José Saramago

terça-feira, 28 de novembro de 2023

Pessoa revisitado...

Compararei algumas destas figuras, para mostrar, pelo exemplo, em que consistem essas diferenças. O ajudante de guarda-livros Bernardo Soares e o Barão de Teive — são ambas figuras minhamente alheias — escrevem com a mesma substância de estilo, a mesma gramática e o mesmo tipo e forma de propriedade: é que escrevem com o estilo que, bom ou mau, é o meu. Comparo as duas porque são casos de um mesmo fenómeno — a inadaptação à realidade da vida, e, o que é mais, a inadaptação pelos mesmos motivos e razões. Mas, ao passo que o português é igual no Barão de Teive [e] em Bernardo Soares, o estilo difere em que o do fidalgo é intelectual, despido de imagens, um pouco — como direi? — hirto e restrito; e o do burguês é fluido, participando da música e da pintura, pouco arquitectural. O fidalgo pensa claro, escreve claro, e domina as suas emoções, se bem que não os seus sentimentos; o guarda-livros nem emoções nem sentimentos domina, e quando pensa é subsidiariamente a sentir.


O único manuscrito de Álvaro Coelho de Athayde, décimo quarto  Barão de Teive.

Manuscrito encontrado numa gaveta. 
Para não deixar o livro em cima da mesa do meu quarto, sujeito assim ao exame de mãos suspeitamente limpas dos criados do hotel, abri, com certo esforço, a gaveta, e meti-o lá, empurrando-o para trás.

Esbarrou em qualquer coisa, pois a própria gaveta não era tão pouco funda. 

 Atingi a saciedade do nada, à plenitude de coisa nenhuma. O que me levará ao suicídio é um impulso como o que lava a deitar cedo. Tenho um sono íntimo de todas as intenções. Nada pode transformar a minha vida. Se...se...Sim, mas se é sempre uma cousa que não aconteceu; e se não aconteceu, parq que supor o que seria se ela fosse?

Estas páginas não são a minha confissão senão a minha definição.(...) Por ter duas virtudes, o sentimento intelectual e o sentimento mora) nunca pude fazer nada de mim.

Ainda me punge perder uma ideia, escapar-me da memória uma frase por escrever, não fixar um ponto de vista. Sei bem,  muitas vezes,  que não conseguiria dar corpo real a esses esboços dele. Mas há um ciúme de mim mesmo, uma avareza do abstracto, e tenho notado que a avareza e o espírito de vingança, talvez por serem duas formas de mesquinhez, têm parentesco e sangue comum.

Se tive certezas, lembro-me que todos os loucos as tiveram maiores.

Na construção de um sistema sobre os fenómenos sexuais próprios, não posso esquivar-me a ver qualquer coisa de implacavelmente grosseiro e vil. Todos os indivíduos grosseiros têm necessidade da nota sexual; é ela, até , que os distingue. Não podem contar anedotas fora da sexualidade; não sabem ter espírito fora da sexualidade. Vêem em todos os pares uma razão sexual de serem pares.

Nunca tive saudades , porque nunca tive de que as ter e fui sempre racional com os meus sentimentos. Como nada fiz da minha vida, não tenho de que recordar-me com saudade, pude ter esperanças, porque o que não existe pode ser tudo; hoje  nem tenho esperanças , porque não vejo razão porque o futuro seja diferente do passado.

Há páginas ...que me angustiam; parecem escritas, não diria  por mim, mas, que me seriam de um absurdo apropriado, por um irmão gémeo que não tive, algém que é diferentemente a mesma cousa que sou.

O prazer é para os cães, a queixa para as mulheres; o homem tem somente, de seu e próprio, a honra ou o silêncio.

Atingi, creio, a plenitude do emprego da razão. E é por isso que me vou matar.

Nota explicativa : Transferi para Teive a especulação sobre a certeza, que os loucos têm nais do que nós.

Nascemos sem saber falar e morremos sem ter sabido dizer. Passa-se nossa vida entre o selêncio de quem está calado e o silêncio de que não foi entendido, e em torno dist, como uma abelha em torno de onde não há flores, paira incógnito um inútil destino.

Páginas que recomendaria a um amigo escritor : 45,46,47; 50,51, 52.
Páginas que recomendaria a um amigo namoradeiro: 54,55.
Páginas que recomendaria a um amigo, admirador de Antero:  68 a 72.

Reflexão final de Richard Zenith:

Para além da curva da estrada
Talvez haja um poço, e talvez um castelo,
E talvez apenas a continuação da estrada.
Não sei nem pergunto.
Enquanto vou na estrada antes da curva
Só olho para a estrada antes da curva,
Porque não posso ver senão a estrada antes da curva.
De nada me serviria estar olhando para outro lado
E para aquilo que não vejo.
Importemo-nos apenas com o lugar onde estamos.


Há beleza bastante em estar aqui e não noutra parte qualquer.
Se há alguém para além da curva da estrada,
Esses que se preocupem com o que há para além da curva da estrada.
Essa é que é a estrada para eles.
Se nós tivermos que chegar lá, quando lá chegarmos saberemos.
Por ora só sabemos que lá não estamos.
Aqui há só a estrada antes da curva, e antes da curva
Há a estrada sem curva nenhuma.



Disse Amiel que uma paisagem é um estado de alma, mas a frase é uma felicidade frouxa de sonhador débil. Desde que a paisagem é paisagem, deixa de ser um estado de alma. Objectivar é criar, e ninguém diz que um poema feito é um estado de estar pensando em fazê-lo. Ver é talvez sonhar, mas se lhe chamamos ver em vez de lhe chamarmos sonhar, é que distinguimos sonhar de ver.(...)
O Tejo ao fundo é um lago azul, e os montes da Outra Banda são de uma Suíça achatada. Sai um navio pequeno - vapor de carga preto - dos lados do Poço do Bispo para a barra que não vejo. Que os Deuses todos me conservem, até à hora em que cesse este meu aspecto de mim, a noção clara e solar da realidade externa, o instinto da minha inimportância, o conforto de ser pequeno e de poder pensar em ser feliz.


O Chiado sabe-me a açorda.
Corro ao fluir do Tejo lá em baixo.
Mas nem ali há universo.
E o tédio persiste como uma mão regando no escuro.



Eterna verdade vazia e perfeita!
Ó macio Tejo ancestral e mudo,
Pequena verdade onde o céu se reflecte!
Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!
Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.

Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo...
E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!



Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh eh-eh-eh!
EH-EH EH-EH-EH EH-EH EH-EH EH-EH-EH!
EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH EH EH-EH!
EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH!
EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH!

Parte-se em mim qualquer coisa. O vermelho anoiteceu.
Senti demais para poder continuar a sentir.
Esgotou-se-me a alma, ficou só um eco dentro de mim.
Decresce sensivelmente a velocidade do volante.
Tiram-me um pouco as mãos dos olhos os meus sonhos.
Dentro de mim há um só vácuo, um deserto, um mar nocturno.
E logo que sinto que, há um mar nocturno dentro de mim,
Sabe dos longes dele, nasce do seu silêncio,
Outra vez, outra vez o vasto grito antiquíssimo.
De repente, como um relâmpago de som, que não faz barulho mas ternura,

Subitamente abrangendo todo o horizonte marítimo
Húmido e sombrio marulho humano nocturno,
Voz de sereia longínqua chorando, chamando,
Vem do fundo do Longe, do fundo do Mar, da alma dos Abismos,
E à tona dele, como algas, bóiam meus sonhos desfeitos...
Ahó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó — yy...
Schooner ahó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó — yy......


O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia, / Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia / Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia,

De longe vejo passar no rio um navio...
Vai Tejo abaixo indiferentemente.
Mas não é indiferentemente por não se importar comigo
E eu não exprimir desolação com isto...
É indiferentemente por não ter sentido nenhum
Exterior ao facto isoladamente navio
De ir rio abaixo sem licença da metafísica...
Rio abaixo até à realidade do mar.

Sem comentários: