Não é neccessário vivermos ao lado de alguém para nos sentirmos ligados a esse alguém mais do que a qualquer outra pessoa...
quarta-feira, 23 de maio de 2018
Eu, Roth e afins...
“Não estar vivo, basicamente, não sentir a vida, não a cheirar. Mas a diferença entre hoje e o medo que tinha de morrer quando tinha 12 anos é que agora tenho uma espécie de resignação em relação à realidade. Já não me parece uma injustiça tão grande morrer”.
É preciso criar abismos, para a humanidade que os não sabe saltar se engolfar neles para sempre. Criar todos os prazeres, os mais artificiais possível, os mais estúpidos possível, para que a chama atraia e queime.(...) Porque sempre a Realidade é um bocado de sol simples, um quintal herdado e a certeza de ser um indivíduo.
"El efecto tarima"...
Y en una de aquellas alumnas creí notar una expresión de contento al oír que no estaba casado. Nada de lo que presumir ni enorgullecerse, dado que todos los profesores y profesoras del mundo disfrutan de lo que puede llamarse "el efecto tarima" y gracias a él levantan pasiones espúreas y alucinadas, hasta los más feos, los más sucios, los más odiosos, los más despóticos y los más ruines, lo sé de sobra. Yo he visto a deslumbrantes mujeres casi adolescentes flaquear y derretirse por infrahombres apestosos con una tiza en la mano, y a candorosos muchachos envilecerse (circunstancialmente) por un escote estriado inclinado sobre un pupitre. Algunos se aprovechan del mismo hasta convertirse en profesionales –léase aquí, por ejemplo, un par de profes de la Facultad- mientras otros hacen lo imposible por esquivar esas miradas fogosas y entregadas, intentaba explicarme ayer un príncipe de Cachemira mientras yo me perdía irremediablemente en sus ojos azulísimos.
En ‘Negra espalda del tiempo’ Javier Marías recoge de su protagonista –él mismo, más o menos- los años en que, ejerciendo la docencia en la universidad, atraía la atención de sus alumnas simplemente por ser su profesor. El “efecto tarima”, le llama. También en nesta película, el protagonista es un profesor prosigue la docencia y sus gratificaciones más allá de las aulas. Pero no es la única convergencia entre ambas obras. Comparten también la pregunta inicial sobe su estatuto de realidad, cuánto de ficción y cuánto de documental, pregunta que se va desinflando cuando cada obra dirige su interés hacia la búsqueda de una verdad interior ajena a estas clasificaciones.(...) Pero la película sabe buscar y encontrar algo más que la calidad de sus debates y la riqueza de sus encuadres, nutridos por sorprendentes reflejos. Hay también otras disputas y lamentos subterráneos sobre el poder, la seducción, la debilidad, la necesidad de afecto o el sabor de la belleza. Y varios registros simultáneos que pueden abarcar el ejercicio de la tarima profesoral o la burla de la carcoma que la corroe.
Conhecia-a há oito anos. Era minha aluna. Já não ensino a tempo inteiro; rigorosamente falando, já não ensino literatura, ponto final – há anos que tenho apenas uma aula, um grande seminário sénior sobre escrita crítica chamado Crítica Prática. Atraio uma boa quantidade de estudantes femininas. Por duas razões. Porque é uma matéria com uma atraente combinação de fascínio intelectual e porque elas me ouviram no NPR a fazer a crítica de livros ou me viram no Thirteen a falar de cultura. Nos últimos quinze anos, o facto de ser crítico cultural no programa de televisão tornou-me razoavelmente conhecido, localmente, e elas são atraídas para a minha aula por esse motivo. No início, não tive consciência de que falar na TV uma vez por semana durante dez minutos podia impressionar tanto, como afinal impressiona, estas estudantes. Mas elas sentem-se irremediavelmente atraídas pela celebridade, por muito insignificante que a minha possa ser.Acontece que, como sabem, sou muito vulnerável à beleza feminina. Todos nos sentimos indefesos contra alguma coisa, e a minha vulnerabilidade é essa. Vê-la cega-me para tudo o mais. Elas apresentam-se na minha primeira aula e eu sei quase de imediato qual é a rapariga para mim.
(Não confirmo " el efecto tarima": nunca me apercebi que um aluno se tivesse apaixonado por mim. Julgo que, ao contrário do que teoriza Marías, este " efecto" ocorre , essencialmente, com professores: conheço inúmeros casos. Comigo o que aconteceu - mas eram outros tempos - foi sentir muitos professores atraídos por mim, mas nunca foram correspondidos, antes pelo contrário, exceto num caso... Julgo que essas situações não se justificariam pelo "efecto tarima", mas terei de solidificar melhor este conceito. Provisoriamente, afirmo que a minha experiência confirma , sobretudo, a teoria de Roth, cujos protagonistas professores parecem condenados a apaixonarem-se por alunas...No entanto,parece-me que não há nada de científico nem qualquer especificidade na dicotomia relacional aluna/ professor... São atrações que surgem pela inevitável proximidade, tal como enfermeira/ médico; secretária/ adiministrador, and so on...)
Esperava pela liberdade de começar, pelo momento de se tornar real, esperava a hora de esquecer quem ele era e se tornar a pessoa que estava a interpretar, mas em vez disso estava ali parado, completamente vazio, atuando do modo que se faz quando não se sabe o que se está a fazer. Não conseguia dar e não conseguia reter; não tinha fluidez e não tinha reserva. A atuação tornou-se uma tentativa, repetida noite após noite, de se conseguir livrar de um fardo ...Ele perdera a magia. O impulso esgotara-se. Ele nunca havia fracassado no teatro, tudo o que fizera sempre fora vigoroso e bem-sucedido, e então aconteceu esta coisa terrível: ele não conseguia representar. Subir ao palco tornou-se uma agonia. Em vez da certeza de que teria um desempenho maravilhoso, sabia que ia fracassar. A coisa aconteceu três vezes seguidas, e na última vez ninguém mostrou interesse, ninguém foi. Ele não conseguia comunicar com a plateia. O seu talento havia morrido.
Até não muito tempo atrás, existia uma maneira pré-fabricada de ser velho, tal como havia uma maneira pré-fabricada de ser jovem. Hoje em dia, nenhuma das duas funciona mais. Houve um grande conflito a respeito do que é permissível — e uma grande revolução. Não obstante, será que um homem de setenta anos de idade ainda deve continuar a envolver-se com o aspecto carnal da comédia humana? Ser desavergonhadamente um velho nada monástico, ainda suscetível às excitações humanas? Não é essa condição que outrora era simbolizada pelo cachimbo e pela cadeira de balanço. Talvez ainda seja uma espécie de afronta para muita gente você não se pautar pelo antigo relógio da vida. Tenho consciência de que não posso contar com o respeito virtuoso dos outros adultos. Mas o que é que eu posso fazer quando constato que, pelo menos no meu caso, nada, nada se aquieta, por mais que a gente envelheça?
A parte final de o animal moribundo comoveu-me: experimentei alguma empatia por consuelo e pela reflexão sobre a relatividade do tempo...Aos 32 anos ela é, afinal, mais velha do que ele, com cerca de 70...É tocante o modo como a doença dela os reaproximou, oito anos depois:
- Mas tenho de ir. Alguém tem de estar com ela.
- Pensa nisso. Pensa. Porque, se fores, estás liquidado.
Consuelo, sem cabelo e sem os seus inebriantes seios, já não era apenas um corpo, era muito mais do que um animal: o fim originou um novo início...
Consuelo agora conhece a ferida da idade. Envelhecer é inimaginável para todos, menos para os idosos...Consuelo já não mede o tempo como os jovens, assinalando para trás, para quando tudo começou. Para os jovens, o tempo é feito do que é passado, mas para Consuelo o tempo é agora a medida do futuro que lhe resta. Agora mede o tempo contando para a frente. Conta o tempo pela proximidade da morte. A ilusão quebrou-se, a ilusão metronómica, o pensamento reconfortante de que,ti-tac, tudo acontece no seu devido tempo. A sua noção de tempo é agora igual à minha, acelerada e mais desamparada , até, do que a minha...
Durante quarenta anos fez o que era necessário fazer. Andou atarefado, e a natureza, que é a besta, mudou-se para uma caixa. Agora essa caixa está aberta. Ser reitor, ser pai, ser marido, ser intelectual, professor, ler livros, dar lições, corrigir textos, dar notas, tudo isso acabou. Evidentemente que já não é a vigorosa besta lúbrica que foi. Mas o que resta da besta, o que resta dessa coisa natural, é com isso que ele está agora em contacto, com o que resta. E sente-se feliz por isso, sente-se grato por estar em contacto com o que resta. Sente-se mais do que feliz: sente-se emocionado, e já está ligado, profundamente ligado a ela, por causa dessa emoção. Não é de família que se trata, a biologia já não lhe serve para nada. Não é família, não é responsabilidade, não é dever, não é dinheiro, não é uma filosofia partilhada ou o amor à literatura, não são grandes discussões de ideias. Não, o que o liga a ela é a emoção. Amanhã descobrem-lhe um cancro e acabou-se. Mas hoje, agora, tem essa emoção.
[...] Só um grande idiota sentiria que é de novo jovem. Se nos sentíssemos jovens, seria uma armadilha. Longe de nos sentirmos jovens, sentimos o tormento do futuro ilimitado dela em comparação com o nosso futuro limitado, sentimos ainda mais do que normalmente o tormento de todos os derradeiros dons que fomos perdendo. É como jogar basebol com um grupo de miúdos de vinte anos. Não que nos sintamos com vinte anos por jogarmos com eles. Notamos a diferença durante cada segundo do jogo. Mas pelo menos não estamos sentados nas linhas laterais. O que acontece é o seguinte: sentimos lancinantemente como estamos velhos, mas de uma maneira nova. Conseguem imaginar a velhice? É claro que não. Eu não conseguia. Não era capaz. Não fazia a mínima ideia de como era. Não tinha sequer uma falsa ideia - não tinha imagem nenhuma. E ninguém quer outra coisa qualquer. Ninguém quer enfrentar nada disto antes de não ter outro remédio. Como vai ser?
[...] É, de modo muito interessante, a primeira vez na vida em que nos encontramos inteiramente do lado de fora ao mesmo tempo que estamos nele. Observando durante todo esse tempo a nossa decadência (se temos tanta sorte como eu), encontramo-nos, graças à nossa constante vitalidade, a uma distância considerável da nossa decadência - sentimo-nos até alegremente independentes dela. Inevitavelmente, sim, inevitavelmente há uma multiplicação dos sinais que conduzem à desagradável conclusão, e no entanto, apesar disso, mantemo-nos de fora. E a ferocidade da objectividade é brutal. Há que fazer uma distinção entre morrer e a morte. Nem tudo é morrer ininterruptamente. Se somos saudáveis e nos sentimos bem, vamos morrendo invisivelmente. O fim, que é uma certeza, não tem de ser arrojadamente anunciado. Não, não podemos compreender. A única coisa que compreendemos acerca dos velhos quando não somos velhos é que foram marcados pelo seu tempo. Mas compreender apenas isso imobiliza-os no seu tempo, o que equivale a não compreender nada. Para aqueles que ainda não são velhos ser velho significa que já fomos. Mas ser velho também significa que apesar de, além de e para lá do nosso estado de ser, ainda somos. O nosso estado de ser está muito vivo. Ainda somos e sentimo-nos tão atormentados pelo ainda-ser e pela sua plenitude como pelo já-ter-sido e pela sua qualidade de passado. Pensem na velhice do seguinte modo: o facto de a nossa vida estar em risco é apenas um facto quotidiano. Não podemos esquivar-nos ao conhecimento daquilo que em breve nos espera. O silêncio que nos envolverá para sempre. Tirando isso, é tudo a mesma coisa. Tirando isso, somos imortais enquanto vivermos [...].Há algo de fascinante no que o sofrimento moral pode fazer a alguém que nada indicia ser uma pessoa frágil ou fraca. É uma coisa ainda mais insidiosa do que a doença física pode causar, pois não há perfusão de morfina, epidural ou cirurgia radical que possam aliviá-la. Quando caímos nas suas garras, dir-se-ia que só nos libertaremos dela se nos matar.
A humilhante ignomínia que continuava a consumir alguém ainda cheio de vitalidade. O grande homem derrubado ainda a sofrer a vergonha da queda.
Reconheço eficácia narrativa a philip roth, encontrei gente conhecida e, até, senti algumas afinidades com o narrador-protagonista, professor de literatura, ator de teatro, dado a enamoramentos. No entanto, a sensualidade exacerbada, o let's fuck - como forma de emancipação e de realização pessoal- não é motivo literário que me alicie. Não por puritanismo, não por preconceito: esteticamente não me emociona, racionalmente não me seduz, pessoalmente incomoda-me sentir-me voyeur, devassadora de alcovas e de intimidades alheias. ( Gostei, todavia, mais quando reli. Muito mais...)
O homem que cai na vida chamada dissoluta, e nela se fixa mantém-se homem, cumpre o seu dever para consigo próprio que é o de se dar prazer sexual, visto que tem faculdades psíquicas e físicas que o exigem. Excusa - dada a existência da prostituição - de se intranquilisar nessa caça ao prazer; pode anular uma coisa a que os moralistas chamam «as suas faculdades superiores de amoroso», mas essas faculdades não são senão as que tendem para o sossego sexual, interpretadas através dos sonetos de Petrarca que, aliás, teve variados bastardos. Mas a mulher que ganha a vida perde a sua qualidade fundamental de mulher. Todo o tempo que gasta a trabalhar para ganhar a vida, perde-o para o seu único fim vital e psíquico, que é captar o homem. Por isso a única profissão feminina que não estraga a mulher é a de prostituta. (...) Absolutamente. A mulher que ganha a vida «honradamente» é uma invertida. O que no homem corresponde a esse desvio feminino é a inversão sexual. É o desvio do fenómeno sexual para onde o sossego é obtido pela impossibilidade natural de realizar o fenómeno sexual. Essa impossibilidade pode ser porque as relações sexuais entre homens são realmente possíveis. Mas isso é um requinte da inversão sexual normal em determinado tipo de homem, que, por si, não é anormal. Shakespeare, nos seus Sonetos, apaixonando-se por um mancebo qualquer, foi, como sempre o grande normal que ele era, e representante supremo do tipo máximo masculino, o do homem cheio de interesses e atenções para tantas coisas da vida, que não pode gastar tempo na caça ao prazer sexual normal, e por isso o substitui pelo prazer sexual dado pela amizade com outros homens levada ao requinte, visto que esses interesses da sua vida o levarão por certo a lidar mais com homens do que com mulheres.
A mulher desvia-se do seu papel normal de captar o homem. Feito isso, ela já está invertida, está homem. Safo, por exemplo, caindo no erro terrível e imoralíssimo, de, sendo mulher, escrever versos, ficou ipso facto invertida; uma vez invertida, tomou-se psiquicamente homem...
eu queria estar só. Sem mim. quero dizer , sem aquele" mim" que eu já conhecia, ou que julgava conhecer. Só , com um determinado estranho que eu já sentia obscuramente que não poderia afastar de mim, e que era eu próprio: o estranho inseparável de mim.(...) Se para os outros eu não era aquilo que até agora acreditava ser para mim, quem era eu?
As almas têm um modo especial de se entenderem, de entrarem em intimidade, de se tratarem, até, por tu, enquanto as pessoas ainda se sentem embaraçadas com o comércio das palavras, na escravidão das exigências sociais. As almas têm necessidades próprias e aspirações próprias, que o corpo finge não reconhecer quando se vê impossibilitado de as satisfazer a de as traduzir em acções. E de todas as vezes que duas pessoas comunicam entre si desta maneira, apenas como almas, se encontram a sós num qualquer lugar, experimentam uma perturbação angustiosa e quase um repúdio violento de todo e qualquer contacto material, um sofrimento que os afasta e que cessa de imediato logo que intervém uma terceira pessoa. Então, desvanecida a angústia, as duas almas aliviadas buscam-se reciprocamente e voltam a sorrir uma para a outra.
O homem, quando sofre, faz uma ideia muito especial do bem e do mal, ou seja, do bem que os outros lhe deveriam fazer e que ele pretende, como se do seu sofrimento derivasse um qualquer direito a ser compensado, e do mal que pode fazer aos outros, como se igualmente o seu sofrimento o autorizasse a praticá-lo. E se os outros não lhe fazem o bem quase por dever, ele acusa-os; e de todo o mal que ele faz, quase por direito, facilmente se desculpa.
A sensação de que me ando a dissolver ,tragicamente, numa pluralidade de seres, levou-me a este romance de pirandello, que li há quatro anos... Costumo recordar-me das circunstâncias que me impelem para a leitura de um livro, mas, neste caso, não me recordo, embora tenha a vaga e imprecisa ideia de que foi referido por GMT numa conferência na gulbenkian...Talvez.
Julga que se conhece, se não se construir de algum modo? E julga que eu posso conhecê-lo, se não o construir à minha maneira? E julga que me pode conhecer, se não me construir à sua maneira? Só podemos conhecer aquilo a que conseguimos dar forma. Mas que conhecimento pode ser esse? Não será essa forma a própria coisa? Sim, tanto para mim como para si; mas não da mesma maneira para mim e para si: isso é tão verdade que eu não me reconheço na forma que me dá, nem você se reconhece na forma que eu lhe dou; e a mesma coisa não é igual para todos e mesmo para cada um de nós pode mudar constantemente. E, contudo, não há outra realidade fora desta, a não ser na forma momentânea que conseguimos dar a nós mesmos, aos outros e às coisas. A realidade que eu tenho para si está na forma que me dá; mas é realidade para si, não é para mim. E, para mim mesmo, eu não tenho outra realidade senão na forma que consigo dar a mim próprio. Como? Construindo-me, precisamente.
O meu caso, agora, é diferente ou é o mesmo? Enquanto eu mantenho os olhos fechados, somos dois: eu aqui, e ele no espelho. Devo impedir que ao abrir os olhos, ele se torne eu e eu, ele. Eu devo vê-lo sem ser visto. Isso é possível? Assim o vir, ele me verá, e nos reconheceremos. Mas muito obrigado! Eu não quero reconhecer-me; quero conhecê-lo fora de mim. Isso é possível? Meu esforço supremo deve consistir nisso: não me ver em mim, mas ser visto por mim, com os meus próprios olhos, mas como se fosse um outro, aquele outro que todos veem e eu não vejo. Então calma, pare tudo e atenção! Após uma boa hora de conversa, entendemo-nos perfeitamente. Amanhã vem ter comigo com as mãos na cabeça, gritando:
- Como é possível? O que é que percebeu? Não me disse isto e isto?
Isto e isto, perfeitamente. Mas o problema, meu caro,é que nunca saberá nem eu lhe poderei nunca dizer como se traduz, em mim, aquilo que me disse. Não falou turco, não. Nós usámos a mesma língua, as mesmas palavras. Mas que culpa temos nós de que as palavras, em si, sejam vazias? Vazias, meu caro. Ao dizê-las a mim, preenche-as com o seu sentido; e eu, ao recebê-las, inevitavelmente preencho-as com o meu sentido. Pensámos que nos entendíamos; de facto, não nos entendemos.(...) Infelizmente, meu caro, faça o que fizer, dar-me-á sempre uma realidade à sua maneira, mesmo acreditando de boa-fé que é à minha maneira; e será, não digo que não; talvez seja; mas um «à minha maneira» que eu não conheço nem poderei nunca conhecer, portanto, um «à minha maneira» para si, não um «à minha maneira para mim.
Se, por acaso, a visão dos outros não nos ajudar a constituir em nós, de algum modo, a realidade daquilo que vemos, os nossos olhos já não sabem o que veem; a nossa consciência perde-se, porque aquilo que pensamos ser a nossa coisa mais íntima, a consciência, significa os outros em nós; e não podemos sentir-nos sós.
Farei, porém, um esforço para vos dar aquela realidade que vocês julgam ter, ou seja, esforçar-me-ei por vos querer em mim como vocês se querem. Já sabemos que não é possível, dado que, por mais esforços que eu faça para vos representar à vossa maneira, será sempre «à vossa maneira» apenas para mim, não «à vossa maneira» para vocês e para os outros. Mas desculpem: se para vocês eu não tenho outra realidade fora daquela que vocês me dão, e estou pronto a reconhecer e a admitir que essa não é menos verdadeira que a que eu poderei dar a mim mesmo, que essa, para vocês, é a única verdadeira, vão lamentar-se agora da realidade que eu lhes darei, esforçando-me, com toda a boa vontade, por vos representar à vossa maneira tanto quanto me seja possível?
Não presumo que vocês sejam como eu vos represento. Já disse que vocês também não são aquele um tal como o representam para vocês próprios, mas muitos ao mesmo tempo, segundo todas as vossas possibilidades de ser e os acasos, as relações e as circunstâncias. Então, que mal é que eu vos fiz? Vocês é que me fazem mal, julgando que eu não tenho ou não posso ter outra realidade fora da que vocês me dão e que é apenas vossa, acreditem, uma ideia que vocês fizeram de mim, uma possibilidade de ser como vocês a sentem, como vos parece, como intimamente a reconhecem possível, já que daquilo que eu posso ser para mim, não só não podem saber nada, como eu mesmo nada posso saber.
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