Não é neccessário vivermos ao lado de alguém para nos sentirmos ligados a esse alguém mais do que a qualquer outra pessoa...

sexta-feira, 18 de maio de 2018

Nadas...

Um dia sem nada, apesar de ter tido tudo... 

Take it easy for a little whild ... And that's unheard of... 

  Morrer — esta palavra toda horror — Repito-a e re-repito-a para ver
Se aumenta em mim 'té à compreensão
O pensamento e sentimento vagos Que produz, e dos quais a intensidade
Em contraste com esse vago imenso
Faz dum horror um horror supremo;
Repito sim — Morrer — e não obtenho
Uma qualquer nitidificação
Do desolado caos do meu ser.
Agonia suprema! Suma dor
Não poder eu — sem morte, sem (...)
Tornar-me em um estranho inanimado
D'inconcebida essência que encontrasse
O impensável desejo da minha alma.
Tudo é mistério e o mistério é tudo
E a mais próxima forma, essa mais nossa
A sua forma mais (...)
É a morte.


Não pertenço a nada nem a ninguém; nada nem ninguém me pertence...Existi em vão: fui um projeto eternamente adiado; sempre fui uma ausência... Existo sem porquê nem para quê...Existo, sou, mais nada.

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.


Há sensações que são sonos, que ocupam como uma névoa toda a extensão do espírito, que não deixam pensar que não deixam agir, que não deixam claramente ser. Como se não tivessemos dormido, sobrevive em nós qualquer coisa de sonho, e há um torpor do sol do dia a aquecer a superfície estagnada dos sentidos. É uma bebedeira de não ser nada, e a vontade é um balde despejado para o quintal por um movimento indolente do pé à passagem. Olha-se mas não se vê. A longa rua movimentada de humanos é uma espécie de tabuleta deitada onde as letras fossem móveis e não formassem sentidos. As casas são somente casas. Perde-se a possibilidade de dar um sentido ao que se vê, mas vê-se bem o que é, sim.
As pancadas de martelo à porta do caixoteiro soam com uma estranheza próxima. Soam grandemente separadas, cada uma com eco e sem proveito. Os ruídos das carroças parecem de dia em que vem trovoada. As vozes saem do ar, e não de gargantas. Ao fundo, o rio está cansado.

Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.


Não é tédio o que se sente. Não é mágoa o que se sente. É uma vontade de dormir com outra personalidade, e esquecer com melhoria de vencimento. Não se sente nada, a não ser um automatismo cá em baixo, a fazer umas pernas que nos pertencem levar a bater no chão, na marcha involuntária, uns pés que se sentem dentro dos sapatos. Nem isto se sente talvez. À roda dos olhos e como dedos nos ouvidos há um aperto de dentro da cabeça.

(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folhas de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)


Parece uma constipação na alma. E com a imagem literária de se estar doente nasce um desejo de que a vida fosse uma convalescença, sem andar; e a ideia de convalescença evoca as quintas dos arredores, mas lá para dentro, onde são lares, longe da rua e das rodas. Sim, não se sente nada. Passa-se conscientemente, a dormir só com a impossibilidade de dar ao corpo outra direcção, a porta onde se deve entrar. Passa-se tudo. Que é do pandeiro, ó urso parado?

Vivi, estudei, amei, e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente.


Leve, como uma coisa que começasse, a maresia da brisa pairou de sobre o Tejo e espalhou-se sujamente pelos princípios da Baixa. Nauseava frescamente, num torpor frio de mar morno. Senti a vida no estômago, e o olfacto tornou-se-me uma coisa por detrás dos olhos. Altas, pousavam em nada nuvens ralas, rolos, num cinzento a desmoronar-se para branco falso. A atmosfera era de uma ameaça de céu cobarde, como a de uma trovoada inaudível, feita de ar somente.

Mas o dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olhou-o com o desconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, e eu deixarei versos.


Havia estagnação no próprio voo das gaivotas; pareciam coisas mais leves que o ar, deixadas nele por alguém. Nada abafava. A tarde caía num desassossego nosso; o ar refrescava intermitentemente.

(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.


Pobres das esperanças que tenho tido, saídas da vida que tenho tido de ter! São como esta hora e este ar, névoas sem névoa, alinhavos rotos de tormenta falsa. Tenho vontade de gritar, para acabar com a paisagem e a meditação. Mas há maresia no meu propósito, e a baixa-mar em mim deixou descoberto o negrume lodoso que está ali fora e não vejo senão pelo cheiro.

O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o: é o Esteves sem metafísica.
(O dono da Tabacaria chegou à porta.)


Tanta inconsequência em querer bastar-me! Tanta consciência sarcástica das sensações supostas! Tanto enredo da alma com as sensações, dos pensamentos com.o ar e o rio, para dizer que me dói a vida no olfacto e na consciência, para não saber dizer, como na frase simples e ampla do Livro de Job «Minha alma está cansada de minha vida!»


Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o dono da Tabacaria sorriu.

Sem comentários: