Não é neccessário vivermos ao lado de alguém para nos sentirmos ligados a esse alguém mais do que a qualquer outra pessoa...

quinta-feira, 9 de abril de 2020

Pestes: diálogos intemporais...

Prelúdio:uma forma diferente de peste...

O momento de propor uma relação aberta era antes do casamento, e não trinta e cinco anos mais tarde. / Pensou nela... Talvez fosse apenas isso, uma obsessão venenosa, um vício que o afastava de casa, enlouquecendo-o, consumindo tudo o que eles tinham de passado e de futuro, e também de presente. / Se ele ficasse, humilhação, se partisse, o abismo. / Mas começou a sentir repugnância por corpos, a mal ser capaz de olhar para o seu ou para o dele sem sentir repulsa./ Ser alvo da compaixão geral era também uma forma de morte social.

Um contacto fugaz...Não durou mais do que dois segundos, talvez três. Tempo suficiente para sentir a suavidade que revestia a elasticidade dos lábios dele, todos os anos, toda a vida, que a separavam dele. / Não podia haver nenhum ímpeto súbito que conduzisse à intimidade. Mantiveram-se afastados do assunto que podia tê-los destruído.


Em nome das crianças, o tribunal tinha de escolher entre religião total e qualquer coisa um pouco menos radical.
Cirurgiões de máscara a oporem-se à crença sobrenatural.(...) o objetivo da cirurgia não era matar Matthew, mas salvar Mark.
Mas na Idade do Ferro, (...) as transfusões de sangue não existiam. Como podiam elas ser proibidas?
Aquele assunto não era clínico , mas sim jurídico e moral. Dizia respeito aos direitos inalienáveis de um jovem.
Continuar com o bolo na mão, embora se tenha acabado de comer.
A anorexia é um pouco como a religião.

Referências antigas

"As referências a doenças mais ou menos contagiosas são quase tão antigas quanto a invenção da escrita: já nas grandes obras da literatura indiana a tuberculose surge referida como yaksma no RigVeda (ऋग्वेद) e como balasa no AtharvaVeda, livro onde também surge mencionada a lepra. Na China, o Huangdi Neijing tornou-se um clássico incontornável da medicina do país, contendo igualmente referências a doenças ainda hoje conhecidas. O mesmo se pode dizer dos Papiros Medicinais da antiga civilização egípcia. Já no Antigo Testamento, o Levítico expõe todo um conjunto de regras sobre como tratar os leprosos e as “impurezas” em geral. Os Sumérios temiam Namtar, o deus responsável pelas pestilências, lugar ocupado por Chalchiutotolin entre os Astecas. Os Yorubas da Nigéria contam como uma partida do orixá Exu, que acabou por deixar Obatala encurralado na prisão de Shango, teve como consequência o irromper de uma peste na região. Os Japoneses temiam os Oni, demónios a quem atribuíam a causa de muitas doenças; na antiga China, Xi Wang Mu era a deusa feroz que enviava doenças infecciosas aos mortais, isto antes de começar a ser reverenciada como portadora de boa fortuna; na região da Malásia, Bajang era um espírito demoníaco cuja presença fazia muitas vezes prever a chegada de uma doença. No mundo ocidental dos últimos séculos, a devoção a São Roque de Montpellier (tal como são Sebastião, invocado em tempos de peste) em alturas de ameaça epidémica não deixa dúvidas quanto ao impacto da denominada “Peste Negra”. No mundo árabe são conhecidas as Hadith que versam a peste, e já se tem questionado a possibilidade de a sura 105 do Alcorão ,conhecida como “ O Elefante” (Surat Al-Fil, ة سو ل ف ,( ser uma descrição de como o “povo do Elefante” foi dizimado por uma doença contagiosa (descrita metaforicamente como pássaros a atirarem ininterruptamente pedras que ferem mortalmente" - Carlos Manuel Martins

Autores "clássicos"

Sófocles ( 497 a.C- 406 a.C.‎)
Tucídides (460 a.C - 400 a.C.)
Ovídio ( 43 a C - ‎17‎ ou 18 dC)
Bocaccio ( 1313 -1375 )
Fernão Lopes(Entre 1380 1390 - 1460 )
Daniel Defoe ( 1660 - 1731)
Mary Shelley( 1797 - 1851)
Edgar Allan Poe -(1809 —1849)
Herman Melville ( 1819-1891)
Thomas Mann (1875 —1955)
Albert Camus ( 1913-1960)
José Saramago( 1922 - 2010)
Ohran Pamuk ( 1952 -)
José Eduardo Agualusa
Gonçalo M. Tavares

Uma peste origina sempre, devido ao Pathos que semeia, um predomínio do Mythos( o irracional) sobre o Logos(o racional).

Édipo - Meus filhos, nova geração do antigo Cadmo nascida(1), que quereis sentados neste lugar, com ramos suplicantes adornados? A cidade está, a um tempo repleta de incenso, de peanes (2) e de gemidos.(...)
Sacerdote - (...) A cidade , como também tu próprio verificas, já se agita em estertor e não é capaz de erguer a cabeça deste abismo de ensanguentado desespero(...); entretanto o deus portador do fogo, a peste odiosa, vai perseguindo com violência esta cidade e por ela vem ficando vazia a casa de Cadmo; e o negro Hades de gemidos e lamentos se enriquece.


Morrem os frutos da terra ainda encerrados nos rebentos, adoecem as manadas de bois, não vêm à luz os germes concebidos no ventre das mulheres. A Peste, a mais odiosa de todas as deusas, brandiu o seu facho.


Guerra do Peloponeso: jamais, num mesmo período de tempo, os homens foram vítimas de tantas desgraças: terramotos, secas, eclipses e a peste...Tendo começado em 431 a C, só viria a terminar em 404 a C, mas Tucídides apenas a descreve até 411. O livro II trata dos três primeiros anos do conflito e da peste de Atenas (431-428 a C)."Para melhor se compreender o texto de Tucídides, convém ter em conta o contexto em que este se insere. Antes dele, nenhuma obra descrevera tão pormenorizadamente os efeitos de uma peste, mas a referência a acontecimentos semelhantes não deixa de ser feita nos versos iniciais da Ilíada (Ιλιάδα), em Heródoto (livro 7, onde é referido o deflagrar de uma epidemia em Creta aquando da chegada dos guerreiros vindos de Tróia)em Sófocles na peça Édipo Rei " - Carlos Manuel Martins

Dizem que ela ( a peste) apareceu anteriormente em vários lugares..., mas em parte alguma se tinha lembrança de nada comparável como calamidade ou em termos de destruição de vidas. Nem os médicos eram capazes de enfrentar a doença, já que de início tinham de tratá-la sem lhe conhecer a natureza e que a mortalidade entre eles era maior, por estarem mais expostos a ela, nem qualquer outro recurso humano era da menor valia. As preces feitas nos santuários, ou os apelos aos oráculos e atitudes semelhantes foram todas inúteis, e afinal a população desistiu delas, vencida pelo flagelo.

Dizem que a doença começou na Etiópia, além do Egito, e depois desceu para o Egito e para a Líbia, alastrando-se pelos outros territórios do Rei.
Subitamente ela caiu sobre a cidade de Atenas, atacando primeiro os habitantes do Pireu, de tal forma que a população local chegou a acusar os peloponésios de haverem posto veneno nas suas cisternas (não havia ainda fontes públicas ). Depois atingiu também a cidade alta e a partir daí a mortandade tornou -se muito maior. Médicos e leigos, cada um de acordo com a sua opinião pessoal, todos falavam sobre a sua origem provável e apontavam causas que, segundo pensavam, teriam podido produzir um desvio tão grande nas condições normais de vida; descreverei a maneira de ocorrência da doença, detalhando-lhe os sintomas, de tal modo que, estudando-os, alguém mais habilitado pelo seu conhecimento prévio não deixe de
a reconhecer se algum dia ela se voltar a manifestar, pois eu mesmo contraí o mal e vi outros a sofrer dele.

Aquele ano, na opinião de todos, havia sido excepcionalmente saudável quanto a outras doenças, mas se alguém já sofria de qualquer outro mal, todos se transformavam nela. Noutros casos, sem causa aparente mas de súbito e enquanto gozavam de boa saúde, as pessoas eram atacadas
primeiro por intenso calor na cabeça e vermelhidão e inflamação nos olhos, e as partes internas da boca (tanto a garganta quanto a língua) ficavam imediatamente da cor de sangue e passavam a exalar um hálito anormal e fétido. No estágio seguinte apareciam espirros e rouquidão, e pouco tempo depois o mal descia para o peito, seguindo-se tosse forte. Quando o mal se fixava no estômago, este ficava perturbado e ocorriam vómitos de bilis de todos os tipos mencionados pelos médicos, seguidos também de terrível mal-estar, em muitos casos sobrevinham ânsias de vómito produzindo convulsões violentas, que às vezes cessavam rapidamente, às vezes muito tempo depois. Externamente o corpo não parecia muito quente ao toque; não ficava pálido, mas de um vermelho forte e lívido, e cheio de pequenas bolhas e úlceras; internamente, todavia, a temperatura era tão alta que os doentes não podiam suportar sobre o corpo sequer as roupas mais leves ou lençóis de linho, mas queriam ficar inteiramente descobertos e ansiavam por mergulhar em água fria - na realidade, muitos deles que estavam entregues a si mesmos atiravam-se nas cisternas - de tão atormentados que estavam pela sede insaciável; e era igualmente inútil beber muita ou pouca água. Os doentes eram vítimas também de uma inquietação e insónia invencíveis. O corpo não definhava enquanto a doença não atingia o auge, e sendo assim, quando os doentes morriam, como aconteceu a tantos entre o sétimo e o nono dia de febre interna, ainda lhes restava algum vigor, ou, se sobreviviam à crise, a doença descia para os intestinos, produzindo ali uma violenta ulceração, ao mesmo tempo que começava uma diarreia aguda, que nesse estágio final levava a maioria dos doentes à morte por astenia. A doença, portanto, começando pela cabeça, onde primeiro se manifestava, descia até alastrar-se por todo o corpo; se alguém sobrevivia a esta fase, ela chegava às extremidades e deixava as suas marcas nelas, pois atacava os órgãos sexuais, dedos e
artelhos, e muitos escapavam perdendo-os, enquanto outros perdiam também os olhos. Nalguns casos o paciente era vítima de amnésia total imediatamente após o restabelecimento; não sabia quem era e não reconhecia sequer os seus próximos.

Era este, então, o caráter geral da doença, pondo de lado muitos outros sintomas menos frequentes, que afetavam cada pessoa de maneira diferente. Enquanto durou a peste, ninguém se queixava de outras doenças, pois se alguma se manifestava, logo evoluía para aquela. Às vezes a morte decorria de negligência, mas de um modo geral ela sobrevinha apesar de todos os cuidados. Não se encontrou remédio algum, pode-se dizer, que contribuísse para o alívio de quem o tomasse - o que beneficiava um doente prejudicava outro - e nenhuma compleição foi por si mesma capaz de resistir ao mal, fosse ela forte ou fraca; ele atingiu a todos sem distinção, mesmo àqueles cercados de todos os cuidados médicos. Mas o aspeto mais terrível da doença era a apatia das pessoas atingidas por ela, pois o seu espírito rendia -se imediatamente ao desespero e consideravam-se perdidas,incapazes de reagir. Havia também o problema do contágio, que ocorria através dos cuidados de uns doentes para com os outros, e os matava como a um rebanho; esta foi a causa da maior mortandade, pois se de um lado os doentes se abstinham por medo de visitar-se uns aos outros, acabavam todos perecendo por falta de cuidados, de tal forma que muitas casas ficaram vazias por falta de alguém que cuidasse deles; ou se, de outro lado, eles se visitavam, também pereciam, sobretudo os altruístas, que por respeito humano entravam nas casas dos amigos sem se preocupar com as suas próprias vidas, numa ocasião em que mesmo os parentes dos moribundos, esmagados pela magnitude da calamidade, já não tinham forças sequer para chorar por eles. Eram os sobreviventes que com mais frequência se apiedavam dos moribundos e doentes, pois conheciam a doença por experiência própria e a essa altura estavam confiantes na imunidade, pois o mal nunca atacava a mesma pessoa duas vezes, pelo menos com efeitos fatais. Eles não somente eram felicitados por todas as pessoas como, no entusiasmo de sua alegria naquelas circunstâncias, alimentavam a esperança frívola de que pelo resto de suas vidas não seriam atingidos por quaisquer outras doenças.(...)

Os corpos dos moribundos amontoavam-se e e pessoas semimortas rolavam nas ruas e perto de todas as fontes na sua ânsia por água. Os templos nos quais se haviam alojado estavam repletos dos cadáveres daqueles que morriam dentro deles, pois a desgraça que os atingia era tão avassaladora que as pessoas, não sabendo o que as esperava, tornavam-se indiferentes a todas as leis, quer sagradas, quer profanas. Os costumes até então observados em relação aos funerais passaram a ser ignorados na confusão reinante, e cada um enterrava os seus mortos como podia. Muitos recorreram a modos escabrosos de sepultamento, porque já haviam morrido tantos membros das suas famílias que já não dispunham de material funerário adequado. Valendo-se das piras dos outros, algumas pessoas, antecipando-se às que as haviam preparado, jogavam nelas seus próprios mortos e lhes ateavam fogo; outros lançavam os cadáveres que carregavam em alguma já acesa e iam embora.

De um modo geral a peste introduziu na cidade pela primeira vez a anarquia total. Ousava-se com a maior naturalidade e abertamente aquilo que antes só se fazia ocultamente, vendo-se quão rapidamente mudava a sorte, tanto a dos homens ricos subitamente mortos quanto a daqueles que antes nada tinham e num momento se tornavam donos dos bens alheios. Todos resolveram gozar o mais depressa possível todos os prazeres que a existência ainda pudesse proporcionar, e assim satisfaziam os seus caprichos, vendo que as suas vidas e riquezas eram efémeras. Ninguém queria lutar pelo que antes considerava honroso, pois todos duvidavam de que viveriam o bastante para o obter; o prazer do momento, como tudo que levasse a ele,
tornou-se digno e conveniente; o temor dos deuses e as leis dos homens já não detinham ninguém, pois vendo que todos estavam a morrer da mesma forma, as pessoas passaram a pensar que impiedade e piedade eram a mesma coisa; além disto, ninguém esperava estar vivo para ser chamado a prestar contas e responder pelos seus atos; ao contrário, todos acreditavam que o castigo já decretado contra cada um deles e pendente sobre as suas cabeças, era pesado demais, e que seria justo, portanto, gozar os prazeres da vida antes de sua consumação.


Num passagem do sétimo livro, é narrada a deflagração de uma epidemia. A narração é colocada na boca de Éaco, filho de Zeus e primeiro rei dos Mirmidões, o povo de quem Aquiles haveria de ser chefe.

Abatera-se sobre o povo uma epidemia terrível devido à ira da iníqua Juno: ela execrava a terra que tem o nome da rival. Enquanto o mal pareceu humano e se nos escapava a causa nociva de tamanha mortandade, lutámos com a medicina; as mortes superaram os meios que sucumbiram, vencidos. (...) Causando maior mortandade, aos pobres habitantes alastra a epidemia, e ela grassa dentros dos muros da grande cidade. Primeiro, os intestinos inflamam-se: sintoma das chamas ocultas no corpo são a vermelhidão e a respiração ofegante. A língua fica rugosa e incha, a boca, seca pelo vento quente fica aberta e, assim, escancarada, inspira o ar pesado. Não conseguem suportar o leito, suportar nenhuma roupa, E estendem os peitos nus sobre a terra, o corpo não arrefece, Com o chão, mas a terra é que arrefece com o contacto do corpo. Não há quem a domine: a feroz peste até sobre os médicos estoira , e a própria ciência é nociva aos que a praticam. Quanto mais próximo alguém está de um doente, e mais
devotamente cuida dele, mais depressa a morte o atinge.
Livro VII

Por todo o lado, olvidando decência, agarram-se às fontes e rios e poços enormes.Nem a beber matam a sede antes de a vida se extinguir.

Tal como em Tucídides refere-se a desorganização social, reflectida na forma desorganizada como tratam os cadáveres. As semelhanças com Virgílio saltam também aos olhos: descrevem-se as mortes dos mais diferentes animais e o próprio Éaco lembra como um animal que estava prestes a sacrificar morre antes de lhe tocar, e como as suas entranhas se mostravam de tal modo afectadas que era impossível ler-se o futuro nelas. A obra de Ovídio ganha, contudo, originalidade, quando, depois de uma descrição do que se passa entre o povo, ouvimos a voz do próprio Éaco a perguntar-se:
Qual era então o meu estado de espírito? Qual deveria ser, senão odiar a vida e ansiar por partilhar a sorte dos meus? Para onde quer que voltasse os olhos, aí havia uma multidão por terra, tal como maçãs podres que caem quando os ramos são sacudidos, ou as bolotas quando a azinheira é abanada.(...) Vi cadáveres atirados ao chão diante das portas do templo, diante até dos altares, para a sua morte ser ainda mais odiosa.(...) E já por nada há respeito: alguns lutam pelas piras, e são cremados em fogo alheio... Já não há espaço para túmulos, nem chega a lenha para os fogos.

É a primeira vez que uma narrativa da peste ganha um carácter individual, em que temos oportunidade de conhecer o que vai na mente de uma personagem que assiste impotente à desgraça do seu povo (em Tucídides ninguém é verdadeiramente destacado, o autor apenas afirma ter contraído a doença, mas nunca se auto-destaca aquando da descrição das calamidades de Atenas). Lembrando o Pathos da peste, é de crer que este saia reforçado ao destacar-se uma personagem da multidão, tornando-se assim mais fácil o processo de identificação e lamentação pretendido. As diferenças entre Ovídio e os restantes autores vão mais longe. Ao invés de ser uma angustiante descrição de calamidades sem solução, neste texto a narrativa da peste conclui com um final recompensador para Éaco. Através de um sonho, com o qual comunica com o seu pai Júpiter, este implora pelo fim da peste e vê o deus transformar uma grande quantidade de formigas em seres humanos suficientes para substituírem os que morreram: forma-se assim o povo dos Mirmidões, do qual Éaco passará a ser o rei. Nesta narração a peste, para além da sua função enquanto Pathos, tem também uma função no desenvolvimento da narrativa cujo final é positivo. Carlos Manuel Martins

O século XIV conheceu uma das maiores tragédias já vividas pela humanidade:a Peste Negra, que assola a Europa a partir de 1348, com uma intensidade jamais vista, deixando profundas marcas que influenciaram os séculos posteriores. Esse acontecimento é narrado por Giovanni Boccaccio na sua obra Decameron( (do grego: dez dias), que escreveu entre 1348 e 1353, no auge da Peste Negra em Florença .

Já tinha chegado o ano de 1348 da fecunda encarnação do filho de Deus, quando a cidade de Florença, nobre entre as mais famosas da Itália, foi vítima da mortal epidemia. Fosse a peste obra de influências astrais ou a consequência das nossas iniquidades e que Deus, na sua justa cólera, a tivesse precipitado sobre os homens, como punição dos seus crimes, a verdade é que ela se havia declarado alguns anos antes nos países do Oriente, onde arrastara para a perda inúmeras vidas humanas. Depois, prosseguindo a sua marcha sem se deter, propagou-se, para nosso mal, na direcção do Ocidente. Todas as medidas sanitárias foram sem efeito. Por mais que os guardas especialmente encarregados disso limpassem a cidade dos montes de imundície, por mais que se proibisse a entrada a todos os doentes e se multiplicassem as prescrições de higiene, por mais que se recorresse às súplicas e às orações que se usam nas procissões e àquelas, de outro género, de que os fiéis se desobrigam para com Deus, nada
deu resultado. Logo nos primeiros dias primaveris do ano a que me referi, o terrível flagelo começou, de maneira surpreendente, a manifestar as suas dolorosas devastações.
Mas não foi como no Oriente, em que o facto de sangrar pelo nariz era o sinal evidente de uma morte inelutável. Na nossa terra, no início da epidemia, quer se tratasse de homens ou de mulheres, produziam-se certos inchaços nas virilhas ou nas axilas: alguns desses inchaços tornavam-se do tamanho de uma maçã vulgar, outros como um ovo, outros um pouco maiores ou mais pequenos. Chamava-se-lhes usualmente bubões. E, no duplo domínio onde tinham aparecido de início, os bubões não tardaram, a fim de semear a morte, a crescer indiferentemente em qualquer parte do corpo. Mais tarde, os sintomas mudaram e transformaram-se em manchas negras ou lívidas que apareciam nos braços, nas coxas ou em qualquer outra parte do corpo, de umas vezes grandes e separadas, de outras muito juntas e pequenas. Tal como o bubão que fora de início, e continuava a sê-lo, o indício de uma morte certa, também as manchas o eram para aqueles em quem apareciam. Quanto ao tratamento da doença,não havia receita médica ou remédio eficaz que parecesse bom ou desse qualquer alívio. A natureza do mal opunha-se-lhe? Era culpa dos médicos? Sem falar de todos os práticos diplomados, tinha crescido em proporções incríveis o número dos homens e das mulheres que exerciam medicina sem o menor conhecimento prévio. A sua ignorância, digo, seria incapaz de descobrir a origem do mal e, consequentemente, de lhe encontrar o remédio próprio? A verdade é que as curas eram raras; e, nos três dias que se seguiam ao aparecimento dos sintomas já referidos (mais ou menos depressa segundo os casos,
mas geralmente sem febre nem qualquer perturbação aparente), quase todas as pessoas atacadas morriam. A intensidade da epidemia aumentou pelo facto de os doentes contagiarem, no seu contacto diário, os indivíduos ainda sãos, tal como o fogo quando se aproxima de uma porção de matérias secas ou gordas. E o que ainda propagou mais o desastre foi não só o facto de a prática com os doentes comunicar o mal e dar a morte às pessoas sãs, mas o simples contacto com roupas ou o quer que fosse que os pestíferos tivessem tocado ou manejado, pois através de tais objectos logo a peste se transmitia a quem deles se servisse. Escutem o prodígio que tenho de contar. Não o houvesse eu visto, como a muitas outras coisas, com
os meus próprios olhos, dificilmente ousaria acreditar em tal e mais ainda escrevê-lo, mesmo que o tivesse ouvido da boca de pessoas dignas de todo o crédito. O flagelo de que falo transmitia-se de uns para os outros com tanta força e tão naturalmente que a infecção não só passava de homem para homem, mas produzia-se um fenómeno muito mais surpreendente e muitas vezes verificado. Um objecto que pertencia a um doente ou a uma vítima da peste era tocado por um ser sem relação com a espécie humana? Não só essa criatura era contagiada, mas morria num curto lapso de tempo. Eis, entre outros factos, o que os meus olhos — acabo de vo-lo dizer — observaram um dia. Tinham sido deitados na via pública os trapos de um desgraçado, morto pela epidemia.(...)
Alguns pensavam que uma vida sóbria e a abstenção de tudo o que fosse supérfluo se impunham para combater ataque tão terrível. Formavam pois a sua brigada e viviam afastados dos outros. Agrupados e reclusos em casas onde não havia doentes e onde a vida era mais agradável, usando com a maior moderação comidas delicadas e vinhos requintados, fugindo a todo e qualquer deboche, não deixando ninguém falar-lhes, recusando-se a ouvir qualquer notícia vinda do exterior a respeito de mortes ou doenças, passavam o tempo a ouvir música ou entretidos com outros prazeres castos.
Gente havia, porém, que se conduzia de modo bem diverso. Achavam esses que entregarem-se por completo às bebidas e à licenciosidade, andarem galhofando pela cidade, de canções nos lábios, satisfazerem as paixões na medida do possível, rindo e troçando dos mais tristes acontecimentos, era o mais seguro remédio contra um mal tão atroz. Para passarem deste princípio à prática o melhor que podiam, andavam dia e noite de taberna em taberna, bebendo sem conta nem medida. Mas era ainda pior nas casas particulares se julgavam lá encontrar matéria para prazer ou distracção. De resto, nada era mais fácil. Todos perdiam a esperança de viver e deixavam ao abandono tanto os seus bens como a sua própria pessoa. A maior parte das casas caía no domínio público; os estranhos que lá se haviam instalado reinavam como donos, e é escusado dizer que juntavam à brutalidade da sua conduta o desejo de fugir sempre e a todo o preço dos pestíferos. E assim, infelizmente, no excesso de aflição e de miséria em que a cidade mergulhava, o prestígio e a autoridade das leis divinas e humanas esboroava-se e abatia inteiramente. Os guardas e os ministros da lei estavam todos eles mortos, doentes, ou tão desprovidos de auxiliares que qualquer actividade lhes era interdita. Toda a gente podia, pois, agir segundo os próprios caprichos.
Ao lado dos indivíduos que praticavam os dois tipos de vida a que me referi, muitos havia que adoptavam um meio termo. Menos preocupados do que
os primeiros em se restringirem a comer pouco, nem por isso se abandonavam aos excessos de bebida e ao deboche dos segundos. Utilizavam tudo com conta, peso e medida e segundo as suas necessidades. Em vez de se fecharem dentro de casa, circulavam pelos arredores, tendo nas mãos umas vezes flores, outras ervas aromáticas, outras várias especiarias. Levavam-nas por vezes às narinas e consideravam excelente preservar o cérebro aspirando perfumes, porque a atmosfera parecia corrompida e envenenada pelo cheiro horrível dos cadáveres, dos doentes e dos medicamentos. Alguns manifestavam mais crueldade, mas talvez mais prudência. Diziam que a garantia mais segura contra os germes do mal era a fuga. Nessa convicção, não se preocupavam a não ser consigo próprios, e muitos homens ou mulheres abandonavam a cidade, os parentes, os bens móveis e imóveis que possuíam, partindo para as províncias vizinhas ou, pelo menos, para os arredores de Florença. Julgariam que a cólera de Deus, armada desse flagelo, não iria, onde quer que eles estivessem, atacar as iniquidades dos homens e, uma vez desencadeada, se limitaria a abater aqueles que tinham ficado dentro dos muros da cidade? Talvez pensassem que ninguém lá ficava e que a última hora de Florença tinha chegado. Se seguir um ou outro método não fazia as pessoas morrerem por força, a verdade é que ninguém escapava ao seu destino. Quaisquer que fossem os princípios seguidos, muitos eram atingidos, e em qualquer parte. Eles próprios, antes de caírem doentes, tinham dado o exemplo aos que continuavam sãos.
Estavam pois abandonados e definhavam por todo o lado. Devo acrescentar que os cidadãos fugiam uns dos outros e que ninguém se preocupava com os vizinhos? As visitas entre parentes, quando aconteciam, eram raras e feitas de longe. O desastre pusera tanto horror no coração dos homens e das mulheres que o irmão abandonava o irmão, o tio o sobrinho, a irmã o irmão, muitas vezes mesmo a mulher o marido. E até — o que é ainda mais forte e quase inacreditável — os pais e as mães evitavam ir ver e auxiliar os filhos, como se já não lhes pertencessem. Os doentes dos dois sexos — e o seu número era incalculável — não tinham outro apoio que não fosse a caridade dos amigos (mas bem poucos foram privilegiados nesse ponto!) ou a avareza dos criados. Seduzidos pelos ordenados enormes com que lhes alugavam os serviços, ainda se encontravam criados. Porém, apesar dos convidativos salários, o número de serviçais não aumentara e todos eles, homens ou mulheres, tinham maneiras rudes e não possuíam, na sua maior parte, nenhuma prática doméstica. As suas funções limitavam-se a dar aos doentes o que eles pediam ou a assisti-los na hora da morte. Mesmo assim, pelo preço que um serviço lhes valia, corriam frequentemente para a própria perda. Como os vizinhos, parentes e amigos abandonavam os doentes, e como os criados se tornavam raros, estabeleceu-se uma prática até então desconhecida. Qualquer que fosse a elegância, a beleza e a categoria social de uma dama atingida pela doença, esta não tinha o menor escrúpulo em ser tratada por um homem, fosse ele quem fosse, novo ou velho, e de lhe mostrar, sem a menor vergonha, todas as partes do seu corpo, tal como o teria feito a uma mulher. É provável que isso desse depois origem, naquelas que se curavam, a costumes mais dissolutos.
Esses abandonos causavam a morte de muitas pessoas que, socorridas a tempo, talvez pudessem ter sido salvas. Em consequência de os doentes não receberem os cuidados apropriados e de a epidemia não deixar de se desenvolver, o número de cidadãos que morriam noite e dia era tão elevado que se ficava espantado ao ouvi-lo e, mais ainda, ao ser sua testemunha. Finalmente, e sob o efeito da necessidade, estabeleceram-se, entre os que sobreviviam, costumes completamente diferentes dos antigos. Era uso — uso este que ainda persiste em nossos dias — que as senhoras, primas ou vizinhas de um morto, se reunissem em casa dele, a fim de juntar as suas lágrimas às dos parentes mais próximos. Por outro lado, os vizinhos e muitos outros burgueses agrupavam-se com a família em frente da casa mortuária. Os padres apareciam também, conforme a categoria social que o defunto tivera. Depois, as pessoas da mesma condição carregavam o homem aos ombros e transportavam-no para a igreja que ele escolhera antes de morrer. Mas quando a epidemia começou a manifestar a sua violência, tais práticas cessaram totalmente ou em grande parte. Em seu lugar, estabeleceram-se outras. Muitas pessoas morriam sem ter à sua volta numerosa assistência feminina. Muitas morriam mesmo sem testemunha. Bem raras eram aquelas a quem não faltavam as dolorosas lamentações e as lágrimas amargas dos seus. Em troca, instalavam-se o riso e as brincadeiras de um grupo a quem a festa estonteia. As mulheres, esquecidas da sua piedade natural e ciosas da própria saúde, curvavam-se em geral de bom grado aos novos usos. E bem raros foram sendo aqueles cujos corpos eram acompanhados à igreja por dez ou doze vizinhos, aproximadamente. Não se tratava, porém, de pessoas distintas nem de burgueses cotados, mas não sei de que espécie de coveiros vindos da ralé, que se tinham arvorado gatos pingados e cujos serviços eram pagos. Pegavam no caixão e transportavam-no rapidamente, não à igreja que o defunto designara antes da morte, mas geralmente à que ficava mais perto. Quatro ou seis padres seguiam à frente, brandindo um magro luminar, que às vezes faltava por completo. Com o auxílio dos gatos-pingados, e sem se dar ao trabalho de um ofício demasiado longo ou solene, punham o mais depressa possível o caixão na primeira sepultura vazia que encontravam. A gente humilde, e talvez uma grande parte da classe média, oferecia, de resto, o espectáculo de uma miséria infinitamente mais dolorosa. A pobreza (ou então qualquer vaga esperança de assim se salvarem) retinha em suas casas a maioria dessas pessoas. Não se afastavam do bairro e todos os dias caíam doentes aos milhares. Como não tinham quem as socorresse nem as servisse, morriam, está claro, sem redenção. Algumas delas expiravam de dia ou de noite na via pública; e muitas outras, se bem que mortas em casa, transmitiam aos vizinhos o anúncio da morte pelo cheiro infecto da sua carne corrompida. Tudo regurgitava desses cadáveres e dos cadáveres dos outros homens que por toda a parte morriam.
( Introdução)

Da pestelença que andava entre os Castelhanos e de alguns capitães que por ela morreram
E depois que el Rei( de Castela) entrou pelo reino e se veio chegando contra Lixboa , pousando per essas aldeias, a duas e três léguas, começaram a morrer de pestellença alguns do arreal das gentes de pequena condiçom.(...)
Começou de se atear a pestelença tão bravamente em eles, assim per mar como per terra, que dia havia hi que morriam cento, e cento e cinquenta, e duzentos ; e assim mais e menos como se acertava, de guisa que a maior parte do dia , eram os do arraial ocupados em enterrar os seus mortos, assim que era espanto de ver aos que padeciam, e estranho de ouvir aos que estavam cercados(...) E era gram maravilha, per juízo a nós não conhecido, que em fervor de tamanha pestelença nenhum dos fidalgos portugueses que hi andavam, ou prisioneiros ou de outra qualquer guisa, que nenhum não morrese de trama nem era tocado de tal dor.E os castelhanos por vingança e menencoria que lhe nom prestava, lançavam os Portugueses prisioneiros que traziam, com os que estavam doentes de tramas, para que morressem com a pestelenciados; e morriam os Castelhanos doentes, e dos Portugueses nenhum perecia, nem dentro da cidade que era tão perto do arreal, nem fora nem no termo.

Parte I, Capítulo CXLIX

Neste relato da peste em Londres, no ano de 1665, em forma de reportagem, Daniel Defoe combina boletins semanais de óbitos e outros dados exatos com excertos sobre situações que diz ter ouvido contar. Este "Diário", escrito e publicado em 1722, embora tenha uma base real, relata factos que já estariam muito adulterados pelo passar do tempo…

"À volta de 1720, aquando de uma epidemia de peste em Marselha, epidemia essa que causou para cima de 100 mil vítimas, Defoe lembrou-se de explorar o clímax pestífero de Londres, onde se manifestava o receio de uma recidiva da peste que em 1665 vitimou para cima de duzentas mil pessoas, pondo-se a reunir elementos para a composição de uma obra que fosse ao mesmo tempo uma advertência à população londrina e um rendoso negócio."- João Gaspar Simões

Foi por volta do início de setembro de 1664 que eu, entre os demais vizinhos, ouvi num discurso comum que a praga havia voltado novamente (…) Nesse tempo, não tínhamos jornais impressos para espalhar boatos e relatos de coisas, e melhorá-los com a invenção dos homens, como vivi para ver praticado desde então. Mas as coisas foram recolhidas das cartas de comerciantes e outros que correspondiam ao exterior, e delas foram transmitidas apenas de boca em boca para que as coisas não se espalhassem instantaneamente por toda a nação, como agora. Mas parece que o governo teve um relato verdadeiro disso, e vários conselhos foram realizados sobre maneiras de impedir a sua vinda; mas tudo foi mantido em sigilo.

Naquele tempo cada um estava tão preocupado com a sua própria segurança que raramente se via piedade pela desgraça alheia. Cada um via, por assim dizer, a morte à sua porta, por vezes mesmo na sua própria família, e ninguém sabia o que fazer ou onde refugiar-se. Isto, repito, suprimia toda a espécie de compaixão; a conservação de cada um parecia, com efeito, a regra primordial: as crianças fugiam dos pais, ao vê-los na maior miséria; em certos sítios, embora com menos frequência, os pais fizeram o mesmo aos filhos - sim houve exemplos pavorosos. [...]Falo, claro está, da generalidade, pois em muitos casos viu-se exemplos múltiplos de inquebrantável afecto, de piedade e de respeito pelo dever.

Gostaria de poder registar aqui o próprio som dos gemidos e das exclamações que ouvi da boca dos pobres moribundos no momento mais profundo da sua angústia e da sua desgraça; muito desejaria que os leitores pudessem ouvir, como eu próprio imagino estar a ouvi-los, pois ainda lhes ouço o eco nos ouvidos.

" No texto profético de Shelley, a peste bubônica causa o fim da humanidade. Como no século XIX ainda não se sabia exatamente que a doença era transmitida por pulgas entre animais de pequeno porte, e, em séculos anteriores a praga dizimara um terço da Europa, a autora achou conveniente que a morte ceifasse a Humanidade em forma de peste. Este, aliás, talvez tenha sido o componente de inverosimilhança da trama: Shelley não tratou de evoluir a Ciência em seu livro. Ela escreveu atalhos, remendou ideias requentadas (como o uso de máquinas variadas), mas não se ateve a detalhes sobre o funcionamento delas no futuro. A evolução é mais narrativa que científica. A autora potencializa o romance com um estilo rico, um certo culto à natureza, exaltação de sentimentos, destino não mais fixo, espectros, donzelas que se passam por soldados, intrigas amorosas etc. Ou seja, é uma obra com componentes de ficção especulativa científica, mas não apresenta foco total em definir ideias sobre o novo gênero. O que a autora faz é alterar alguns componentes narrativos dos cânones do Romantismo e impingir mudanças, sutilezas estruturais, em conjunto com uma imaginação não-totalmente renovada sobre o futuro." José Fontenele

No ano 2073, o último dos seus reis, o antigo amigo de meu pai, havia abdicado de acordo com as gentis forças das objeções aos seus atos e uma
república foi instituída.


Oh, que a morte e a doença sejam banidas de nossa casa terrena! Que o ódio, a opressão e o medo não possam mais existir no coração humano! Que cada homem possa encontrar um irmão no próximo e um conforto para o repouso entre as amplas planícies da sua herança! Que a fonte de lágrimas seque e que os lábios não mais possam apresentar expressões de mágoas. (…) A escolha está connosco; deixe-nos desejar e a nossa habitação tornar – se –á um paraíso. Pois a vontade do homem é omnipotente, atenuando as setas da morte, aliviando a cama da enfermidade e enxugando as lágrimas de agonia. E o que vale cada ser humano, se ele não utiliza a sua força para auxiliar seus semelhantes? A minha alma é uma fagulha que se esvai, a minha natureza delicada como uma onda passada; mas eu dedico todo o intelecto e a força que ainda permanece em mim a este trabalho e me ofereço para a tarefa, o máximo possível, de investir bênçãos nos meus semelhantes!



“The 'Red Death' had long devastated the country. No pestilence had ever been so fatal, or so hideous. Blood was its Avatar and its seal --the redness and the horror of blood. There were sharp pains, and sudden dizziness, and then profuse bleeding at the pores, with dissolution. The scarlet stains upon the body and especially upon the face of the victim, were the pest ban which shut him out from the aid and from the sympathy of his fellow-men. And the whole seizure, progress and termination of the disease, were the incidents of half an hour.”

Havia muito tempo que a Morte Vermelha despovoava o país. Nunca se vira uma peste tão fatal! tão horrorosa! A sua encarnação era o sangue, a vermelhidão e a hediondez do sangue! Os seus sintomas dores agudas, uma vertigem súbita, depois um gotejamento abundante pelos poros e a dissolução do corpo. As manchas vermelhas que cobriam a vítima, principalmente no rosto, proscreviam-na da humanidade, privando-a de todos os socorros e de todas as simpatias. Invasão, progresso e resultado da doença, tudo isso era questão de meia hora.
Mas o príncipe Próspero era feliz, intrépido e sagaz. Quando viu os seus domínios meio despovoados, convocou uma turba de amigos vigorosos e alegre, escolhidos entre os cavalheiros e damas da corte e retirou-se com eles a uma das suas abadias fortificadas. Esta abadia era um palácio magnífico, edificado pelo príncipe, um gosto excêntrico e grandioso, rodeado por um muro espesso e alto, com portas de ferro.
Uma vez lá dentro, os cortesãos soldaram solidamente as fechaduras a fim de se protegerem contra as violências do desespero exterior. A abadia foi abundantemente abastecida. Graças a estas precauções, os cortesãos podiam desafiar o contágio. O mundo exterior que se arranjasse como pudesse. Entretanto, não valia apenas pensar nisso. O príncipe providenciara todos os divertimentos passíveis. Havia jograis, improvisadores, dançarinos, músicos, o bom e o belo sob todas as formas; e havia vinho. Lá dentro todas essas belas vantagens e a segurança ainda por cima, lá fora a Morte Vermelha.
No fim de cinco ou seis metes de retiro, enquanto o flagelo assolava o reino com maior raiva, o príncipe Próspero presenteou os seus mil amigos com um baile de máscaras de rara ostentação. Que quadro voluptuoso o daquela mascarada! Mas primeiro deixai-me descrever-vos o recinto do baile; sete salas consecutivas, uma série imperial! Em muitos palácios estas sequência de salões formam longas perspectivas em linha reta, quando as portas estão abertas de par em par; de sorte que a vista mergulha sem obstáculo desde a primeira até á ultima. Aqui o caso era diferente como se devia esperar da paixão do duque pelo extraordinário e pelo bizarro. As salas eram dispostas tão irregularmente que o olhar não podia abranger senão uma de cada vez. De espaço a espaço, havia um desvio brusco e cada esquina apresentava um aspecto novo. No meio de cada parede, tanto do lado direito como do esquerdo, abria-se uma janela gótica, alta e estreita, para um corredor fechado, que seguia as sinuosidades dos aposentos. Estas janelas eram feitas de vidros coloridos, em harmonia com o tom dominante das decorações da sala a que pertenciam. A que ocupava a extremidade oriental, por exemplo, sendo guarnecida de azul, tinha as janelas de azul profundo. A segunda era adornada de púrpura e as janelas igualmente purpúreas. A terceira, inteiramente verde, tinha as janelas verdes. A quarta, ornada cor de laranja, recebia a luz por uma janela alaranjada. A quinta era branca. A sexta de violeta.
A sétima era tenebrosamente amortalhada em tapeçarias de velado negro, que revestiam os tetos e as paredes, caindo em pregas pesadas sobre um tapete do mesmo estofo e da mesma cor. Mas neste aposento, a cor das janelas não correspondia à decoração: os vidros eram um vermelho intenso cor de sangue.
Não havia lustres nem candelabros, nem lâmpadas, nem velas, nem luz de qualidade algum naquele longe séquito de salas, Mas nos corredores que as circundavam, justamente defronte de cada janela, erguia-se um tripé enorme com um braseiro resplandecente, cujos raios, passando através dos vidros coloridos, iam projetar-se sobre os ornamentos de ouro espelhados com profusão par aqui e por acolá, iluminando as salas de um modo maravilhoso e produzindo uma multidão de aspectos cintilantes e fantásticos. Mas no aposento negro, a luz do braseiro refletindo sobre os cortinados sombrios, através dos vidros sanguinolentos, era espantosamente sinistra e dava à fisionomia dos imprudentes que ali entravam um aspecto de tal modo estranho, que poucos pares se sentiam com coragem de pôr os pés no seu mágico recinto.
Era também naquela sala que se via, encostado à parede ocidental, um gigantesco relógio de ébano. O seu pendido balançava-se com um tic-tac surdo, carregado, monótono; e quando o ponteiro dos minutos acabava o circuito do mostrador, ao soar das horas, sabia do interior da máquina um som claro, estrepitoso, profundo e excessivamente musical; mas com nota tão particular e uma energia tamanha, que de hora a hora os músicos calavam insensivelmente os instrumentos para ouvir a música da hora. Então os valsistas cessavam forçosamente as suas atividades; uma comoção singular perturbava momentaneamente a alegria da sociedade. Enquanto vibrava o carrilhão, notava-se que os mais loucos empalideciam e os mais serenos passavam a mão pela fronte, como que imersos numa meditação ou num sonho delirante. Contudo, apenas se esvaecia o eco da última badalada, circulava a hilaridade por toda a assembleia; os músicos olhavam uns para os outros, sorrindo dos seus nervos e da sua loucura e prometiam-se mutuamente, em voz baixa, de não fazer caso do toque seguinte; mas passados os sessenta minutos, que compreendiam os três mil e seiscentos segundos da hora passada, vinha um novo repique do relógio fatal e com ele a mesma perturbação, o mesmo tremor, os mesmos devaneios.
Apesar disso, a orgia estiva alegre e magnífica. O duque tinha um gosto particular e era entendido como ninguém em cores e em efeitos, desprezando completamente o decoro da moda: os seus planos eram temerários, selvagens, e as suas concepções brilhavam com bárbaro esplendor. Muita gente tê-lo-ia julgado louco. Os cortesãos sentiam que ele não o era; mas era preciso ouvi-lo, vê-lo, para ter a certeza disso.
Ele próprio havia presidido à ornamentação dos sete salões para aquela grande festa; e o estilo dos costumes fora prescrito pelo seu gosto pessoal. As concepções eram por certo grotescas, deslumbrantes, magníficas, sobretudo picantes e fantásticas; muito semelhantes às que se viram mais tarde no Hernani. Figuras verdadeiramente arabescas, absurdamente equipadas, desproporcionalmente arranjadas. Fantasias monstruosas, como a loucura. Havia de tudo; o belo, o licencioso, o bizarro em grande quantidade, um pouco de terrível e repugnante em profusão. Em suma, era uma multidão de sonhos, pavoneando-se em todos os sentidos e tomando as edites dos aposentos. Ter-se-ia dito que eram eles que executavam a música com os pés e que as árias estranhas da orquestra eram o eco dos seus passos.
De vez em quando ouvia-se soar relógio da casa de veludo. Então, durante um momento todos estacavam, calava-se tudo, exceto a voz do carrilhão. Os sonhos ficavam inertes, paralisados nas suas posições. Mas os suas desvaneciam-se num instante… Apenas se perdiam os últimos ecos, circulava por toda a parte uma hilaridade ligeira e mal contida. E a música recomeçava, e os sonhos reviviam e giravam de um para outro lado mais alegremente que nunca, refletindo a luz das janelas, através das guies jorrava a irradiação dos tripés. Contudo, já nenhum mascarado ousava aventurar-se no aposento negro do ocidente, porque a noite avançava e através das vidraças cor de sangue afluía uma luz mais vermelha; e a escuridão dos cortinados fúnebres era cada vez mais horrorosa; e para o temerário que punha os pés sobre o tapete o relógio de ébano tinha um Carrilhão ainda mais pesado, mais solene e mais enérgico, para os mascarados que redemoinhavam nas salas longínquas.

Quanto às outras salas essas regurgitavam de gente, exuberante de vida e de entusiasmo. E a festa redemoinhava sempre, quando o relógio de ébano começou enfim a soar a meia noite. Então, como das outras vezes, a música cessou; suspenderam-se as danças e produziu-se por todas as partes uma imobilidade ansiosa. Mas o timbre do relógio tinha agora de soar doze badaladas; por isso, maior número de pensamentos ocorreu às meditações dos que pensavam entre aquela turba animada. Foi talvez também por isso que, antes de se afogar no silêncio o eco da última hora, muitas pessoas tiveram tempo de notar a presença de um mascarado, que ali não havia sido percebido. E a nova daquele intruso tendo-se espalhado, elevou-se de todos os lados na assembleia um murmúrio significativo, primeiro de espanto e de desaprovação, depois de medo, de horror e de repugnância!
Era necessário que a aparição fosse deveras extraordinária, para causar semelhante sensação numa assembleia de fantasmas tais como a que acabei de descrever. A liberdade carnavalesca daquela noite era na verdade quase ilimitada; mas o personagem em questão havia ultrapassado a extravagância de um Herodes e passando além dos limites (contudo benévolos) do decoro imposto pelo príncipe.
O coração, mesmo o dos mais levianos, tem certas fibras que não se deixam tocar insensivelmente; mesmo para os mais depravados, para aqueles que consideram igualmente a vida e a morte como mera brincadeira, há coisas com as quais não se pode brincar. Toda a sociedade pereceu sentir profundamente o mau gosto e a inconveniência da conduta e do costume do estrangeiro. A máscara, que lhe escondia o rosto, assemelhava tão perfeitamente a fisionomia de um cadáver rígido que a análise mais minuciosa não teria podido descobrir o artifício. Contudo, os loucos alegres que compunham a assembleia, teriam talvez suportado ou mesmo aprovado aquela brincadeira medonha, se o mascarado não tivesse ido adotar o tipo da Morte Vermelha. Trazia os fatos todos salpicados de sangue e a sua fronte espaçosa, assim como todas as feições da sua fisionomia estavam manchadas do espantoso escarlate.
Quando os olhos do príncipe Próspero caíram sobre o espectro (que passeava de um para o outro lado no meio dos valsistas, com um movimento moroso, solene e enfático, como que para representar melhor o seu papel) viram-no primeiro estremecer convulsivamente de terror ou de repugnância; mas um segundo depois, a sua fisionomia ruborizou-se de cólera: — Quem ousa —perguntou com uma voz enrouquecida, voltando-se pira os cortesãos que o rodeavam — quem ousa insultar-nos com esta ironia blasfema? Prendam-no já e tirem-lhe a máscara, a fim de sabermos quem havemos de enfocar no alto da torre, ao nascer do sol!
O príncipe Próspero achava-se no aposento do oriente azul, quando pronunciou aquelas palavras, que retumbaram fortes e claras através dos sete salões. Primeiro, quando ele falou, houve no grupo dos cortesãos pálidos, que o cercavam, um ligeiro movimento para a frente, na direção do intruso, esteve durante um instante quase ao seu alcance e que agora se aproximava cada vez mais do príncipe, com um passo firme e majestoso. Mas a audácia insensata do mascarado tinha inspirado a toda sociedade um terror indefinível; e no meio de tanta gente, não houve ninguém que ousasse deitar-lhe a mão; do sorte que, não achando o mínimo obstáculo, o espectro passou a dois passos do príncipe, enquanto toda a assembleia, como que obedecendo a um só movimento, recuava do centro da sala para as paredes, permitindo-o continuar o seu caminho sem interrupção, com o mesmo passo solene e cadencioso que o tinha ligo caracterizado, do quarto azul para o quarto purpúreo; do quarto purpúreo p para o verde; do verde para o laranja; deste para o violeta, sem que ninguém fizesse um movimenta para o deter.
Então o príncipe Próspero, desesperado e vergonhoso da sua covardia de um minuto, atravessou precipitadamente as seis salas (sem que ninguém o seguisse, porque um terror mortal se havia apoderado de todo o mundo) brandindo um punhal nu, e aproximou-se a três ou quatro pés do fantasma; este, tendo chegado à extremidade da sala de veludo, voltou-se bruscamente para aquele que o perseguia. Ouviu-se um grito agudo; o punhal relampeijou escorregando sobre o tapete fúnebre, onde o príncipe Próspero caiu morto um minuto depois.
Invocando a coragem do desespero, os mascarados precipitaram-se em chusma no aposento; e agarrando o desconhecido, que se conservava reto e imóvel como uma grande estátua, na sombra do relógio de ébano, sentiram-se tomados de um terror inominável, só veem que sob a mortalha e sob a máscara cadavérica que tinham agarrado com tanto furor, não havia nenhuma forma palpável.
Reconheceram então a presença da Morte Vermelha, que penetrara na guarda como um ladrão noturno. Todos os convivas caíram uns após outros nas salas da orgia, inundadas agora de sangue; e cada um morreu no local em que caíra.
E a vida do relógio de ébano extinguiu-se como e do último daqueles seres alegres; apagaram-se as chamas dos tripés, e as trevas, a ruína e a Morte Vermelha estabeleceram ali o domínio ilimitado
.



Seria mais natural até que de manhã saltasse do beliche sem nariz do que sem cachimbo.(...) com efeito ,ao despertar, a primeira coisa que Stubb fazia, mesmo antes de enfiar as calças, era acender o cachimbo.
Creio que este contínuo fumar devia ser uma das causas da sua disposição peculiar; porque toda a gente sabe que o ar que respiramos - quer em terra quer no mar- se encontra terrivelmente infectado...; e tal como durante as epidemias de cólera certas pessoas comprimem a boca com um lenço embebido em cânfora , assim o fumo do tabaco de Stubb servia de desinfectante contra todas as tribulações mortais.


Tentou obter informações sobre o cheiro fatal junto ao dono de uma loja…” Este tempo é perigoso, o scirocco não é bom para a saúde, o senhor compreende.” ( …) E assim, nas ruelas sujas de Veneza, Aschenbach sentia uma negra satisfação pelos fenómenos que as autoridades ocultavam- este segredo grave de Estado que se fundia com o seu próprio segredo e que também ele estava empenhado em salvaguardar.

Eis Veneza, a beleza bajuladora e suspeita- uma cidade que é conto de fadas e armadilha para os estranhos, no seu ar infecto a arte florescera em tempos com opulência, inspirando aos músicos sons que embalam languidamente… a cidade estava doente e, por ganância, ocultava o seu estado

Decidido a encontrar informações novas e fiáveis sobre o estado e evolução do mal, ia de café em café para consultar os jornais alemães que há já vários dias tinham desaparecido da mesa de leitura do átrio do hotel. Opiniões alternavam com desmentidos. O número de baixas, de casos fatais, era já de vinte, ou quarenta, ou cem, ou mais, e qualquer menção a uma epidemia, se não fosse prontamente negada, era reconduzida a casos isolados ou chegados de fora.

Mas em meados de Maio deste ano, foram encontrados em Veneza cadáveres negros e carcomidos de um barqueiro e de uma vendedora de legumes. Passado uma semana eram já dez, eram já vinte, trinta , e em vários bairros.(...) A epidemia parecia ganhar forças, a bactéria era cada vez mais tenaz e activa. Raros eram os casos de cura(...) Passados poucos segundos, o doente secava e asfixiava, entre espasmos e gritos roucos, com o sangue que se tornara espesso como o pez.

O medo de prejuízos, a inauguração recente de uma exposição de pintura nos jardins públicos, os danos elevados que em caso de pânico e má fama ameaçavam os hotéis, as lojas, todas as atividades dependentes da presença de turistas, eram mais fortes do que o amor à verdade e que o cumprimento dos acordos internacionais; permitiam aos serviços locais manter obstinadamente a sua atividade política de silêncios e desmentidos. A mais alta autoridade em medicina de Veneza, um homem valoroso, pedira indignado a demissão e fora substituído por um mais maleável.

« Eu calarei !» A consciência da sua cumplicidade, da sua culpa partilhada, embriagava-o, como também uma pequena quantidade de vinho é quanto basta para embriagar um cérebro cansado.( ...) Que valor tinha a fortuna tépida com que por um momento sonhara quando comparada com estas esperanças? Que valor tinham a arte e a virtude quando comparadas com as vantagens do caos? Calou e ficou.

A palavra «peste» acabava de ser pronunciada pela primeira vez. Neste momento da narrativa que deixa Rieux atrás da sua janela, permitir-se-á ao narrador que justifique a incerteza e o espanto do médico, visto que, com cambiantes, a sua reacção foi a da maior parte dos nossos concidadãos. Os flagelos, com efeito, são uma coisa comum, mas acredita-se dificilmente neles quando nos caem sobre a cabeça. Houve no mundo tantas pestes como guerras. E, contudo, as pestes, como as guerras, encontram sempre as pessoas igualmente desprevenidas. Rieux estava desprevenido como o estavam os seus concidadãos , e por isso é necessário compreender as suas hesitações . É por isso que é preciso compreender também que ele se dividisse entre a dúvida e a confiança. Quando rebenta uma guerra, as pessoas dizem: «Não pode durar muito, seria estúpido.» E, sem dúvida, uma guerra é muito estúpida, mas isso não a impede de durar. A estupidez insiste sempre , e compreendê-la-íamos se se não pensássemos sempre em nós. Os nossos concidadãos, a esse respeito, eram como toda a gente: pensavam em si próprios. Por outras palavras, eram humanistas: não acreditavam nos flagelos. O flagelo não está à medida do Homem; diz-se então que o flagelo é irreal, que é um mau sonho que vai passar. Ele, porém, não passa e, de mau sonho em mau sonho, são os homens que passam, e os humanistas em primeiro lugar, pois não tomaram as suas precauções. Os nossos concidadãos não eram mais culpados que os outros. Apenas se esqueciam de ser modestos e pensavam que tudo era ainda possível para eles, o que pressupunha que os flagelos eram impossíveis. Continuavam a fazer negócios, preparavam viagens e tinham opiniões. Como poderiam ter pensado na peste , que suprime o futuro, as viagens e as discussões? Julgavam-se livres, e nunca alguém será livre enquanto existirem os flagelos.

Na verdade, ao ouvir os gritos de alegria que vinham da cidade, Rieux lembrava-se de que esta alegria estava sempre ameaçada. Porque ele sabia o que esta multidão eufórica ignorava e se pode ler nos livros: o bacilo da peste não morre nem desaparece nunca, pode ficar dezenas de anos adormecido nos móveis e na roupa, espera pacientemente nos quartos, nos porões, nos baús, nos lençóis e na papelada. E sabia, também, que viria talvez o dia em que, para desgraça e ensinamento dos homens, a peste acordaria os seus ratos e os mandaria morrer numa cidade feliz.


Mas os passeios estavam todos ocupados por automóveis, não encontraram espaço para arrumar o carro, por isso foram obrigados a ir procurar sítio numa das ruas transversais. Ali, como por causa da estreiteza do passeio a porta do assento ao lado do condutor ia ficar a pouco mais de um palmo da parede. O cego, para não passar pela angústia de arrastar-se de um assento ao outro, com a alavanca da caixa de velocidades e o volante a atrapalhá-lo, teve de sair primeiro. Desamparado, no meio da rua, sentindo que o chão lhe fugia debaixo dos pés, tentou conter a aflição que lhe subia pela garganta. Agitava as mãos à frente da cara, nervosamente, como se nadasse naquilo a que chamara um mar de leite, mas a boca já se lhe abria para lançar um grito de socorro, foi no último momento que a mão do outro lhe tocou de leve no braço, Acalme-se, eu levo-o.

Agora estamos livres, eles sabem o que os espera se quiserem outra vez servir-se de nós, Vai haver luta, guerra, Os cegos estão sempre em guerra, sempre estiveram em guerra, Tornarás a matar, Se tiver de ser. dessa cegueira já não me livrarei, E a comida, Viremos nós buscá-la, duvido que eles se atrevam a vir até aqui, pelo menos nestes próximos dias terão medo de que lhes suceda o mesmo, que uma tesoura lhes atravesse o pescoço, Não soubemos resistir como deveríamos quando eles apareceram com as primeiras exigências, Pois não, tivemos nós medo, e o medo nem sempre é bom conselheiro, e agora vamo-nos, será conveniente, para maior segurança, que barriquemos a porta das camaratas pondo camas sobre camas, como eles fazem, se alguns de nós tivermos de dormir no chão. Paciência, antes isso do que morrer de fome.


A mulher do médico perguntou, E eles, e o médico disse, Este, provavelmente, estará curado quando acordar, com os outros não será diferente, o mais certo é que estejam agora mesmo a recuperar a vista, quem vai apanhar um susto, coitado, é o nosso homem da venda preta, Porquê, Por causa da catarata, depois de todo o tempo que passou desde que o examinei, deve estar como uma nuvem opaca, Vai ficar cego, Não, logo que a vida estiver normalizada, que tudo comece a funcionar, opero-o, ser uma questão de semanas, Por que foi que cegámos, Não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão, Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que não cegámos, penso que estamos cegos, Cegos que vêem, Cegos que, vendo, não vêem.
A mulher do médico levantou-se e foi à janela. Olhou para baixo, para a rua coberta de lixo, para as pessoas que gritavam e cantavam. Depois levantou a cabeça para o céu e viu-o todo branco, Chegou a minha vez, pensou. O medo súbito fê-la baixar os olhos. A cidade ainda ali estava.



Ohran Pamuk, Expresso, maio de 2020


As ruas de Lisboa, agora desertas, limpas e desafogadas, pareciam mais largas. A cidade inteira resplandecia, lavada e escovada, sob um doce sol de primavera. À porta da padaria encontrou uma fila de umas dez pessoas, a rigorosos dois metros de distância umas das outras, todas equipadas com máscaras e luvas. À frente dele postava-se uma mulher elegante. Pedro costumava vê-la ali

Pedro levou meia hora a vestir-se e a equipar-se para sair de casa. Ajustou ao rosto a sofisticada máscara que um amigo lhe trouxera de Singapura, com a garantia de o proteger de qualquer tipo de vírus, além da poluição (poderia continuar a usá-la, explicou-lhe o amigo, quando o vírus desaparecesse e a bendita poluição retornasse). Colocou o capuz e os óculos escuros. Finalmente, calçou as luvas. Estudou a sua figura no amplo espelho do corredor. Parecia um viajante vindo de um futuro apocalíptico, pensou, e no mesmo instante lhe ocorreu que esse futuro já chegara.

As ruas de Lisboa, agora desertas, limpas e desafogadas, pareciam mais largas. A cidade inteira resplandecia, lavada e escovada, sob um doce sol de primavera. À porta da padaria encontrou uma fila de umas dez pessoas, a rigorosos dois metros de distância umas das outras, todas equipadas com máscaras e luvas. À frente dele postava-se uma mulher elegante. Pedro costumava vê-la ali. A máscara dela fora confecionada a partir de um tecido florido. Era como se tivesse o rosto afundado num ramalhete de flores. Cumprimentaram-se com um aceno alegre. Nunca haviam trocado mais do que duas palavras de circunstância. Porém, Pedro simpatizava com a mulher e ela parecia retribuir tal sentimento. Naquela manhã isso ficou evidente quando, saindo da padaria, ao cruzar-se com o homem, a desconhecida lhe passou para as mãos um papelinho rabiscado à pressa. Era um número de telefone. Mal chegou a casa, Pedro ligou para o número:
– Olá! Sou o tipo da fila da padaria. Chamo-me…
– Não preciso de saber o teu nome…
– E o teu, posso saber?
– Não. Tu também não precisas de saber o meu. Podes chamar-me, eu sei lá, Alfonsina. Tu vais ser Mário…

Pedro teve uma sensação de reconhecimento, como quando um perfume súbito a pastéis de massa tenra, a terra molhada, a goiabas maduras nos faz regressar aos lugares da nossa infância. Aquela voz acordava nele sentimentos atordoados e contraditórios.
– Posso saber o que fazes, quero dizer, profissionalmente? – perguntou, tropeçando nas palavras.
A mulher riu-se:
– Não. Prefiro inventar. O jogo é esse. A partir de agora só vale a ficção.
Disse-lhe que era cantora. Costumava cantar numa casa de fados. Cantou para ele. Cantava bem. Pedro, ou Mário, contou que era arquiteto. Tinha um atelier em Berlim. Fazia muitos projetos para países do Médio Oriente. Quando se despediram, três horas mais tarde, já se desconheciam muitíssimo bem. As conversas continuaram nos dias seguintes. Pedro foi-se tornando mais Mário a cada conversa. Nos intervalos sentia a falta de Alfonsina. Sozinho em casa, irritava-se com a presença de Pedro, que passava quase todo o tempo ocupado com as suas traduções. Sim, Pedro era tradutor. Sempre trabalhara em casa. O confinamento pouco alterara uma rotina invariável, acordar, lavar os dentes, comer um iogurte e uma fruta, e sentar-se depois a traduzir até à uma da tarde. Almoçava sempre na mesma tasca, na esquina, fazia uma sesta breve e voltava ao trabalho por volta das duas e meia.

Pela primeira vez em muitos anos, custava-lhe sentar-se para trabalhar. A cada frase se distraía. Deixava de ser Pedro, o tradutor, para ser Mário, o arquiteto. Deu por si a desenhar projetos de grandes edifícios de apartamentos enquanto pensava em Alfonsina. Ela não lhe dissera em que casa de fados costumava cantar. Procurou no Google, mas não encontrou uma única referência a uma fadista chamada Alfonsina. Lembrou-se então de que Alfonsina não era real, e isso doeu-lhe, como o fim de um grande amor. Logo a seguir, porém, ela ligou, e cantou para ele, e contou-lhe episódios divertidos da sua vida nas noites alfacinhas, e voltou a ser mais verdadeira do que qualquer mulher que ele alguma vez conhecera.

Pedro só costumava ir à padaria duas vezes por semana. Dois pães grandes davam-lhe para a semana toda. Depois que se começou a transformar em Mário, passou a ir todas as manhãs, na secreta esperança de encontrar Alfonsina. Como ela não aparecia à hora habitual, tentou outras. Chegava a ir à padaria três vezes no mesmo dia. O pão multiplicava-se. Guardou o excedente no congelador. Quando o congelador ficou cheio, passou a armazená-lo em caixas de sapatos, na despensa, na cozinha e até debaixo da cama.

– Preciso ver-te – implorou Mário, numa noite em que haviam conversado mais tempo do que o habitual, e ele terminara a última garrafa de bom vinho que guardava em casa. – Só quero ver o teu rosto.

Surpreendentemente, Alfonsina concordou. Prometeu que faria uma selfie, ao acordar, com a luz generosa do amanhecer, e que a enviaria para ele. Mário dormiu mal. Sonhou com uma mulher cujo rosto mudava ao longo do dia: de manhã era jovem e resplandecente; contudo, ia perdendo o brilho e a frescura à medida que o sol percorria o céu e depois declinava, até se transformar, finalmente, num ser opaco e murcho. Acordou por volta das sete da manhã, com o tilintar do telefone. Alfonsina cumprira a promessa: ali estava ela, desmascarada, posando diante de um vaso branco com orquídeas.

Pedro deixou cair o telefone. Sentou-se no soalho, encostado à parede, com o coração aos saltos: era Helena, a namorada de quem fugira, quinze anos antes, após vinte meses de uma relação tumultuosa. Vira-a pela última vez no casamento de uma irmã dela. A mulher quebrara-lhe uma jarra com orquídeas contra a cabeça, e ele tivera de ser levado para o hospital, coberto de sangue e de vergonha. Estava então no terceiro ano de arquitetura. Abandonara a faculdade, trocara de telefone e de cidade e recomeçara a vida como tradutor.

Olhou de novo o telefone. Era Helena, sem dúvida. E sorria.

(Crónica publicada na VISÃO, de 30 de abril)




Diário da Peste












Certa manhã, após tantos desesperos, uma irreprimível vontade de viver virá anunciar-nos que tudo acabou e que o sofrimento não possui mais sentido do que a felicidade.






- FIM -


Outros romances( sinopses) - https://www.revistabula.com/29666-10-livros-sobre-pandemias-em-tempos-de-coronavirus/

O Enigma de Andrômeda, de Michael Crichton
Cavalo Pálido, Pálido Cavaleiro” é uma reflexão profunda sobre a natureza humana e a futilidade da guerra. Reúne três novelas essenciais na obra de Katherine Anne Porter: “Velha Mortalidade”, “O Vinho do Meio-Dia” e o conto que dá nome ao livro, considerado a obra-prima da autora. Um estudo sobre o mal, “O Vinho do Meio-Dia” é uma história de ganância e crime no Sul do Texas, inspirada na infância da autora. Em “Velha Mortalidade” enredam-se os primeiros anos e a vida adulta da heroína Miranda, alter ego de Porter. Num brilhante exercício de escrita, “Cavalo Pálido, Pálido Cavaleiro” revela a mente febril e os delírios de Miranda, que está à beira da morte após ter contraído gripe espanhola.

Cavalo Pálido, Pálido Cavaleiro, de Katherine Anne Porter
Cavalo Pálido, Pálido Cavaleiro é uma reflexão profunda sobre a natureza humana e a futilidade da guerra. Reúne três novelas essenciais na obra de Katherine Anne Porter: “Velha Mortalidade”, “O Vinho do Meio-Dia” e o conto que dá nome ao livro, considerado a obra-prima da autora. Um estudo sobre o mal, “O Vinho do Meio-Dia” é uma história de ganância e crime no Sul do Texas, inspirada na infância da autora. Em “Velha Mortalidade” enredam-se os primeiros anos e a vida adulta da heroína Miranda, alter ego de Porter. Num brilhante exercício de escrita, Cavalo Pálido, Pálido Cavaleiro revela a mente febril e os delírios de Miranda, que está à beira da morte após ter contraído gripe espanhola."

A Dança da Morte ,de Stephen King
"A Dança da Morte, um dos clássicos da literatura contemporânea, King cria uma história épica sobre o fim da civilização e a eterna batalha entre o bem e o mal. Após um erro de computação no Departamento de Defesa, um vírus é liberado, e um milhão de contatos casuais formam uma cadeia de morte: é assim que o mundo acaba. O que surge em seu lugar é um ambiente árido, sem instituições e esvaziado de 99% da população. É um lugar onde sobreviventes em pânico escolhem seus lados — ou são escolhidos. Os bons se apoiam nos ombros frágeis de Mãe Abigail, com seus 180 anos de idade, enquanto todo o mal é incorporado por um indivíduo de poderes indizíveis: Randall Flagg, o homem escuro."

O Amor nos Tempos do Cólera, Gabriel García Márquez
O Amor nos Tempos do Cólera narra a paixão do telegrafista, violinista e poeta Florentino Ariza por Fermina Daza. Ainda muito jovem, Florentino se apaixona por Fermina, mas o romance enfrenta a oposição do pai da moça, que tenta impedir o casamento enviando a filha ao interior numa viagem de um ano. Tudo isso ocorre enquanto a Colômbia enfrenta uma epidemia devastadora de cólera. Fermina acaba por se casar com Juvenal Urbino, médico conceituado por erradicar a doença. Inesperadamente, após 53 anos da separação, ela reencontra Fermino. A trama é inspirada na história real de amor vivida por Gabriel Elígio García e Luiza Márquez, pais do autor."

Salão de Beleza, de Mario Bellatin
Em uma grande cidade, um cabeleireiro que se traveste à noite para fazer programas, monta um sofisticado salão de beleza e cuida de aquários com diferentes espécies de peixes. Quando a cidade é assolada por uma peste implacável ainda desconhecida, ele começa a abrigar dentro de sua loja as pessoas doentes. Em nenhum momento aparece a designação da doença, mas é visível que se trata da AIDS. Ao mesmo tempo que se compadece dos que vão morrer, o cabeleireiro tenta manter uma certa distância e indiferença. “Salão de Beleza” foi escolhido por um júri de escritores e críticos latino-americanos como um dos 20 melhores relatos escritos em língua espanhola a partir de 1980.
ão funcionam e depressa o mundo se torna cego, com exceção de uma mulher misteriosa, que enxerga sozinha os horrores causados pela pandemia.

Oryx e Crake de Margaret Atwood
" O livro acompanha o último sobrevivente da raça humana após uma catástrofe que dizima a Terra. Ele se autodenomina “homem das neves” e vive em um amargo isolamento, vivendo como um pária em seu próprio habitat. Quando não precisa sair em busca de comida em um deserto infestado de insetos, seu único prazer está em assistir a filmes antigos em DVD que o fazem lembrar do mundo de outrora. Como tudo veio abaixo tão depressa? Enquanto o Homem das Neves reconstitui suas lembranças, sua mente é povoada pelas vozes de seus amigos da juventude, o enigmático Crake e a sedutora Oryx, personagens-chave por trás do Projeto Paradiso, o grande responsável pela derrocada da espécie humana."

Estação Onze, de Emily St. John Mandel
"Certa noite, o famoso ator Arthur Leander tem um ataque cardíaco no palco, durante a apresentação de “Rei Lear”. Jeevan Chaudhary, um paparazzo com treinamento em primeiros socorros, vai em seu auxílio. A atriz mirim Kirsten Raymonde observa horrorizada a tentativa de ressuscitação cardiopulmonar enquanto as cortinas se fecham. Nessa mesma noite, uma terrível pandemia de gripe começa a se espalhar e destrói, quase por completo, toda a humanidade. Quase 20 anos depois, Kirsten é uma atriz na Sinfonia Itinerante. Com a pequena trupe de artistas, ela viaja pelos assentamentos do mundo pós-calamidade, apresentando peças de Shakespeare e números musicais para as comunidades de sobreviventes."




"A Deep answer to the question about why hype about epidemics doesn’t line up with the scale of damage has to do with fear. We humans dread death. It is only natural that the mass mortality brought by a great plague makes us afraid. And besides our dread of death, we are frightened by the prospect of social disruption. To live in civilized society is to bear a dread that goes beyond the fear of death."



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