Não é neccessário vivermos ao lado de alguém para nos sentirmos ligados a esse alguém mais do que a qualquer outra pessoa...

sexta-feira, 1 de abril de 2016

Misticismos e apostilas...


Serei uma recojida ou uma alumbrada ou um nada ???

O recojido deve esvaziar o entendimento de todas as coisas criadas, do Mundo, e meditar na humanidade de Cristo,passando progressivamente para temas mais abstractos. Esvaziar o entendimento,despojar-se das imagens,contrair e limitar a actividade exterior,em suma, abstrair-se do Mundo num regresso progressivo ao mais funo de si mesmo, para se encontar com Deus no amor.

Os dejados ou alumbrados dispensavam meditação na humanidade de Cristo,no Cristo sofrente, que era considerada atadura ,impedimento para chegar até Deus: o amor de Deus no homem é Deus. Assim, parece que este grupo se aproxima da reforma luterana, embora o movimento alumbrado seja anterior e os seus teorizadores não tiveram acesso às obras de Lutero.

Permissa essencial da doutrina alumbrada:o homem é semelhante a Deus e a presença de Deus no homem é mais perfeita do que a presença de Cristo na Eucaristia,O homem tem de descobrir Deus dentro de si,através da oração mental,uma experiência exterior que está condicionada pela vontade.

A meu ver, precisamente o que é grande no sr. A. Caeiro é o modo como utiliza os métodos da poesia espiritualista e idealista para nos tornar completamente bela a sua poesia materialista. Tivesse o sr. A.C. feito poesia absolutamente materialista, e veria como até o próprio materialismo da sua poesia sofreria. É aos armazéns do misticismo e do espiritualismo que a sua Musa vai buscar com que se engalanar.A.C. é um dos maiores poetas da nossa época e da nossa terra. Só uma incompreensão da magnitude e da originalidade da sua obra, ou uma aversão idiota por ele podem esconder isto a qualquer pessoa competente para ter opiniões críticas.

Assim como, quer o saibamos quer não, temos todos uma metafísica, assim também, quer o queiramos quer não, temos todos uma moral. Tenho uma moral muito simples - não fazer a ninguém nem mal nem bem. Não fazer a ninguém mal, porque não só reconheço nos outros o mesmo direito que julgo que me cabe, de que não me incomodem, mas acho que bastam os males naturais para mal que tenha de haver no mundo. Vivemos todos, neste mundo, a bordo de um navio saído de um porto que desconhecemos para um porto que ignoramos; devemos ter uns para os outros uma amabilidade de viagem. Não fazer bem, porque não sei o que é o bem, nem se o faço quando julgo que o faço. Sei eu que males produz se dou esmola? Sei eu que males produzo se educo ou instruo? Na dúvida, abstenho-me. E acho, ainda, que auxiliar ou esclarecer é, em certo modo, fazer o mal de intervir na vida alheia. A bondade é um capricho temperamental: não temos o direito de fazer os outros vítimas de nossos caprichos, ainda que de humanidade ou de ternura. Os benefícios são coisas que se infligem; por isso os abomino friamente.
Se não faço o bem, por moral, também não exijo que mo façam Se adoeço, o que mais me pesa é que obrigo alguém a tratar-me, coisa que me repugnaria de fazer a outrem. Nunca visitei um amigo doente. Sempre que, tendo eu adoecido, me visitaram, sofri cada visita como um incómodo, um insulto, uma violação injustificável da minha intimidade decisiva. Não gosto que me dêem coisas; parecem com isso obrigar-me a que as dê também - aos mesmos ou a outros, seja a quem for. Sou altamente sociável de um modo altamente negativo. Sou a inofensividade encarnada. Mas não sou mais do que isso, não quero ser mais do que isso, não posso ser mais do que isso. Tenho para com tudo que existe uma ternura visual, um carinho da inteligência - nada no coração. Não tenho fé em nada, esperança de nada, caridade para nada. Abomino com náusea e pasmo os sinceros de todas as sinceridades e os místicos de todos os misticismos ou, antes e melhor, as sinceridades de todos os sinceros e os misticismos de todos os místicos. Essa náusea é quase física quando esses misticismos são activos, quando pretendem convencer a inteligência alheia, ou mover a vontade alheia, encontrar a verdade ou reformar o mundo.


APOSTILA, redigida pelo engenheiro álvaro de campos, no dia 11 de abril de 1928...
Aproveitar o tempo! Mas o que é o tempo, que eu o aproveite? Aproveitar o tempo! Nenhum dia sem linha...O trabalho honesto e superior...O trabalho à Virgílio, à Milton...Mas é tão difícil ser honesto ou superior!É tão pouco provável ser Milton ou ser Virgílio! Aproveitar o tempo! Tirar da alma os bocados precisos — nem mais nem menos —Para com eles juntar os cubos ajustados Que fazem gravuras certas na história (E estão certas também do lado de baixo que se não vê)...Pôr as sensações em castelo de cartas, pobre China dos serões, E os pensamentos em dominó, igual contra igual, E a vontade em carambola difícil. Imagens de jogos ou de paciências ou de passatempos — Imagens da vida, imagens das vidas. Imagens da Vida. Verbalismo... Sim, verbalismo... Aproveitar o tempo! Não ter um minuto que o exame de consciência desconheça... Não ter um acto indefinido nem factício... Não ter um movimento desconforme com propósitos... Boas maneiras da alma...Elegância de persistir... Aproveitar o tempo! Meu coração está cansado como mendigo verdadeiro. Meu cérebro está pronto como um fardo posto ao canto. Meu canto (verbalismo!) está tal como está e é triste. Aproveitar o tempo! Desde que comecei a escrever passaram cinco minutos. Aproveitei-os ou não? Se não sei se os aproveitei, que saberei de outros minutos?! (...) Aproveitar o tempo! Ah, deixem-me não aproveitar nada! Nem tempo, nem ser, nem memórias de tempo ou de ser!... Deixem-me ser uma folha de árvore, titilada por brisa, A poeira de uma estrada involuntária e sozinha, O vinco deixado na estrada pelas rodas enquanto não vêm outras,O pião do garoto, que vai a parar,E oscila, no mesmo movimento que o da alma, E cai, como caem os deuses, no chão do Destino

Per sidera iuro, per superos et si qua fides tellure sub ima est, invitus, regina, tuo de litore cessi. sed me iussa deum, quae nunc has ire per umbras, per loca senta situ cogunt noctemque profundam, imperiis egere suis; nec credere quivi hunc tantum tibi me discessu ferre dolorem..

If I were a swan
I'd be gone (...)
If I were alone
I would cry
And if I were with you
I'd be home and dry
And if I go insane
Will you still let me join in with the game?




Fui para cima dela e agarrei-a pela garganta. Fiz tudo para a esganar. A minha desculpa, se tivesse de comparecer perante um tribunal, seria legítima defesa. Se eu não a matasse, ela é que me mataria...A sua natureza fictícia era a sua grande aliada. É muito mais difícil matar um fantasma do que uma realidade.

Pensar é ainda um dos atos de resistência do ser humano. Não concebo qualquer ato humano sem o pensamento, mas é evidente que este pode se expressar de muitas formas. Na antiguidade clássica, a filosofia e a poesia estiveram juntas, eram a mesma coisa, mais tarde se separaram. Juntar as duas de novo é voltar às raízes, não é ser vanguardista.

Acredito na existência de duas vidas. Não essas de fila indiana, ou de somatório de sobrevivências como as do gato ou do herói. Acredito, sim, que existe a vida por fora, uma, e a vida por dentro, duas. E o único corpo humano vive, assim, duas vezes ao mesmo tempo. Nas acções que faz em tudo que ocorre um milímetro acima da pele; e no que pensa, imagina e sonha, um milímetro abaixo da pele. A pele é a fronteira entre as duas vidas que temos poderia então dizer-se se gostássemos de dizer as frases assim, como que concluindo. Mas não gostamos....
Falar de gerações exige, então, o breve esclarecimento: trata-se da geração que partilha e acompanha a minha vida de fora ou a minha vida de dentro? É que tendo duas vidas tenho assim também duas possibilidades de me ligar a outras pessoas humanas, supondo aqui que o termo de geração se refere exclusivamente aos bípedes com biblioteca e tecnologia, e não alude aos animais com os seus excrementos ou às plantas insensatas e verdes. Se o cão da vizinha não faz parte da minha geração e a vizinha sim, pois bem, eis um problema que também poderia ser pensado.
Mas o que quero dizer é isto: há pessoas [fiquemos nelas] que pertencem à minha geração, considerando a vida de fora, e pessoas – outras pessoas – que pertencem à minha geração, considerando a vida de dentro. Os meus contemporâneos da vida que existe um milímetro acima da pele são aqueles, então, com quem posso partilhar acções; no limite: o meu contemporâneo desta vida 1, é aquele que eu posso assassinar, com um tiro bem colocado, ou amar – fisicamente falando [com um coração bem colocado, como diriam os românticos para manter a simetria da frase, ou com a pele viril e erecta como diriam os de gosto mais simples]. Os meus contemporâneos da vida de dentro, esses, são aqueles cujas ideias ou imaginações se aproximam das minhas ideias ou imaginações. Estes contemporâneos da minha vida 2 podem não ser contemporâneos da minha vida 1 e, neste caso, eu não os posso matar, nem despir ou abraçar – fisicamente falando, sempre. Nesta vida 2, nesta vida de dentro, nesta vida da cabeça interior, Séneca, nascido há dois mil anos, é meu contemporâneo porque as suas cartas também foram escritas para mim, e Aristófanes, Sófocles e Beckett, para falarmos de teatro, são também meus contemporâneos, e ainda Musil com a sua peça Os visionários: meu contemporâneo.
O que quero, então, dizer é isto: quando se fala em gerações de dramaturgos, ou de poetas, ou de romancistas, deverá primeiro pensar-se na geração que é contemporânea na vida 2, na vida de dentro: isto é: os autores que influenciaram a nossa literatura. Claro que os outros contemporâneos, aqueles que conosco podem trocar um olhar breve na rua [podendo ou não ser escritores], esses também são importantes para o que escrevemos. Mas isso já se sabia. Em síntese: pela matemática o sabemos há muito: 2 é melhor que 1, e 3 é melhor do que 2. E quem só pertence a uma geração merece só pertencer a uma geração.


As minhas paixões não podiam morrer, porque eram imensas, e o que é imenso é eterno.

E, hoje, pensando no que tem sido a minha vida, sinto-me qualquer bicho vivo, transportado num cesto de encurvar o braço, entre duas estações suburbanas. A imagem é estúpida, porém a vida que defini é mais estúpida ainda do que ela. Esses cestos costumam ter duas tampas, como meias ovais, que se levantam um pouco em um ou outro dos extremos curvos se o bicho estrebucha. Mas o braço de quem transporta, apoiado um pouco ao longo dos dobramentos centrais, não deixa coisa tão débil erguer frustemente mais do que as extremidades inúteis, como asas de borboleta que enfraquece.

Em torno ao candeeiro desolado
Cujo petróleo me alumia a vida,
Paira uma borboleta, por mandado
Da sua consistência indefinida.


Passa uma borboleta por diante de mim
E pela primeira vez no Universo eu reparo
Que as borboletas não têm cor nem movimento,
Assim como as flores não têm perfume nem cor.
A cor é que tem cor nas asas da borboleta,
No movimento da borboleta o movimento é que se move,
O perfume é que tem perfume no perfume da flor.
A borboleta é apenas borboleta
E a flor é apenas flor.


Tudo que faço ou medito Fica sempre na metade.Querendo, quero o infinito. Fazendo, nada é verdade.Que nojo de mim me fica Ao olhar para o que faço! Minha alma é lúcida e rica, E eu sou um mar de sargaço — Um mar onde bóiam lentos Fragmentos de um mar de além... Vontades ou pensamentos? Não o sei e sei-o bem.

Quer que o nada se alimente de nada, não quer que a sua teia afetiva seja enredada pelo medo; quer experimentar todos os sentimentos na sua forma pura: o nada nada; o nada que sonha poder ser tudo; a obsessão; a revolta; o medo. Gosta de poder saborear cada um de per si, sentir-lhes os contornos, os cheiros, possui-los, com a mesma intensidade com que cada um deles o possui.

Medo de um abismo que o atrai perigosamente: não medo de cair, pois, se tal acontecesse, ficaria reduzido ao nada a que estava habituado; é medo do medo; medo de o medo dominar o caos afetivo em que se movimenta; medo de o medo assumir as funções de manipulador da sua vida, do seu nada.

Tornou-se, simultaneamente, ponto de chegada e ponto de partida de emoções que, não existindo, existem. Ele, tão habituado a sentir o nada, não sabia o que fazer, perdido em encruzilhadas que nunca aprendeu a enfrentar. Intui, todavia, que um dos caminhos termina num abismo e, nesse momento, pela primeira vez, sente medo, muito medo.

Cumpre-me agora dizer que espécie de homem sou. Não importa o meu nome, nem quaisquer outros pormenores externos que me digam respeito. É acerca do meu carácter que se impõe dizer algo.

Toda a constituição do meu espírito é de hesitação e dúvida. Para mim, nada é nem pode ser positivo; todas as coisas oscilam em torno de mim, e eu com elas, incerto para mim próprio. Tudo para mim é incoerência e mutação. Tudo é mistério, e tudo é prenhe de significado. Todas as coisas são «desconhecidas», símbolos do Desconhecido. O resultado é horror, mistério, um medo por demais inteligente.
Pelas minhas tendências naturais, pelas circunstâncias que rodearam o alvor da minha vida, pela influência dos estudos feitos sob o seu impulso (estas mesmas tendências) — por tudo isto o meu carácter é do género interior, autocêntrico, mudo, não auto-suficiente mas perdido em si próprio. Toda a minha vida tem sido de passividade e sonho. Todo o meu carácter consiste no ódio, no horror da e na incapacidade que impregna tudo aquilo que sou, física e mentalmente, para actos decisivos, para pensamentos definidos. Jamais tive uma decisão nascida do auto-domínio, jamais traí externamente uma vontade consciente. Os meus escritos, todos eles ficaram por acabar; sempre se interpunham novos pensamentos, extraordinárias, inexpulsáveis associações de ideias cujo termo era o infinito. Não posso evitar o ódio que os meus pensamentos têm a acabar seja o que for; uma coisa simples suscita dez mil pensamentos, e destes dez mil pensamentos brotam dez mil inter-associacões, e não tenho força de vontade para os eliminar ou deter, nem para os reunir num só pensamento central em que se percam os pormenores sem importância mas a eles associados. Perpassam dentro de mim; não são pensamentos meus, mas sim pensamentos que passam através de mim. Não pondero, sonho; não estou inspirado, deliro. Sei pintar mas nunca pintei, sei compor música, mas nunca compus. Estranhas concepções em três artes, belos voos de imaginação acariciam-me o cérebro; mas deixo-os ali dormitar até que morrem, pois falta-me poder para lhes dar corpo, para os converter em coisas do mundo externo.
O meu carácter é tal que detesto o começo e o fim das coisas, pois são pontos definidos. Aflige-me a ideia de se encontrar uma solução para os mais altos, mais nobres, problemas da ciência, da filosofia; a ideia que algo possa ser determinado por Deus ou pelo mundo enche-me de horror. Que as coisas mais momentosas se concretizem, que um dia os homens venham todos a ser felizes, que se encontre uma solução para os males da sociedade, mesmo na sua concepção — enfurece-me. E, contudo, não sou mau nem cruel; sou louco, e isso duma forma difícil de conceber.
Embora tenha sido leitor voraz e ardente, não me lembro de qualquer livro que haja lido, em tal grau eram as minhas leituras estados do meu próprio espírito, sonhos meus — mais, provocações de sonhos. A minha própria recordação de acontecimentos, de coisas externas, é vaga, mais do que incoerente. Estremeço ao pensar quão pouco resta no meu espírito do que foi a minha vida passada. Eu, um homem convicto de que hoje é um sonho, sou menos do que uma coisa de hoje.


Criar dentro de mim um estado com uma política, com partidos e revoluções, e ser eu isso tudo, ser eu Deus no panteísmo real desse povo-eu, essência e acção dos seus corpos, das suas almas, da terra que pisam e dos actos que fazem. Ser tudo, ser eles e não eles. Ai de mim! Este ainda é um dos sonhos que não logro realizar. Se o realizasse morreria talvez, não sei por que, mas não se deve poder viver depois disso, tamanho o sacrilégio cometido contra Deus, tamanha usurpação do poder divino de ser tudo.

Na minha alma ignóbil e profunda registo, dia-a-dia, as impressões que formam a substância externa da minha consciência de mim. Ponho-as em palavras vadias, que me desertam desde que as escrevo, e erram, independentes de mim, por encostas e relvados de imagens, por áleas de conceitos, por azinhagas de confusões. Isto de nada me serve, pois nada me serve de nada. Mas desapoquento-me escrevendo, como quem respira melhor sem que a doença haja passado.Há quem, estando distraído, escreva riscos e nomes absurdos no mata-borrão de cantos entalados. Estas páginas são os rabiscos da minha inconsciência intelectual de mim. Traço-as numa modorra de me sentir, como um gato ao sol, e releio-as, por vezes, com um vago pasmo tardio, como o de me haver lembrado de uma coisa que sempre esquecera.Quando escrevo, visito-me solenemente. Tenho salas especiais, recordadas por outrem em interstícios da figuração, onde me deleito analisando o que não sinto, e me examino como a um quadro na sombra.Perdi, antes de nascer, o meu castelo antigo. Foram vendidas, antes que eu fosse, as tapeçarias [d]o meu palácio ancestral. O meu solar de antes da vida caiu em ruína, e só em certos momentos, quando o luar nasce em mim de sobre os juncos do rio, me esfria a saudade dos lados de onde o resto desdentado das paredes se recorta negro contra o céu de azul-escuro-esbranquiçado a amarelo de leite.Distingo-me a esfinges. E do regaço da rainha que me falta cai, como um episódio do bordado inútil, o novelo esquecido da minha alma. Rola para debaixo do contador com embutidos, e há aquilo em mim que o segue como olhos até que se perde num grande horror de túmulo e de fim.

Quero que a leitura deste livro vos deixe a impressão de terdes atravessado um pesadelo voluptuoso.Pulverização da personalidade: não sei quais são as minhas ideias, nem os meus sentimentos nem o meu carácter... Só sinto uma coisa, enquanto a sinto na pessoa visualizada de uma qualquer criatura que aparece em mim. Substitui os meus sonhos a mim-próprio. Cada pessoa é apenas o seu sonho de si-próprio.Eu nem isso sou.

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