Os animais não se exaurem e gemem sobre a sua condição; eles não se deitam despertos no escuro e choram pelos seus pecados; eles não me deixam nauseado discutindo o seu dever. Nenhum deles é insatisfeito, nenhum enlouquecido pela mania de possuir coisas; nenhum se ajoelha para o outro, nem para os que viveram há milhares de anos; nenhum deles é respeitável ou infeliz...
Há insatisfações que são sonos, que ocupam como uma névoa toda a extensão do espírito, que não deixam pensar que não deixam agir, que não deixam claramente ser. Como se não tivessemos dormido, sobrevive em nós qualquer coisa de sonho, e há um torpor do sol do dia a aquecer a superfície estagnada dos sentidos. É uma bebedeira de não ser nada, e a vontade é um balde despejado para o quintal por um movimento indolente do pé à passagem. Olha-se mas não se vê.(...) Não é tédio o que se sente. Não é mágoa o que se sente. É uma vontade de dormir com outra personalidade, e esquecer com melhoria de vencimento. Não se sente nada, a não ser um automatismo cá em baixo, a fazer umas pernas que nos pertencem levar a bater no chão, na marcha involuntária, uns pés que se sentem dentro dos sapatos. Nem isto se sente talvez. À roda dos olhos e como dedos nos ouvidos há um aperto de dentro da cabeça. Parece uma constipação na alma. E com a imagem literária de se estar doente nasce um desejo de que a vida fosse uma convalescença, sem andar; e a ideia de convalescença evoca as quintas dos arredores, mas lá para dentro, onde são lares, longe da rua e das rodas. Sim, não se sente nada.
Quase nada (experimento o céu de negro que há de norte a sul nunca me conforma (prometo-me a mim mesma mais de céu azul) a insatisfação (temo que haja pouco pra me contentar) nunca me abandona (mas nada me impede de tentar)
Não aguentei e sentei-me para escrever a história dos meus primeiros passos da vida, embora pudesse passar perfeitamente sem isso... É preciso estar-se demasiado e ignobilmente apaixonado pela própria pessoa para se escrever sem vergonha sobre ela.
Entretanto "Cadernos" como os seus poderiam,ao que me parece,servir de material para uma futura obra artística,para um futuro cenário: de uma época desordenada,mas já passada. Oh,quando passar o presente e chegar o futuro,o artista vindouro encontrará formas belas mesmo para a descrição da desordem e do caos passados.
A moral, opondo‑se à ciência, que é a teoria do que é — é a teoria do que deve ser. O próprio facto, porém, de existir uma teoria do que deve ser, conduz, já de si, a uma conclusão. Como surgiria a teoria de alguma coisa que deve ser? Pela insatisfação com o que é. Mas, a insatisfação com o que é, implica uma inadaptação ao meio; e, uma inadaptação ao meio implica uma morbidez.
Tão dado como sou ao tédio, é curioso que nunca, até hoje, me lembrou de meditar em que consiste. Estou hoje, deveras, nesse estado intermédio da alma em que nem apetece a vida nem outra coisa. E emprego a súbita lembrança de que nunca pensei em o que fosse, em sonhar, ao longo de pensamentos meio impressões, a análise, sempre um pouco factícia, do que ele seja. Não o sei, realmente, se o tédio é somente a correspondência desperta da sonolência do vadio, se é coisa, na verdade, mais nobre que esse entorpecimento. Em mim, o tédio é frequente, mas, que eu saiba, porque reparasse, não obedece a regras de aparecimento. Posso passar sem tédio um domingo inerte; posso sofrê-lo repentinamente, como uma nuvem externa, em pleno trabalho atento. Não consigo relacioná-lo com um estado da saúde ou da falta dela; não alcanço conhecê-lo como produto de causas que estejam na parte evidente de mim.
Dizer que é uma angústia metafísica disfarçada, que é uma grande desilusão incógnita, que é uma poesia surda da alma aflorando aborrecida à janela que dá para a vida - dizer isto, ou o que seja irmão disto, pode colorir o tédio, como uma criança ao desenho cujos contornos transborde e apague, mas não me traz mais que um som de palavras a fazer eco nas caves do pensamento.
O tédio... Pensar sem que se pense, com o cansaço de pensar; sentir sem que se sinta, com a angústia de sentir; não querer sem que se não queira, com a náusea de não querer - tudo isto está no tédio sem ser o tédio, nem é dele mais que uma paráfrase ou uma translação. E, na sensação directa, como se de sobre o fosso do castelo da alma se erguesse a ponte levadiça, nem restasse, entre o castelo e as terras, mais que o poder olhá-las sem as poder percorrer. Há um isolamento de nós em nós mesmos, mas um isolamento onde o que separa está estagnado como nós, água suja cercando o nosso desentendimento.
O tédio... Sofrer sem sofrimento, querer sem vontade, pensar sem raciocínio... É como a possessão por um demónio negativo, um embruxamento por coisa nenhuma.(...) É uma sensação de vácuo, uma fome sem vontade de comer, tão nobre como estas sensações do simples cérebro, do simples estômago, vindas de fumar demais ou de não digerir bem. O tédio... É talvez, no fundo, a insatisfação da alma íntima por não lhe termos dado uma crença, a desolação da criança triste que intimamente somos, por não lhe termos comprado o brinquedo divino. É talvez a insegurança de quem precisa mão que o guie, e não sente, no caminho negro da sensação profunda, mais que a noite sem ruído de não poder pensar, a estrada sem nada de não saber sentir...
O tédio... Quem tem Deuses nunca tem tédio. O tédio é a falta de uma mitologia. A quem não tem crenças, até a dúvida é impossível, até o cepticismo não tem força para desconfiar. Sim, o tédio é isso: a perda, pela alma, da sua capacidade de se iludir, a falta, no pensamento, da escada inexistente por onde ele sobe sólido à verdade.
Sono de ser, sem remédio,
Vestígio do que não foi,
Leve mágoa, breve tédio,
Não sei se pára, se flui;
Não sei se existe ou se dói.
Tudo em meu torno é o universo nu, abstrato, feito de negações noturnas. Divido-me em cansado e inquieto, e chego a tocar com a sensação do corpo um conhecimento metafísico do mistério das coisas. Por vezes amolece-se-me a alma, e então os pormenores sem forma da vida quotidiana boiam-se-me à superfície da consciência, e estou fazendo lançamentos à tona de não poder dormir. Outras vezes, acordo de dentro do meio-sono em que estagnei, e imagens vagas, de um colorido poético e involuntário, deixam escorrer pela minha desatenção o seu espetáculo sem ruídos.
Nove anos procurou Blimunda. Começou por contar as estações, depois perdeu-lhes o sentido. Nos primeiros tempos calculava as léguas que andava por dia, quatro, cinco, às vezes seis, mas depois confundiram-se- -lhe os números, não tardou que o espaço e o tempo deixassem de ter significado, tudo se media em manhã, tarde, noite, chuva, soalheira, granizo, névoa e nevoeiro, caminho bom, caminho mau, encosta de subir, encosta de descer, planície, montanha, praia do mar, ribeira de rios, e rostos, milhares e milhares de rostos, rostos sem número que os dissesse (...). Portugal inteiro esteve debaixo destes passos, algumas vezes atravessou a raia de Espanha porque não via no chão qualquer risco a separar a terra de lá da terra de cá, só ouvia falar outra língua, e voltava para trás. Encontrou-o.(...) A queima já vai adiantada, os rostos mal se distinguem. Naquele extremo arde um homem a quem falta a mão esquerda. Talvez por ter a barba enegrecida, prodígio cosmético da fuligem, parece mais novo. E uma nuvem fechada está no centro do seu corpo. Então Blimunda disse, Vem. Desprendeu-se a vontade de Baltasar Sete-Sóis, mas não subiu para as estrelas, se à Terra pertencia e a Blimunda.
A sua vontade a quem pertence? Quando ela se desprender de si , irá viver em que corpo?
Quando tinha treze anos, chorava sempre na cena final de frei luís de sousa: a revolta de maria, perante a sua ilegitimidade era também a sua. Mais tarde, foi a carta de despedida de teresa para simão botelho que lhe desencadeou lágrimas inevitáveis. Depois, cresceu e estes clássicos do romantismo deixaram de a comover... Recentemente, ao preparar a leitura expressiva do desenlace de memorial do convento, inexplicavelmente, começou a chorar como há muito o não fazia:lágrimas que surgiam não sabe de onde...Recusa esta sua faceta exageradamente emotiva, que se esforço por disfarçar, mas faz parte de si como uma condenação, não adianta fugir-lhe ...
O mundo não é suportável: precisa de qualquer coisa que não pertença a este mundo...Precisa de inexistências , algo distante, mas sempre presentes, apesar de ausentes.
Sempre entendeu a dor que fernando pessoa experimentou, perante o suicídio de sá-carneiro...A sua incompletude tornou-se mais irremediavelmente insuperável... Poucos a terão entendido tão bem...
Em todas as ruas te encontro em todas as ruas te perco...
Vossa formosa juventude leda, Vossa felicidade pensativa, Vosso modo de olhar a quem vos olha, Vosso não conhecer-vos — Tudo quanto vós sois vos assemelha À vida universal que vos esquece...
Um corpo pode viver sozinho, um corpo pode ser feliz sem nunca ter conhecido outro corpo, uma alma não: Zeus criou-nos como totalidade e a inveja dos deuses obrigou -o a dividir-nos, a reduzir-nos a seres incompletos...sendo a nossa passagem neste mundo, como defende Platão, uma eterna procura da metade que nos foi retirada. É triste quem nunca encontra essa parte de si; mais triste será quem julga encontrá-la e a perde, sem porquê...
( Gostaria de ter conversado com saramago sobre a dimensão platónica da demanda de blimunda: nunca leu nada sobre essa influência na sua obra. Pode ser que ainda encontre.)
El centro no es un punto. Si lo fuera, resultaría fácil acertarlo. No es ni siquiera la reducción de un punto a su infinito. El centro es una ausencia, de punto, de infinito y aun de ausencia y sólo se acierta con ausencia. Mírame después que te hayas ido, aunque yo esté recién cuando me vaya. Ahora el centro me ha enseñado a no estar, pero más tarde el centro estará aquí.
Não é por julgarmos uma coisa boa que nos esforçamos por ela, que a queremos, que a apetecemos, que a desejamos, mas, ao contrário, é por nos esforçarmos por ela, por querê-la, por apetecê-la, por desejá-la, que a julgamos boa...
Sim, o homem é o seu próprio fim. E é o seu único fim.(...) Os conquistadores são somente aqueles homens que sentem a sua força, o bastante para terem a certeza de viver constantemente nessas alturas e na plena consciência dessa grandeza.
E, contudo, não sentia remorso por não cumprir as promessas que fizera a si próprio. Essas promessas são só para as gaivotas que aceitam o vulgar. Quem conseguiu chegar à excelência da sua aprendizagem não tem necessidade desse tipo de promessa.
E a nossa grande raça partirá em busca de uma Índia nova, que não existe no espaço, em naus que são construídas daquilo de que os sonhos são feitos`. E o seu verdadeiro e supremo destino, de que a obra dos navegadores foi o obscuro e carnal antearremedo, realizar-se-á divinamente.
Desde sempre, reescrevi esta afirmação, na primeira pessoa, adaptei-a, convertendo-a no meu ideal:"E eu partirei em busca de uma vida nova, que não existe no mundo dos outros, em naus construídas daquilo de que os sonhos são feitos.E o meu verdadeiro e supremo destino, de que a minha existência real é um obscuro e carnal antearremedo, realizar-se-á plenamente."
A minha vida é, sempre foi, um projeto eternamente adiado, é um simulacro de vida feliz...Sempre estive convencida de que ,quando me tornasse adulta, normalizaria, mas já constatei que não : estou condenada à insatisfação, penetrada de uma capacidade de fantasiar que é causa e consequência da minha incompletude e, paradoxalmente, da minha plenitude.
Os fantasmas vêm sempre, deixam-se ficar, vai-se escrevendo sobre eles, vão-se abandonando e são matéria bruta. Mesmo se não os procurar. Mas também não tento muito fugir...
Cessar, ser incógnito e externo, movimento de ramos em áleas afastadas, ténue cair de folhas, conhecido no som mais que na queda, mar alto fino dos repuxos ao longe, e todo o indefinido dos parques na noite, perdidos entre emaranhamentos contínuos, labirintos naturais da treva!... Cessar, acabar finalmente, mas com uma sobrevivência translata, ser a página de um livro, a madeixa de um cabelo solto, o oscilar da trepadeira ao pé da janela entreaberta, os passos sem importância no cascalho fino da curva, o último fumo alto da aldeia que adormece, o esquecimento do chicote do carroceiro à beira matutina do caminho... O absurdo, a confusão, o apagamento — tudo que não fosse a vida... E durmo, a meu modo, sem sono nem repouso, esta vida vegetativa da suposição, e sob as minhas pálpebras sem sossego paira, como a espuma quieta de um mar sujo, o reflexo longínquo dos candeeiros mudos da rua.
Durmo e desdurmo.
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