Não é neccessário vivermos ao lado de alguém para nos sentirmos ligados a esse alguém mais do que a qualquer outra pessoa...

sexta-feira, 7 de setembro de 2018

Mestre(s) e alfarrabistas...

"Considerado o representante mais genuíno do simbolismo português, Camilo Pessanha nasceu em Coimbra, a 7 de setembro de 1867. Há exatamente 151 anos.
Apesar da pequena dimensão da sua obra, de onde se destaca claramente Clepsidra, Camilo Pessanha é tido como um dos grandes poetas da Língua Portuguesa.
Clepsidra, o seu único livro de poemas, foi publicado pela primeira vez em 1920, graças aos esforços de Ana de Castro Osório, sua grande amiga. Depois, foi o filho desta, João de Castro Osório, que ampliou a obra inicial acrescentando-lhe poemas que entretanto foram encontrados.
Com nítidas influências do simbolismo francês de Verlaine, Mallarmé e Baudelaire, a poesia de Camilo Pessanha é melancólica, extremamente musical — De la musique avant toute chose, como dizia Verlaine — e reflete uma refunda crise existencial e uma interpretação simbólica do mundo. Camilo Pessanha antecipa também algumas tendências modernistas, como a ideia da fragmentação.
Viria a morrer em Macau, onde se encontra sepultado, em março de 1926." In Prelo, INCM.

A obra de Sá-‑Carneiro é toda ela atra­vessada por uma íntima desumanidade, ou, melhor, inu­manidade: não tem calor humano nem ternura humana, excepto a introvertida. Sabe porquê? Porque ele perdeu a mãe quando tinha dois anos e não conheceu nunca o carinho materno. Verifiquei sempre que os amadrasta­dos da vida são falhos de ternura, sejam artistas, sejam simples homens; seja porque a mãe lhes falhasse por morte, seja porque lhes falhasse por frieza ou afasta­mento. Há uma diferença: os a quem a mãe faltou por morte (a não ser que sejam secos de índole, como o não era Sá-Carneiro) viram sobre si mesmos a ternura pró­pria, numa substituição de si mesmos a mãe incógnita; os a quem a mãe faltou por frieza perdem a ternura que tivessem e (salvo se são génios da ternura) resul­tam cínicos implacáveis, filhos monstruosos do amor natal que se lhes negou.

Concretizo mais, agora comigo. Nunca senti sauda­des da infância; nunca senti, em verdade, saudades de nada. Sou, por índole, e no sentido directo da palavra, futurista. Não sei ter pessimismo, nem olhar para trás. Que eu saiba ou repare, só a falta de dinheiro (no pró­prio momento) ou um tempo de trovoada (enquanto dura) são capazes de me deprimir. Tenho, do passado, somente saudades de pessoas idas, a quem amei; mas não é a saudade do tempo em que as amei, mas a saudade delas: queria-as vivas hoje, e com a idade que hoje tivessem, se até hoje tivessem vivido. O mais são atitudes literárias, sentidas intensamente por instinto dramático, quer as assine Álvaro de Campos quer as assine Fernando Pessoa. São suficientemente represen­tadas, no tom e na verdade, por aquele meu breve poema que começa: «Ó sino da minha aldeia...». O sino da mi­nha aldeia, Gaspar Simões, é o da Igreja dos Mártires, ali no Chiado. A aldeia em que nasci foi o Largo de S. Carlos, hoje do Directório, e a casa em que nasci foi aquela onde mais tarde (no segundo andar; eu nasci no quarto) haveria de instalar-se o Directório Republi­cano. (Nota: a casa estava condenada a ser notável, mas oxalá 4.º andar dê melhor resultado que o 2.º).(...)

Nada disto, creio, precisa ser esclarecido... Prefiro – até para abre­viar – explicar por um exemplo. Escolho-me a mim mesmo, porque é quem está aqui mais perto. O ponto central da minha personalidade como artista é que sou um poeta dramático; tenho, continuamente, em tudo quanto escrevo, a exaltação íntima do poeta e a desper­sonalização do dramaturgo. Voo outro – eis tudo. Do ponto de vista humano – em que ao crítico não com­pete tocar, pois de nada lhe serve que toque – sou um histeroneurasténico com a predominância do elemento histérico na emoção e do elemento neurasténico na inte­ligência e na vontade (minuciosidade de uma, tibieza de outra). Desde que o crítico fixe, porém, que sou essencialmente poeta dramático, tem a chave da minha personalidade, no que pode interessá-lo a ele, ou a qual­quer pessoa que não seja um psiquiatra, que, por hipó­tese, o crítico não tem que ser. Munido desta chave, ele pode abrir lentamente todas as fechaduras da minha expressão. Sabe que, como poeta, sinto; que, como poeta dramático, sinto despegando-me de mim; que, como dramático (sem poeta), transmudo automaticamente o que sinto para uma expressão alheia ao que senti, cons­truindo na emoção uma pessoa inexistente que a sen­tisse verdadeiramente, e por isso sentisse, em derivação, outras emoções que eu, puramente eu, me esqueci de sentir.

Agora vou parar. Vou reler esta carta, fazer quais­quer emendas que forem precisas, e enviar-lha. Além disso, sou instantemente solicitado a acabar de escrever à máquina por um amigo meu, ainda mais bêbedo do que eu, que acaba de chegar e não estima embebedar-se sozinho. O «vou reler esta carta» quer, pois, dizer, que a vou reler logo, ou amanhã. Não deverei fazer emendas, salvo as do que saiu errado entre mim e a máquina. Se v. achar qualquer ponto mal esclarecido, diga, que eu direi. E v. não esqueceu, é claro, que o que aí vai é feito sem preparação nenhuma – atirado pelas páginas fora com a rapidez com que a máquina pode ceder ao pensamento decorrente.(...)
E agora estou, definitivamente, cansado e sedento. Desculpe o em que as expressões tenham falhado às ideias e o que as ideias tenham roubado à mentira ou à indecisão.

Fernando Pessoa.

P. S. – Houve um ponto da sua carta a que não respondi ou me referi. É o que trata da nota do Des­cobrimento sobre Camilo Pessanha.

Quero referir-me simplesmente à influência que O Pessanha pudesse ter tido sobre o Sá-Carneiro. Não teve nenhuma. Sobre mim teve, porque tudo tem influência sobre mim; mas é conveniente não ver influência do Pessanha em tudo quanto, de versos meus, relembre o Pessanha. Tenho elementos próprios, naturalmente se­melhantes a certos elementos próprios do Pessanha; e certas influências poéticas inglesas, que sofri muito an­tes de saber sequer da existência do Pessanha, actuam no mesmo sentido que ele.

Mas quanto ao Sá-Carneiro... Eu conhecia, de cor, quase todos os poemas do Pessanha, por mos ter várias vezes dito o Carlos Amaro. Comuniquei-os ao Sá-‑Car­neiro, que, como é de supor, ficou encantado com eles. Não vejo, porém, que tenham influenciado o Sá-Carneiro em qualquer coisa. Uma grande admiração não implica uma grande influência, ou, até, qualquer influência. Tenho uma grande admiração por Camões (o épico, não o lírico), mas não sei de elemento algum camoniano que tenha tido influência em mim, influenciável como sou. E isto por uma razão precisamente igual à que explica a não influência de Pessanha sobre Sá-Carneiro. É que o que Camões me poderia ensinar, já me fora ensinado por outros. A exaltação e sublimação do instinto de pátria são fenómenos inensináveis em substância: ou temos naturalmente o sentimento patriótico, ou o não temos; ou temos a capacidade de exaltar e sublimar os nossos sentimentos, ou a não temos. (E, à parte isto, o sentimento patriótico é uma das coisas mais corren­tes em todas as literaturas, sendo, aliás, a sublimação construtiva do ódio, que é tão necessário à existência como o amor – a outra coisa igualmente corrente em todas as literaturas). E a construção e amplitude do poema épico, tem-as Milton (que li antes de ler os Lusíadas), em maior grau que Camões.
Ora Sá-Carneiro tinha em si mesmo, ou de outras influências, tudo quanto o Pessanha lhe poderia dar, quando primeiro ouviu, como ele diz, «dos seus versos». Isto explica, ao mesmo tempo, a não influência e a grande admiração.


Três Mestres - Houve em Portugal, no século XIX, três poetas, e três somente, a quem legitimamente compete a designação de mestres. São eles, por ordem de idades, Antero de Quental, Cesário Verde e Camilo Pessanha. […]
Com Antero de Quental se fundou entre nós a poesia metafísica, até ali não só ausente, mas organicamente ausente, da nossa literatura. Com Cesário Verde se fundou entre nós a poesia objetiva, igualmente ignorada entre nós. Com Camilo Pessanha a poesia do vago e do impressivo tomou forma portuguesa. Qualquer dos três, porque qualquer um homem de génio, é grande não só adentro de Portugal, mas em absoluto. […] A cada um de só três poetas, no Portugal dos séculos XIX e XX, se pode aplicar o nome “mestres”. São eles Antero de Quental, Cesário Verde e Camilo Pessanha. Concedo que se lhes anteponham outros quantos ao mérito geral; não concedo que algum outro se possa antepor a qualquer deles nesse abrir de um novo caminho, nessa revelação de um novo sentir, que em matéria literária propriamente constitui a mestria. É mestre quem tem de ensinar; só eles, na poesia portuguesa desse tempo, tiveram que ensinar.
O primeiro ensinou a pensar em ritmo; descobriu-nos a verdade de que o ser imbecil não é indispensável a um poeta. O segundo ensinou a observar em verso; descobriu-nos a verdade de que ser cego, ainda que Homero em lenda o fosse e Milton em verdade se tornasse, não é qualidade necessária a quem faz poemas. O terceiro ensinou a sentir veladamente; descobriu-nos a verdade de que ser poeta não é mister trazer o coração nas mãos, senão que basta trazer nelas a sombra dele.
Estas palavras que são nada bastam para apresentar a obra do meu mestre Camilo Pessanha. O mais, que é tudo, é Camilo Pessanha.


Logo da primeira vez que nos vimos, fez-me V. Ex.ª a honra, e deu-me o prazer, de me recitar alguns poemas seus. Guardo dessa hora espiritualizada uma religiosa recordação. Obtive, depois, pelo Carlos Amaro, cópias de alguns desses poemas. Hoje, sei-os de cor, aqueles cujas cópias tenho, e eles são para mim fonte contínua de exaltação estética.
Fernando Pessoa (1915), excerto de uma carta a Camilo Pessanha.

Imagens que passais pela retina
Dos meus olhos, porque não vos fixais?
Que passais como a água cristalina
Por uma fonte para nunca mais!...
Ou para o lago escuro onde termina
Vosso curso, silente de juncais,
E o vago medo angustioso domina,
Porque ides sem mim, não me levais?
Sem vós o que são os meus olhos abertos?
O espelho inútil, meus olhos pagãos!
Aridez de sucessivos desertos...


Fica sequer, sombra das minhas mãos,
Flexão casual de meus dedos incertos,
Estranha sombra em movimentos vãos.


Não sei se isto é amor. Procuro o teu olhar,
Se alguma dor me fere, em busca de um abrigo;
E apesar disso, crê! nunca pensei num lar
Onde fosses feliz, e eu feliz contigo.
Por ti nunca chorei nenhum ideal desfeito.
E nunca te escrevi nenhuns versos românticos.
Nem depois de acordar te procurei no leito
Como a esposa sensual do Cântico dos cânticos.
Se é amar-te não sei. Não sei se te idealizo
A tua cor sadia, o teu sorriso terno...
Mas sinto-me sorrir de ver esse sorriso
Que me penetra bem, como este sol de Inverno.
Passo contigo a tarde e sempre sem receio
Da luz crepuscular, que enerva, que provoca.
Eu não demoro a olhar na curva do teu seio
Nem me lembrei jamais de te beijar na boca.
Eu não sei se é amor. Será talvez começo...
Eu não sei que mudança a minha alma pressente...
Amor não sei se o é, mas sei que te estremeço,
Que adoecia talvez de te saber doente

O que parece a mim é para mim, e o que parece a ti é para ti.

Agi sempre para dentro... Nunca toquei na vida... Sempre que esboçava um gesto, acabava-o em sonho, heroicamente... Uma espada pesa mais que a ideia de uma espada... Comandei grandes exércitos — venci grandes batalhas, gozei grandes derrotas — tudo dentro de mim...
Gostava de passear sozinho pelas alamedas e pelos grandes corredores e de comandar as árvores e desafiar os retratos das paredes... No grande corredor sombrio que há ao fundo do palácio passeei com a minha noiva muitas vezes... Eu nunca tive noiva real... Nunca soube como se amava... Apenas soube como se sonhava amar... Se eu gostava de usar anéis de dama nos meus dedos é que às vezes queria julgar que as minhas mãos eram de princesa e que eu era, pelo menos no gesto das minhas mãos, aquela que eu amava...
Um dia foram-me encontrar vestido de rainha... Eu estava sonhando que eu era a minha esposa régia... Gostava de ver a minha face reflectida porque podia sonhar que era a face de outra criatura — porque era de formas femininas, que era de minha amada que era a minha face reflectida... Quantas vezes a minha boca, tocou na minha boca nesse espelho!... Quantas vezes apertei uma das mãos com a outra, quantas adorei meus cabelos com a minha mão alheada para que parecesse dela ao tocar-me. Não sou eu que te estou dizendo isto... É o resto de mim que está falando.


A persuasão aliada a palavras modela a mente dos homens como quiser...

Toda a sua ação e eficácia se realizam através das palavras...Não precisa a retórica de conhecer a natureza das coisas, mas tão-somente de encontrar um meio qualquer de persuasão que faça aparecer aos olhos dos ignorantes mais entendida do que os entendidos

A retórica é uma espécie de "cozinha da alma", porque ela é para a alma o que a cozinha é para o corpo, ou seja, não procura a saúde nem a beleza verdadeira, mas apenas aparente, superficial e artificial, interessa-se pelo prazer imediato e pode ser a ruína da saúde. Deste modo, a retórica é “um disfarce” que não pode ser senão algo de feio “porque visa o agradável sem a preocupação do melhor”...

Não precisa a retórica de conhecer a natureza das coisas, mas tão-somente de encontrar um meio qualquer de persuasão que a faça aparecer aos olhos dos ignorantes como mais entendida que os entendidos.

Na argumentação, responde à seriedade do teu oponente com um gracejo e ao seu gracejo com a tua seriedade.

Górgias, antigo Górgias, que dizias Que se alguém algum dia compreendesse, Atingisse a verdade, não podia Comunicá-la aos outros — já entendo O teu profundo e certo pensamento Que ora não compreendia. Tenho em mim A verdade sentida e compreendida, Mas fechada em si mesma, que não posso Nem pensá-la. Senti-la ninguém pode. Cada homem tem em si — eu chego a crer E tu Platão sonhaste-o — a verdade, Sem consciência de a possuir. Pois o inanalisado sentimento E inanalisável, de viver, De existir, da existência, e do existente Não tem em si verdade? ... Eu quereria (Ah pudesse eu dizê-lo — não o sei) Nem viver nem morrer — não sei o quê, Nem sentir nem ficar sem sentimento. . . Nada sei. . . Serão frases o que digo Ou verdades? Não sei. . . eu nada sei. . . Não posso mais, não posso, suportar Esta tortura intensa — o interrogar Das existências que me cercam. . . Vamos, Abramos a janela. . . Tarde, tarde. . . E tarde. . . Eu outrora amava a tarde Com seu silêncio suave e incompleto Sentido além Da base consciente do meu ser.Hoje não mais, não mais me voltarão As inocências e ignorâncias suaves Que me tornavam a alma transparente... Vem de pensar, onde buscaria lágrimas Se elas para o pensar não foram dadas? Já nem sequer poder dizer-vos: Vinde, Lágrimas, vinde! Nem sequer pensar Que a chorar-vos ainda chegarei! (Cai de joelhos ante a janela, a cabeça sobre os braços, olhando distraidamente para longe)

O que parece a mim é para mim, e o que parece a ti é para ti.

Alberto Caeiro é, cremos, o maior poeta do século vinte, porque é o mais completo subversor de todas as sensibilidades diversamente conhecidas, e de todas as fórmulas intelectuais variamente aceites. Viveu e passou obscuro e desconhecido. É esse (dizem os ocultistas) o distintivo (sinal) dos Mestres.

Mestre, Alberto Caeiro, que eu conheci no princípio E a quem depois abandonei como um espantalho reles, Hoje reconheço o erro, e choro dentro de mim, Choro com a alegria de ver a lucidez com que choro E embandeiro em arco à minha morte e à minha falência sem fim, Embandeiro em arco a descobri-la, só a saber quem ela é. Ergo-me em fim das almofadas quase cómodas E volto ao meu remorso sadio.



Alfarrábio - livro há muito editado, que tem valor por ser antigo. A palavra deriva de Al-Farabi, um dos primeiros filósofos mulçumanos, durante a Idade Média. Além de filósofo, interessava-se por química, religião, ciência política, ética, física e ciências naturais. Al-Farabi formulou, com uma clareza até então desconhecida, a distinção entre a existência e a essência. Retomou a teoria aristotélica sobre a eternidade do mundo, o que lhe causou problemas entre os islâmicos ortodoxos, mas nunca autonomizou a religião da filosofia.

Apesar da forte influência da Alemanha na expansão da comercialização de obras usadas, a palavra alfarrábio é uma exclusividade dos portugueses. De acordo com artur anselmo, na falta de uma rede organizada de alfarrabistas em Lisboa, era para a Feira da Ladra que, nos meados do século XIX, afluía o papel velho dos livros impressos e manuscritos que sobravam da refrega entre o Liberalismo e os frades. João Pereira da Silva, que nunca fora frade, acabaria por ser conhecido como tal. Viera para Lisboa aos caídos e arranjara um quarto nas imediações da feira. Começou então a adquirir livros e papéis nesse terreiro privilegiado para os pechincheiros. Assim constituiu o fundo de alfarrábios com que montou uma loja na Rua dos Retrozeiros nº96, inaugurada em Maio de 1867


São de outro tom os singelos contos que formam estes Alfarrábios... não convidam ao riso, que tão excelente especiaria é para um livro de entreter. Bem longe disso, talvez que espremam dos corações mais ternos e sentimentais uns fios de lágrimas. Caso assim aconteça, será com bem pesar meu, pois sinceramente acho de mau-gosto lembrar-se alguém de produzir choros d'artifício à guisa de jogos de vista, quando não faltam motivos reais de tristeza e aflição...

Estou só no mundo. A quem direi a minha dor? Ao vento para levá-la à gente que me escarnece? Que profunda é a solidão desta casa... parece-me um túmulo! A noite desce como lousa fria e negra. Ah! Se com ele me trouxesse o repouso. Mas é só morte ao coração, a fé, a crença. A dor vive em meu cadáver. Depois que morri não me conhece... Sim! conhecem-me quando me fogem...

A noite invadia lentamente a minha inatenção. Despertei de repente para a ver entrada. Flutuavam ainda, nas indecisões da Natureza, ruídos incertos como se as coisas compusessem o manto para adormecer. Tive um outro intervalo comigo próprio. Tornei a meditar sem saber em quê. Quando de novo despertei o silêncio era absoluto — logo invisível de todos os meus sonhos idos e das minhas esperanças mortas, e a minha consciência da vida afundava-se lentamente nele, assumindo, à medida que se afundava, noções novas de possibilidades de compreender a vida sob outros aspectos, vagos terrores e interiores.

E, ó vento vago
Das solidões,
Minha alma é um lago
De indecisões.
Ergue-a em ondas
De iras ou de ais,
Vento que rondas
Os pinheirais!



Procurou-se, em princípio, desvendar quais as características essenciais de toda a classe de governo, correndo o raciocínio sobre todas as guerras de sociedade(s). Uma dessas características é logo evidente: toda a classe governante é sempre uma minoria . Porque, claro é — governar é uma especialização.
A diferença entre uma aristocracia e uma democracia é que numa aristocracia os governantes são uma classe , especialista pelos hábitos e tradições e aprendizagem de governo, corno os sapateiros, os alfarrabistas e outros artistas no seu ramo; ao passo que numa democracia os governantes são, não uma classe, mas uma acumulação de indivíduos.
Por isso a natureza essencial de uma democracia é ser individualista. Toda a democracia que o não for falta e trai a sua natureza de democracia.
Na democracia pura não há limite a esse acesso individual; na democracia limitada há-de (...)
No regime monárquico o rei ocupa a mesma posição que no regime democrático ocupa o povo; é em ambos os casos ilusória a força política e muito real a aplicabilidade política
.


Fernando pessoa considera os alfarrabistas artistas...

As casas eram grandes jazigos impossíveis. As árvores, no seu alinhamento ao longo da avenida, vagas atitudes despidas de nos poderem dar qualquer ideia de vegetais. Tive de repente uma sensação ampla e absurda — a de que eu era um mar, ou o traço de um mar, que a vaga proa de não sei que navio vinha erguidamente abrindo. Pareceu-me que me dividia e que através do meu dividir, me passavam sensações de outras coisas e que essas sensações por me dividirem no passar, não eram sentidas por mim. Acabou tudo como uma rua quando viramos a esquina. Tive uma dificuldade física em me crer existente. Para além da linha dos cimos dos prédios olhava a […]

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