Não é neccessário vivermos ao lado de alguém para nos sentirmos ligados a esse alguém mais do que a qualquer outra pessoa...

terça-feira, 29 de maio de 2018

O Abafador...




No romance A Mulher do Legionário, é referida a figura do "abafador", um profissional da eutanásia, reconhecido pela comunidade e pela igreja católica: «O meu avô aguardava que a chama da sua fogueira se extinguisse, mas era um europeu e não o podíamos tratar como a um ancião africano e deixar que se cumprissem as ordens dadas pela natureza aos seus antepassados. Dava a ideia de abandono, parecia mal. E também já não estávamos no tempo da impiedosa coragem do apressamento do fim, como faziam antigamente os parentes ao chamarem o abafador, o homem forte da povoação, que abraçava os moribundos e lhes comprimia o peito para abreviar o sofrimento.»


"A figura do "abafador" surge na personagem Alma Grande nos Novos Contos da Montanha, de Miguel Torga. Segundo se consta, no tempo dos Cristãos Novos, existia uma figura - o Abafador - cuja função consistia em acabar com o sofrimento alheio. Quando um moribundo se encontrava às portas da morte, o Abafador era chamado para cumprir o seu desígnio e pôr fim à sua agonia. O prestígio, e a função social, do Abafador eram enormes e quem tinha a seu cargo essa importante missão era alguém muito respeitado na comunidade."

Por desgraça, o Alma-Grande não podia ver aquilo. Insensível à profundidade dos mistérios da vida, sem o estremecimento de uma fibra sequer, avançou para o leito num automatismo rotineiro. O seu papel não era olhar; era ir inteiro com as mãos ao pescoço, com o joelho à arca do peito, e retirar-se uns minutos depois, como um instrumento que tivesse cumprido correctamente a sua função.
No seu castelo o Isaac pelejava sempre. O fole pressuroso do arcaboiço metia ar na fornalha; espesso, cálido, activo, o suor ia brotando do vulcão.
A casa dir-se-ia um sepulcro habitado por vivos petrificados e mudos. Só no quarto havia movimento e palpitação. Calado, o Alma-Grande avançou. Mas quando de mãos abertas e joelho dobrado ia a cair sobre o Isaac, fê-lo parar uma voz diferente de todas as que ouvira em momentos iguais, que parecia vir do outro mundo, e dizia:
- Não... Ainda não... Ainda não... Quantas vezes o abafador tinha escutado aquilo, gritos de desespero, apelos sôfregos e angustiados, sem se deter na sua missão sagrada! Quantas vezes! Desta, porém, o apelo e os gemidos soavam-lhe nos ouvidos doutra maneira.
- Não... Não... Ainda não... Um pano escuro que até ali vendara os olhos do Alma-Grande queria rasgar-se de cima a baixo. E o abafador, paralisado entre as trevas do hábito e a luz que rompia, lembrava uma torrente subitamente sem destino.

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