sol-posto fulja em seu cristal,/ Cantem-me o “dorme em paz” ao longe as vagas./ Gemente a viração entoe o “Amém”/ Vá assim té ermas, afastadas plagas.../ Lá...fique eu só!/ Não volte lá ninguém!”.

A par de poemas mais discursivos, de largo fôlego retórico (como os que glosam, em registo megalómano, figuras de rainhas ou cenários históricos), outros vão ao encontro da estética simbolista do “vago”, do “subtil”, do “complexo” (adjectivos de João Gaspar Simões a propósito do poema “Edd’Ora Addio...”), encadeando sugestões graças ao predomínio do sintagma nominal e a uma sintaxe entrecortada, inconfundível, pontuada de reticências e de exclamações (de que o poema “Viver” é o exemplo mais radical). Esse encadeamento de sugestões, por vezes desconexas, e essa sintaxe elíptica traduzem, em muitos poemas, o transe alucinatório, que corta as pontes com a realidade e cria uma realidade outra, delirante e incoerente a nível semântico. Perante ela, somos tentados a fazer, a contrario, um exercício de enquadramento racional (reconhecendo por entre os desvios lexicais e sintácticos alguns termos do dicionário e alguns versos “com sentido”); mas logo a apreendemos como realidade puramente artística, que em si mesma encontra legitimação. Assim, por exemplo, em “Edane! (À Lua)”, reencontramos o tópico romântico da lua, glosado de forma surpreendente e mesmo incompreensível (“Edane Clara e Santa.../Edane Pura!/ - Purfictrio do Símbolo de Prata... Erta Emmemor na Alma/ - Erta Hierata!/ Clareia Calma na Alta Noute Escura (...)”), mas dando azo a uma sequência de manchas impressionistas e a um jogo melódico que emancipam o poema das exigências da significação e lhe conferem justificação própria. O fascínio pela pura melopeia repete-se noutros poemas igualmente enigmáticos e é levado ao extremo em “Edd’Ora Addio... – Mia Soave!... (Aos meus Amigos d’Orpheu)”, onde a coerência semântica cede o passo a uma coerência da matéria fónica dos versos (graças ao encadeamento de sons, às aliterações, às pausas assinaladas por travessões e reticências, às repetições, etc.), que faz deste soneto um dos mais belos da obra de Ângelo de Lima.

Arrastado na sua vertigem, Ângelo de Lima deixou-nos, no entanto, uma genial representação do seu próprio fluir psíquico, inquieto e atormentado pelo sofrimento, no soneto “Pára-me de repente o Pensamento...” (que foi por vezes publicado com o título “Tédio”). Esse movimento louco, a cujo espectáculo o sujeito poético assiste (desdobrando-se e voltando-se sobre si mesmo) é dado pela imagem do cavalo lançado a galope, que por um instante se detém à beira do abismo e acaba por se lançar nele, sem remissão. Como assinalou Yara Frateschi Vieira, “o poema põe em cena três forças: o cavalo alucinado (a aceleração do pensamento), o freio da consciência e a dor, que provoca nova aceleração com consequente mergulho na “noite” (...). A tensão entre essas forças e o esforço que o conflito supõe, explicariam a escolha de uma forma fixa como o soneto para suporte poético: entre a alucinação e a consciência dela, o texto, com os seus limites pré-estabelecidos, mas também as suas repetições, aliterações e paralelismos, oferece uma âncora”. Essa tensão entre uma ordem formal e a desordem que ela descreve é um dos aspectos mais perturbantes do poema, mas a sua força vem também da metáfora continuada, verdadeira “concepção moldurante” da auto-representação da loucura na obra de Ângelo de Lima. Acrescente-se que o símile do cavalo a galope pode ainda ser lido como forma de sugerir o saisissement criador, a própria experiência poética – e teremos então a inteira percepção da modernidade do poema, que Fernando Pessoa reproduziu no nº 3 de Sudoeste, prestando homenagem, no seu texto “Nós os de Orpheu”, a “quem, não sendo nosso, todavia se tornou nosso”.

Posfácio


«Saído do manicómio, João de Deus prosperou, tornando-se responsável pelo Paraíso do Gelado e inventando mesmo a especialidade da loja. Passa o tempo livre em casa, solitário, com uma colecção de pelos do púbis feminino, que ciosamente guarda num Livro de Pensamentos. A dona do Paraíso, Judite, ambiciona alargar o negócio a uma congénere francesa, contando com uma delícia do protegido, para convencer o virtual sócio parisiense. Mas as coisas correm mal, enquanto o próprio comportamento de Deus começa a deteriorar-se com uma mal sã insanidade. A causa mais próxima é Joaninha, a filha do severo talhante do bairro»-José de Matos-Cruz

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