Não é neccessário vivermos ao lado de alguém para nos sentirmos ligados a esse alguém mais do que a qualquer outra pessoa...

terça-feira, 27 de julho de 2021

"Vinte e quatro horas na vida de uma mulher..."

Miau, miau. Acordou. Desceu. Ligou o computador.

Olhou o dia: céu encoberto. Sentiu o dia: temperatura amena.

Deu comida à gata e estiveram na varanda, a ver o dia acontecer.

Veio para o computador, mecanicamente...

Leu as mensagens. Respondeu.

Leu, escreveu.

Desiludiu-se com o que leu.

Mandou uma mensagem.

Recordou o dia 2-9-2014 e resolveu sair.

Pagou uma encomenda FNAC.

Fez um seguro.

Investiu na subida do Ien.

Encontrou alunas de há 8 anos.

Comprou bróculos, feijão verde e alho francês.

Regressou a casa. Esqueceu-se de ir à perfumaria.

Comeu , bebeu chá.

Limpou o caixote da gata.

Ligou a ventoinha.

Regressou ao computador.

Reparou que se tinha esquecido de enviar a mensagem que escrevera. Ficará para depois.

Abriu o correio; cartas do banco, da companhia de seguros e da EDP.

Veio aqui e ali e escreveu.

Pensou.

Leu os aspetos que o seguro cobre (A letra miúda das apólices é perversa...)

Comeu um pêssego e fez café.

Deu almoço à gata.

Veio aqui e ali e escreveu.

Pensou.

Olhou a gata a brincar na caixa do tempo perdido...

Brincou com a gata ao "esconde-esconde".

Tentou pensar.

Leu um texto e dá parabéns a antigas alunas.

Apagou uma publicação.

Viu as previsões sobre o estado do tempo.

Deliciou-se a surpreender o momento exato em que a gata, vencida pelo sono e indolência, fecha completamente as pálpebras...

Começou a acabar de ver uma série policial.

Adormeceu.

Bebeu um café.

Voltou a começar a acabar de ver a série policial.

Arrumou papeis.

Veio aqui e ali e escreveu.

Lembrou-se da novela de Zweig e roubou-lhe o título.

Recomeçou a ler.

Interessou-se, moderadamente.

Levantou-se e veio aqui e ali. (O que a impele a estar sempre a vir aqui e ali?)

Vestiu-se para sair.

Foi levantar dinheiro. É dia de pagar à empregada descuidada...

Abriu a porta, desceu as escadas e atravessou a rua.

Colocou o papel e os plásticos no ecoponto.

Foi à cooperativa comprar vasos.

Voltou a esquecer-se de ir à perfumaria.

(Quantos pequenos gestos traduzem um quotidiano!)

Veio aqui e ali.

Pensou.

Recomeçou a ler.

Pensou.

Veio aqui e ali.

Arrumou por aqui e espreitou ali.

Afiou o lápis.

Foi para a varanda e recomeçou a ler

Fez festas à gata

Fechou o livro, veio aqui e escreveu.

Deu jantar à gata.

Confrontou a sua rotina com a de Kafka, o protagonista do romance que anda a ler.

Confrontou a sua rotina com a de Orwell, registada num diário que leu há tempos.

Procurou um livro do Kafka e descobriu que está desarrumado.

Mandou mensagem.

Esperou. Esperou.

Jantou.

Viu televisão.

Veio aqui e ali.

Foi dormir.

Uns anos depois...

 Acordou. Desceu. Ligou o computador.

Olhou o dia: céu encoberto. Sentiu o dia: temperatura amena.

Esteve na varanda, a ver o dia acontecer.

Veio para o computador, mecanicamente...

Leu as mensagens. Respondeu.

Leu, escreveu.

Desiludiu-se com o que leu.

Mandou uma mensagem.

Recordou o dia 24 -7-2021  e resolveu sair.

Pagou uma encomenda Wook.

Foi à fisiterapia

Levantou dinheiro.

Não encontrou ninguém

Comprou bróculos, feijão verde e alho francês.

Regressou a casa. Esqueceu-se de ir à perfumaria.

Comeu , bebeu chá.

Regressou ao computador.

Reparou que se tinha esquecido de uma sessão do Clube de Leitura.

Abriu o e-mail: mensagens da Caixa,  da EDP e da Teresa

Veio aqui e ali e escreveu.

Pensou.

Comeu um pêssego e fez café.

Almoçou.

Veio aqui e ali e escreveu.

Pensou.

Pensou na  gata a brincar na caixa do tempo perdido...

Tentou pensar.

Leu um texto e deu parabéns a antigas alunas.

Apagou uma publicação.

Viu as previsões sobre o estado do tempo.

Ouviu as notícias sobre a pandemia.

Começou a acabar de ver uma série policial.

Adormeceu.

Bebeu um café.

Voltou a começar a acabar de ver a série policial.

Arrumou papeis.

Veio aqui e ali e escreveu.

Atualizou a publicação com o título roubado a Zweig

Recomeçou a ler.

Emocionou-se com a recordação de Hesíodo.

Levantou-se e veio aqui e ali. (O que a impele a estar sempre a vir aqui e ali?)

Vestiu-se para sair.

Foi levantar dinheiro. É dia de pagar à empregada descuidada...

Abriu a porta, desceu as escadas e atravessou a rua.

Colocou o papel e os plásticos no ecoponto.

Foi ao sapateiro.

Voltou a esquecer-se de ir à perfumaria.

(Quantos pequenos gestos traduzem um quotidiano!)

Veio aqui e ali.

Pensou.

Recomeçou a ler.

Pensou.

Veio aqui e ali.

Arrumou por aqui e espreitou ali.

Afiou o lápis.

Foi para a varanda e recomeçou a ler.

Fechou o livro, veio aqui e escreveu.

Jantou.

Confrontou a sua rotina com a de Franz , o protagonista do romance que anda a ler.

Confrontou a sua rotina com a de Orwell, registada num diário que leu há vários anos.

Procurou um livro de Thomas Mann e descobriu que está tudo misturado.

Não mandou nenhuma mensagem.

Pensou. Entristeceu.

Jantou.

Viu televisão.

Veio aqui e ali.

Foi dormir.


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