Não é neccessário vivermos ao lado de alguém para nos sentirmos ligados a esse alguém mais do que a qualquer outra pessoa...

terça-feira, 19 de março de 2019

Perplexidade...Mitos...Delírios

Hoje acordei com o seguinte perplexidade tão politicamente incorreto que nem eu colocaria um "gosto", sem muitas, muitas reservas: a legítima e necessária preocupação com os animais e com as minorias não andará a originar que a maioria dos seres humanos se sinta desvalorizada e abandonada? As maiorias de Trump, Bolsonaro e similares não terão como causa esse abandono?
Tenho pensado no filho que, mesmo amado pelos pais, não tem a sua atenção porque se porta bem, tem sucesso na escola e na vida: as energias afetivas e, até, económicas convergem quase exclusivamente para o filho rebelde e problemático. Não andarão os partidos demasiado preocupados com os filhos mal comportados?



"Maria Gabriela Llansol há de ser, depois de Pessoa, o grande mito da literatura portuguesa" - Eduardo Lourenço

"Numa história, há (ou não há) um momento de desvendamento a que se chama sublime. (...) quase só esse momento interessa à escrita" – Neste romance(?) existem duas figuras essenciais na obra de Llansol, Aossê (Fernando Pessoa) e Témia (a rapariga que temia a impostura da língua).
A morte da tia Assafora traz a narradora de volta à casa de sua infância, onde irá rever a serva e o pai e refletir sobre a aprendizagem da língua, a leitura e a escrita. Neste beijo desafiam-se todas as fronteiras do que se considera ficção, diário, poesia, ensaio, memórias...

"A impostura da língua é pretender que se diz o que não se está a dizer; a pessoa quer dizer o que não está a dizer porque não está a tratar o texto como tal; é querer aproximar-se de outro de quem não se está a aproximar, é querer ter um acesso que não está a ter. A impostura da língua é desviar o texto de seu curso próprio, que é uma intimidade profunda e indestrutível entre si próprio e o que se diz."

_______________ prendeu a cabra a um castanheiro que se via da janela mas estava longe; a cabra não deixava de se ouvir e, mesmo depois do pôr do sol, balia; disse que ia cortar-lhe o som, e dirigiu-se para ela com a mão direita e uma faca; o pêlo agitou-se sem balir, e ficou a sangrar; mais nenhum ruído atravessou o nosso sossego, mas uma segunda língua,com parte no céu-da-boca, principiou a nascer-lhe, e foi ela a voz.
O lugar da intersecção da língua arrancada com a outra língua transparente é herança da rapariga que temia a impostura da língua. [...]Da intersecção das duas línguas – a que se ouvia balindo, e a que nasceu do sangue – voou o Falcão, ou Aossê feito ave.


o silêncio não é constituído pela sua ausência, mas pela memória do seu ruído

[…]porque o que me parece como real é feito de cenas, e porque surgem com um caráter irrecusável de evidência. O que tenho referido raramente é que essas cenas fulgor se verificam sempre na proximidade doque chamo ponto-voraz, e que é simultaneamente a fonte de luz intensa que ilumina a cena fulgor, e o lugar onde ela se anula. Se, por inépcia, a cena é levada demasiado próximo desse ponto, com a intenção de a tornar mais brilhante e viva___a cena desaparece, e o olhar cega.



O amor, quando se revela,
Não se sabe revelar.
Sabe bem olhar p'ra ela,
Mas não lhe sabe falar.

Quem quer dizer o que sente
Não sabe o que há-de dizer.
Fala: parece que mente...
Cala: parece esquecer...

Ah, mas se ela adivinhasse,
Se pudesse ouvir o olhar,
E se um olhar lhe bastasse
P'ra saber que a estão a amar!

Mas quem sente muito, cala;
Quem quer dizer quanto sente
Fica sem alma nem falar,
Fica só, inteiramente!




Mas se isto puder contar-lhe
O que não lhe ouso contar,
Já não terei que falar-lhe
Porque lhe estou a falar




"Em Cinco Meninos, Cinco Ratos, o segundo volume das mitologias de Gonçalo M. Tavares, encontramos alguns momentos em que imaginamos compreender uma alusão histórica escondida por detrás do universo mitológico que, à parte desses breves instantes, parece estar a ser construído de raiz. Achamos que encontramos uma alusão a Israel na história do Povo-Inteiro ou à Alemanha Nazi no massacre dos Homens-Com-a-Cabeça-Perto-do-Chão às mãos dos Combatentes. Mais tarde, suspeitamos que na peculiaridade do nome de Ber-lim se esconda uma referência ao muro e à Guerra Fria e, já em desespero, desejamos que ao menos os cinco meninos que dão título ao livro possam ser iluminados pela história dos filhos homónimos dos Romanov. No entanto, Gonçalo M. Tavares rapidamente nos retira o conforto da familiaridade e abandona-nos ao mais absoluto espanto (em certo sentido, esperar alguma coisa minimamente parecida com um romance histórico vindo de Gonçalo M. Tavares é tão peculiar como desejar ter Teixeira de Pascoaes a comentar a actualidade na televisão).

Na citação de Walter Benjamin que encerra o primeiro volume das mitologias, lê-se que “todas as manhãs somos informados sobre o que de novo acontece na superfície da Terra. E no entanto somos cada vez mais pobres de histórias de espanto. Isso deve-se ao facto de nenhum acontecimento chegar até nós sem estar já impregnado de uma série de explicações.” O objectivo de Gonçalo M. Tavares ao longo de Cinco Meninos, Cinco Ratos não parece ser outro que não o de eliminar essas mesmas explicações que normalmente nos cegam, para nos devolver o espanto perdido.

O trabalho do escritor surge assim, nas mitologias, não como um esforço de criação mas de remoção. Desaparecem as explicações habituais para os comportamentos das personagens, desaparecem as delimitações que estabelecemos entre o que pode ou não constituir uma personagem, desaparecem as consequências das acções, desaparecem os inícios e desaparece o fim da história.

Repetidas vezes ao longo das vinte histórias que constituem o livro, somos informados acerca da violência com que a Velocidade é utilizada para enlouquecer e torturar as personagens. Esta violência é tão extrema que, em alguns casos, loucos, “após serem submetidos à Velocidade do Comboio, chegam a um ponto tal de consciência que perdem a noção de fome, como se ter fome fosse algo semelhante a perder memória — mas é bem mais grave. Esse corpo não esquece apenas datas e nomes, esquece o início, a origem primeira, o que esteve na base de tudo, até do Comboio, esquece o organismo, este animal que sabe bem o que é importante” (p.149). Gonçalo M. Tavares parece, portanto, apostado em obter, com a sua escrita, os mesmos resultados que o Comboio obtém com a Velocidade: fazer-nos esquecer o início, a origem primeira, a base de tudo.

A violência extrema deste universo mitológico é, no entanto, absolutamente impotente. A primeira frase da história introdutória de Cinco Meninos, Cinco Ratos (“Ber-lim leva atrás de si a Avestruz que acabou de comer parte do cérebro da Mulher-Ruiva” (p.10) aponta desde logo para uma violência que se repetirá inúmeras vezes ao longo das restantes histórias. No entanto, desta violência nenhuma consequência advém. Vemos personagens levarem tiros com a arma encostada à sua cabeça a surgirem, sem qualquer informação adicional, pouco depois numa consulta de oftalmologia; vemos personagens que escapam incólumes à alegadamente aterradora Zona-de-Morte; vemos baleados que sobrevivem apenas para serem enforcados algumas páginas mais à frente e que ainda assim não morrem; vemos homens que escapam ilesos ao atropelo da sua própria cabeça pelo temível Comboio; vemos personagens cujo cérebro serve de repasto à Avestruz sem que nenhuma consequência neurológica ou vital daí advenha. Como é dito em A Mulher-Sem-Cabeça e o Homem-do-Mau-Olhado, “todos tremem, todos são mortos. Pelo menos, é isso que parece” (p.51).

Esta impotência generalizada não acontece, todavia, apenas em relação à morte. O Homem-do-Mau-Olhado é descrito como uma personagem tão temível que, ao olhar de frente o Caçador, sabe “que o tempo, a forma e a intensidade com que já olhou, mesmo só com um olho, é suficiente para que o Caçador tenha já, desde aquele momento, a vida partida em dois. Tudo mudará, aquele olhar não deixa nada atrás: amaldiçoa, faz adoecer, tortura, mata; tudo de mau irá acontecer àquele homem que agora tem uma arma na mão, uma espingarda de caça” (p.25). No entanto, deste olhar, pelo menos neste volume, nada resulta, tal como nada resulta do olhar que o Homem-do-Mau-Olhado lança a Olga e ao Povo-Inteiro, por meio dessa acção rebaptizado de Povo-Já-Amaldiçoado.

Talvez (diante da mitologia de Gonçalo M. Tavares é um erro livrarmo-nos destas marcas de incerteza) a chave de leitura certa para Cinco Meninos, Cinco Ratos esteja na personagem de Anastácia. A mais nova dos cinco meninos está constantemente a desaparecer de ao pé dos irmãos. No entanto, este desaparecimento nunca justificado não deixa em pânico, ao contrário do que seria de supor, os quatro Romanov, já de si também perdidos. Todos estes desaparecimentos são concluídos com o abrupto regresso de Anastácia apenas para que Anastácia (cujo nome talvez não por coincidência significa Ressurreição em grego) se volte novamente a perder.

A dificuldade de analisar um livro de Gonçalo M. Tavares talvez possa ser melhor compreendida se olharmos para “Uma Gota”, o conto de Buzzati onde se narra a história de uma gota que, em vez de descer as escadas obedecendo à gravidade, sobe. Buzzati conclui o conto com dois parágrafos que permitem descrever Cinco Meninos, Cinco Ratos de uma forma muito mais acertada do que foi feito no artigo acima. Escreve Buzzati:

“# então, insistem, será por acaso uma alegoria? Querer-se-á, por assim dizer, simbolizar a morte? Ou algum perigo? Ou os anos que passam? Nada a fazer, senhores: é simplesmente uma gota, só que sobe pelas escadas.

Ou, mais subtilmente, pretende-se figurar os sonhos e as quimeras? As terras imprecisas e longínquas onde se presume a felicidade? Algo poético, em suma? Não, absolutamente não. Ou os lugares mais longínquos ainda, no fim do mundo, aonde nunca chegaremos? Mas não, digo-vos, não é uma brincadeira, não há duplos sentidos, trata-se, felizmente, apenas duma gota de água, tanto quanto é dado entender, que de noite vem pelas escadas acima. Tic, tic, misteriosamente, de degrau em degrau. E é por isso que temos medo.”

Outra crítica

"A amoralidade é o fio condutor do mais recente livro de Gonçalo M. Tavares. Segundo volume da série "Mitologias", Cinco Meninos, Cinco Ratos sucede a A Mulher-Sem-Cabeça e o Homem-do-Mau-Olhado.

A crueldade que povoa o segundo volume da série "Mitologias", Cinco Meninos, Cinco Ratos, impressiona qualquer leitor. Não necessariamente pelo requinte de perversidade (embora esteja bem presente) com que vamos sendo confrontados, mas pela abolição do espanto que tais atos provocam.

Um rapaz com os olhos vendados dispara indiscriminadamente sobre um grupo de convidados na sua festa de aniversário sem que essa conduta seja condenada. Um padre que tenta por todos os meios converter os estranhos à sua religião é condenado à forca perante a complacência geral. Os exemplos sucedem-se, acentuando o caráter concentracionário de um universo situado para lá das normas que nos habituámos a associar ao Bem ou ao Mal.

À semelhança do anterior A Mulher-Sem-Cabeça e o Homem-do-Mau-Olhado, mas de um modo ainda mais intenso, encontramo-nos num cenário pós-apocalíptico em que a lei do mais forte se sobrepõe a qualquer outra. Criaturas errantes (como o Gigante, o Homem-com-a-Boca-Aberta) semeiam um medo ao qual todos os outros procuram resistir como podem. Sem a consciência dos seus atos, limitam-se a seguir os seus intentos, expressando a sua animalidade mais básica através da violência sobre os outros.

Em contraponto com o caos dominante, cinco jovens irmãos surgem-nos como aparentes vítimas indefesas de um mundo distópico. Não sabem para onde vão. Apenas sabemos que estão em fuga permanente. Nessa jornada contra o medo cruzam-se a toda a hora com figuras tocadas pelo Mal, conseguindo subverter a sua perversidade através da sua candura.

Igual sorte não têm muitos habitantes neste pouco admirável mundo novo. Na maioria dos casos, são vítimas da ferocidade das regras. Ou enlouquecem quando são expostos levemente aos seus efeitos, como acontece a todos os que embarcam num comboio veloz.

Toda esta indústria do Mal, em que cada ser (homem ou animal) é uma máquina de guerra impiedosa, não produz consequências. O homem decapitado numa linha de comboio aparece umas páginas adiante noutra situação não menos terrível.
Esta eliminação da morte não tem um efeito redentor. Antes surge como a perpetuação de um pesadelo a que todos tentam escapar em vão.
A única exceção neste macabro jogo da cabra cega é Tatiana, a mais jovem dos cinco irmãos, que está constantemente a aparecer e a desaparecer ao longo do livro. Se todos os outros fogem em nome da sobrevivência, para escapar ao horror que os rodeia, ela fá-lo em nome da pura diversão. Protegida pelos muros altos da infância, não sucumbe ao medo como os restantes. Bem pelo contrário. É capaz de desarmar uma figura hedionda com a sua graciosidade, uma espécie de detonador pacífico do Mal.

A sua força maior é o espanto, exceção à regra num mundo onde ninguém tem esse sobressalto interior que nos separa da barbárie


Uma gota
"Uma gota d’água sobe os degraus da escada. Você está ouvindo? Estirado na cama, em meio à escuridão, ouço seu estranho percurso. Como ela faz? Saltita? Tec, tec, ouve-se intermitentemente. Em seguida, a gota detém-se e, talvez, pelo resto da noite, não dê mais sinal de vida. Mas ela sobe. De degrau em degrau, ela vem escada acima, diferentemente das outras gotas que, em cumprimento à lei da gravidade, caem verticalmente e, por fim, produzem um pequeno estalido, bastante conhecido no mundo
todo. Esta, não: devagar, bem devagar, ela ascende pela escadaria até chegar ao patamar letra E do enorme, interminável edifício.
Não fomos nós, adultos, refinados, excepcionalmente sensíveis, quem a percebeu, mas sim, uma simples empregada do primeiro andar, esquálida pequenina ignorante criatura. Deu pela gota à noite, altas horas, quando todos já haviam se recolhido. Mas não
conseguiu se segurar por muito tempo, pulou da cama e correu para acordar a patroa. "Senhora", sussurrou. "Senhora!" "O que houve?”, perguntou a patroa atônita. "O que está acontecendo?" "Tem uma gota, senhora, uma gota que está subindo pelas escadas!” “O quê?” perguntou a outra a sobressalto. “Uma gota que está subindo os degraus!”, repetiu a empregada já quase aos prantos. "Que besteira" vociferou a patroa. "Você ficou louca? Vá, vá, vá! Volte para a cama! Você bebeu, é esse o problema, sua sem vergonha. É por isso que, de um tempo para cá, a garrafa de vinho tem aparecido vazia pela manhã! Sua imunda! Se você pensa que...” Mas a essa altura, a pobre moça já se refugiara debaixo das cobertas. “Vai saber o que se passou pela cabeça daquela idiota”, pensava então a patroa em silêncio, depois de ter já perdido o sono. E, involuntariamente com os ouvidos na noite que dominava o mundo, também ela escutou o curioso ruído. Uma gota que subia pelas escadas, com toda a certeza.
Zelando pela tranquilidade, por um instante a senhora pensou em ir lá fora certificar-se. Mas o que poderia ter constatado à miserável luz das lâmpadas turvas sobre o corrimão? Como ir ao encalço de uma gota em plena noite, com aquele frio, ao longo dos lances tenebrosos da escadaria? Nos dias que se seguiram, de família em família, o boato espalhou-se lentamente e agora, ainda que, em cada casa, todos tenham tomado conhecimento do fato, preferem não tecer comentários, como se fosse algo tolo de que talvez tenham vergonha. Agora muitos ouvidos estão alerta, na escuridão, quando a noite já fechada vem oprimir o
gênero humano. E cada um pensa uma coisa diferente. Em determinadas noites, a gota silencia. Em outras, porém, por longas horas ela ininterruptamente desloca-se para cima como se não fosse mais parar. Aceleram os corações no momento em que o suave passo parece tocar a soleira. Dos males o menor; não parou. Vejo que se distancia, tec, tec, dirigindo-se ao andar de cima.
Pela manhã, saindo de casa, olham atentamente a escada para verificar a existência de algum vestígio. Nada, como esperado. Nem a menor pista. Pela manhã, porém, quem ainda leva a sério esta história? Ao sol da manhã o homem é forte, é um leão, mesmo
que poucas horas antes se sentisse intimidado. Ou será que os moradores da sobreloja têm razão? Nós, da outra parte do edifício, que antes não escutávamos nada e nos mantínhamos isentos, há algumas noites também temos ouvido algo. A gota está ainda distante, é verdade. A nós chega apenas um levíssimo teque-teque, lastimoso eco que atravessa as paredes. No entanto, é sinal de que ela está subindo e se aproximando cada vez mais. Nem mesmo dormir num cômodo mais reservado, longe da escadaria, faria diferença. Melhor ouvir o ruído do que passar a noite na incerteza de ela estar lá. Os que vivem nos cômodos mais afastados às vezes não conseguem resistir, avançam furtivos e em silêncio pelos corredores e detém-se na entrada gélida da casa, atrás da porta, respiração suspensa, ouvidos alerta. Se a ouvem, não mais ousam distanciar-se, escravos de medos
indecifráveis. Tanto pior, porém, quando tudo se acalma: nesse caso, como garantir que, logo após se recolherem, o ruído não comece de novo? Que estranha vida, pois. E não poder protestar, nem tentar soluções, nem encontrar uma explicação para acalmar os ânimos. E nem mesmo ser capaz de persuadir os outros, das outras casas, os quais não sabem. Mas o que seria essa gota, então? — perguntam com exasperadora boa-fé. — Um rato, talvez? Um sapinho saído das tabernas? — Não, de forma alguma. Bem, então — insistem — seria, por acaso, uma alegoria? Haveria a intenção, por assim dizer, de simbolizar a morte? Ou algum perigo? Ou os anos que passam? — Nada mesmo, senhores: é simplesmente uma gota; a única diferença é que ela vem escada
acima. Ou pretende-se, de forma mais sutil, representar os sonhos e as quimeras? As terras distantes, com as quais sonhamos, onde imaginamos encontrar a felicidade? Algo poético, enfim? Não, absolutamente. Ou os lugares ainda mais distantes, nos confins do mundo, aos quais nunca chegaremos? Mas, não, eu lhes digo, não é brincadeira, não há duplos sentidos; trata-se
simplesmente, ai de mim, até o que se sabe, de uma gota d'água, que à noite vem escada acima. Tec, tec, misteriosamente, de degrau em degrau. E é por isso que se tem medo."
Dino Buzzati (1906-1972) Tradução: Ricardo Vagnotti

Entre a dor e o nada, escolho a dor.



Dormir e sonhar, é tão bom dormir e sonhar..../ O que é a vida, o que é a realidade, quando os sonhos dos homens são maiores?




A estrada inteiramente insubjectiva
Branca, branca, sem pensamento algum



...sentira crescer em si um sentimento indefinido e excitante de felicidade e expectativa, e agora o seu espírito parecia um balão infantil, pequeno e colorido, que se tivesse soltado e pairasse lá no alto, cintilante, contra o Sol. E no momento seguinte rebentaria.
Rebentou...

Ave atque vale, ó assombroso universo! Ave atque vale, de que diversa maneira É que eu te verei, e será definitivamente, Se haverá ainda mais vida, mais modos de te conhecer, Mais lados de onde te olhar, — e talvez nunca te verei do Único —Seja como for, ave atque vale, ó Mundo! (...) Abandonar toda esta forma, de sentidos e pensamento, de sentir as coisas,Como uma capa que me prenda,
Quando de vez minha alma chegar à superfície da minha pele E dispersar o meu ser pelo universo exterior,Seja com alegria que eu reconheça que a Morte...(...) Numa viagem oblíqua do meu leito de moribundo Viagem em diagonal às dimensões dos objectos Para o canto do tecto mais longe, a cama erguer-se-á do chão, Erguer-se-á como um balão ridículo e seguirá Como um comboio sobre os rails directamente...

Vou atrás de ti, mas tu foges num balão...


As cidades nasciam ali, brilhavam e depois desapareciam; os homens passavam por lá, amavam-se ou atiravam-se às gargantas uns dos outros, e depois morriam. Nesse deserto, ninguém, nem ele nem o seu hóspede, era nada. E, no entanto, fora desse deserto, Daru bem o sabia, nem um nem outro teriam conseguido realmente viver.

Daru contemplou o céu, o planalto, e, para além, as terras quase invisíveis que se estendiam até ao mar. Nesse vasto país, que ele tanto amara, estava agora só, completamente só.


O florir do encontro casual / Dos que hão sempre de ficar estranhos...
Grandes mágoas de todas as coisas serem bocados...




Não poder Tarde
Adivinhar (...) o teu segredo
E o teu mistério ilúcido ignorar
E o que tens que (...) esta emoção
Encontrar (...) e o sentido,
Vaga desesperança quase amarga,
Da sensação que dás. Dás-me um aumento
Da muda comoção indefinida
Que sonha dentro em mim, uma ânsia como
Que um esquecer de mal lembradas cousas,
Ou de esquecidas vago relembrar,
Intensas, rumorosas, torturadas,
Mágoas de quem (a) existir se sente,
Inconsolável desesperação,
Vazia plenitude do sofrer.




Sonhei. Desperto. Um tédio doloroso
De ter sonhado, ou então de despertar,
Me ocupa o espírito indeciso e ocioso.
Sou como o movimento do alto mar,
Que parece existir sem avançar.


De suave e aérea a hora era uma ara onde orar. Por certo que no horóscopo do nosso encontro benéficos conjuntos culminavam. Tal, tão sedosa e tão subtil, a matéria incerta de sonho visto que se intrometia na nossa consciência de sentir. Cessara por completo, como um verão qualquer, a nossa noção ácida de que não vale a pena viver. Renascia aquela primavera que, embora por erro, podíamos pensar que houvéssemos tido. No desprestígio das nossas semelhanças os tanques lamentavam-se da mesma maneira, entre árvores, e as rosas nos canteiros descobertos, e a melodia indefinida de viver — tudo irresponsavelmente.

Meu império é das horas desiguais,
E dei meu gesto lasso às algas mágoas
Que há para além de sermos outonais...


Não vale a pena pressentir nem conhecer. Todo o futuro é uma névoa que nos cerca e amanhã sabe a hoje quando se entrevê. Meus destinos os palhaços que a caravana abandonou, e isto sem melhor luar que o luar nas estradas, nem outros estremecimentos nas folhas que a brisa, e a incerteza da hora e o nosso julgar ali estremecimentos. Púrpuras distantes, sombras fugidias, o sonho sempre incompleto e não crendo que a morte o complete, raios de sol mortiço, a lâmpada da casa na encosta, a noite angustiosa, o perfume a morte entre livros só, com a vida lá fora, árvores cheirando a verdes na imensa noite mais estrelada do outro lado do monte. Assim, as tuas agruras tiveram o seu consórcio benigno; as tuas poucas palavras sagraram de régio o embarque, não voltaram nunca naus nenhumas, nem as verdadeiras, e o fumo de viver despiu os contornos de tudo deixando só as sombras, e os engastes, mágoas das águas nos lagos aziagos entre buxos por portões (a vista de longe) Watteau, a angústia, e nunca mais. Milénios, só os de vires, mas a estrada não tem curva, e por isso nunca poderás chegar. Taças só para as cicutas inevitáveis — não as tuas, mas a vida de todos, e mesmo os lampiões, os recessos, as asas vagas, ouvidas só, e com o pensamento, na noite inquieta, sufocada, que minuto a minuto se ergue de si e avança pela sua angústia fora. Amarelo, verde-negro, azul-amor — tudo morto, minha alma, tudo morto, e todos os navios aquele navio sem partir! Reza por mim, e Deus talvez exista por ser por mim que rezas. Baixinho, a fonte longe, a vida incerta, o fumo acabando no casal onde anoitece, a memória turva, o rio afastado... Dá-me que eu durma, dá-me que eu me esqueça, senhora dos Desígnios Incertos, Mãe das Carícias e das Bênçãos inconciliáveis com existirem...


No meu cansaço perdido entre os gelos,
E a cor do Outono é um funeral de apelos
Pela estrada da minha dissonância...


Toda a vida da alma humana é um movimento na penumbra. Vivemos, num lusco-fusco de consciência, nunca certos com o que somos ou com o que nos supomos ser. Nos melhores de nós vive a vaidade de qualquer coisa, e há um erro cujo ângulo não sabemos. Somos qualquer coisa que se passa no intervalo de um espectáculo; por vezes, por certas portas, entrevemos o que talvez não seja senão cenário. Todo o mundo é confuso, como vozes na noite.(...)
É nestas horas de um abismo na alma que o mais pequeno pormenor me oprime como uma carta de adeus.
Sinto-me constantemente numa véspera de despertar, sofro-me o invólucro de mim mesmo, num abafamento de conclusões. De bom grado gritaria se a minha voz chegasse a qualquer parte. Mas há um grande sono comigo, e desloca-se de umas sensações para outras como uma sucessão de nuvens, das que deixam de diversas cores de sol e verde a relva meio ensombrada dos campos prolongados.
Sou como alguém que procura ao acaso, não sabendo onde foi oculto o objecto que lhe não disseram o que é. Jogamos às escondidas com ninguém. Há, algures, um subterfúgio transcendente, unia divindade fluida e ouvida.


Braços cruzados, sem pensar nem crer,
Fiquemos pois sem mágoas nem desejos.
Deixemos beijos, pois o que são beijos ?
A vida é só o esperar morrer.


O poema que eu gostaria que me tivessem dedicado:

Me inquieta al dormirme
la posibilidad de no encontrarme al despertar.
Pero me inquieta más todavía
la posibilidad de no encontrarte.
Me inquieta al dormirme
la posibilidad de que nos sustituyan
mientras duermo.
Pero me inquieta más aún la posibilidad
de no reconocernos cuando despierte.
Me inquieta al dormirme
la posibilidad de que al despertar
nada corresponda con nada,
ni siquiera tú conmigo.
Pero me inquieta más todavía
la posibilidad de que a ambos nos borren el pasado
y tú y yo no hayamos existido nunca.


" Deleuze assinala que o delírio é a invenção possível para nos aproximarmos de certa captura desse sonho que nos sonha. Sabemos que, muitas vezes, para extrair a voz que se inscreve no texto, é preciso destacar a palavra do discurso e parti-la em quantos pedaços o desejo permitir. Sublinhemos assim a palavra “delírio”. Delirar, para esse filósofo, é uma espécie de método de leitura na tangência da representação – desvio
da lira; é testemunhar aquilo que a linguagem nunca conseguirá abranger; é sensibilizar-se com a voz que se inscreve não só por entre as letras que compõem as palavras, mas, também, por sobre os riscos, os traço, as pausas; é inventar outra forma de ler sobre o texto e escrever com um acontecimento que não deixa memória; é, enfim, se permitir riscar o papel em um sulco distraído que possa vir a marcar uma presença de algo que se ausentou."
É o delírio que as inventa, como processo que arrasta as palavras de um extremo a outro do universo. São acontecimentos na fronteira da
linguagem. Porém, quando o delírio recai no estado clínico, as palavras em nada mais desembocam, já não se ouve nem se vê coisa alguma através
delas, exceto uma noite que perdeu sua história, suas cores e seus cantos. A literatura é uma saúde.


"Aquele que escreve a partir da experiência com o irrepresentável goza de uma frágil saúde irresistível, que provém do fato de ter visto
e ouvido coisas demasiado grandes para ele, fortes demais, irrespiráveis, cuja passagem o esgota
, daquilo que viu e ouviu, o escritor regressa com olhos vermelhos, com os tímpanos perfurados. O limite da linguagem, para Deleuze, não está no fora da linguagem, o limite é o próprio Fora. Para aquele que atravessou outro mundo e regressou com os olhos vermelhos e os tímpanos perfurados, só resta, como “saída-delírio”, a invenção de uma língua, uma língua estrangeira, escavada no interior da língua materna mediante a criação de uma outra sintaxe."

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