José Saramago

domingo, 26 de novembro de 2023

Normalidades...

Rauli, um rapazinho muito delicado, quase feminino, dado à contemplação,   ávido leitor dos clássicos, é um menino de dez anos que adivinha o futuro e se sente como uma mulher que nasceu no corpo de um homem. Como Cassandra (filha dos reis de Troia, irmã de Heitor e Páris, sacerdotisa de Apolo), Rauli tem o dom da profecia e a maldição de ninguém acreditar nele. Desde cedo sabe que irá combater em Angola e que morrerá trespassado por balas e pela homofobia. O romance testemunha também o colapso do sonho do «homem novo» e da utopia internacionalista. Lírico e histórico ao mesmo tempo, Chamem-me Cassandra reconstrói o quotidiano da Cuba dos anos 70, através da ligação do mito clássico e de figuras da guerra de Troia ao enredo da guerra de Angola. (Texto da contracapa, adaptado)

... quero passar muito tempo a olhar para o mar até o mar se gastar nos meus olhos e não ser mais do que uma linha branca que faz chorar. 

Gastei o dinheiro do transporte em livros e arrrasto os pés para levantar o pó e depois respirá-lo... 

Vejo mortos.(...) Também adivinho coisas. Eu sei como a russa vai morrer... 

Afundo-me nas ideias de Kierkegaard quando volto da escola. Afundo-me nas suas ideias  como quem regressa a um porto seguro onde já esteve...

A minha mãe penteia-me, põe-me um laço azul e chama-me Nancy.Queri ir para o quarto para continuar a ler Kierkegaard , ir assim, vestido de mulher.


A minha mãe também julga que eu sou maricas, que gosto de homens, mas eu não sinto nada.


Sinto-me à vontade vestida de Nancy e ninguém me reconhece e posso dizer que sou a Cassandra e ninguém olha para mim com estranheza. Sou uma rapariga que vai a uma festa...

OCAPITÃO.O capitão.capitão. O capitão.capitão.capitão.capitão.capitão.capitão.capitão.capitão.capitão olha para mim e é como se não me visse. O capitão olha para mim, mas não olha para mim. Ocapitão olha para a mulher amada  que jaz em Cuba e é parecida comigo. Não estou dentro dos olhos do capitão, ela é que está, a que já não está.

Dedicatória que a russa escreve, na edição cubana de Anna Karenina,  que oferece a Raulito: " Para o Raulito porque gosto mais dele do que dos filhos que terei no futuro."
Foi a Svetlana que te ofereceu esta merda- diz a minha mãe quando me vê chegar com o livro.

A minha mãe chama-me maricas num entardecer de setembro, olhando-me nos olhos.

Raulito usa a palavra "anjo" num poema e é acusado de " diversionismo ideológico"...Comove imaginar o sofrimento deste adolescente que não percebe quem é...Eu não tenho futuro , sou uma árvore de raízes  na areia...

A mãe quer que Raulito seja Nancy, a tia precocemente, desaparecida;  o capitão vê  no soldado Raul Iriarte a mulher que ficou em Cuba e morreu...Ele  torna-se Cassandra...

O capitão chama-me pelo nome dela e dá-me um  abraço que nos consome a ambos, o abraço mais longo do mundo deu-me o capitão enquanto as balas que me vão matar descansam dentro da espingarda automática.

Jogamos beisebol e o Anna Karénina ficou aberto em cima da cama e eu penso que algém pode roubar-mo para limpar o ânus e que então ficarei mais só, mais abandonado do que nunca, apenas com os deuses, apenas com Apolo...

José, irmão de Raulito: -   "  Se o velho descobrir, mata-te,e a ele expulsam-no do partido e, provavelmente, do trabalho, está proibido de ter um filho maricas."

A alternância Cuba/ Angola não me parece eficaz, como estratégia narrativa. Desagrada-me...Também não apreciei a veracidade dos dons divinatórios de Taulito como Cassandra: tudo deveria ter permanecido no reino da imaginação....

Lejos de un dilema de época, la literatura de Gala crece en esa representación de los inadaptados: aquellos que no encajan, que incomodan y quedan a la deriva en un sistema que prefiere invisibilizarlos. El tiempo y el espacio son relativos. ¿Angola? ¿Cuba? ¿La Grecia clásica? Lo que importa, más allá de eso, es el escenario de tragedia anticipada, cómo la condición humana sigue sujeta a mandatos que la arrastran hasta su propia perdición>Él siente que lo es, y que está viviendo en un cuerpo prestado, pero no por ser transgénero –que lo es– sino que es como una reencarnación.


 O que eu adoro este poema...



















Sempre soube que na minha cabeça alguma coisa não funcionava muito bem.

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