Não é neccessário vivermos ao lado de alguém para nos sentirmos ligados a esse alguém mais do que a qualquer outra pessoa...

segunda-feira, 9 de maio de 2016

Sentimento de um não ocidental...

Amo, pelas tardes demoradas de Verão, o sossego da cidade baixa, e sobretudo aquele sossego que o contraste acentua na parte que o dia mergulha em mais bulício... Vivo uma era anterior àquela em que vivo; gozo de sentir-me coevo de Cesário Verde, e tenho em mim, não outros versos como os dele, mas a substância igual à dos versos que foram dele. Por ali arrasto, até haver noite, uma sensação de vida parecida com a dessas ruas... Há um destino igual, porque é abstracto, para os homens e para as coisas — uma designação igualmente indiferente na álgebra do mistério. Mas há mais alguma coisa... Nessas horas lentas e vazias, sobe-me da alma à mente uma tristeza de todo o ser, a amargura de tudo ser ao mesmo tempo uma sensação minha e uma coisa externa, que não está em meu poder alterar. Ah, quantas vezes os meus próprios sonhos se me erguem em coisas, não para me substituirem a realidade, mas para se me confessarem seus pares em eu os não querer, em me surgirem de fora, como o eléctrico que dá a volta na curva extrema da rua, ou a voz do apregoador nocturno, de não sei que coisa, que se destaca, toada árabe, como um repuxo súbito, da monotonia do entardecer! Passam casais futuros, passam os pares das costureiras, passam rapazes com pressa de prazer, fumam no seu passeio de sempre os reformados de tudo, a uma ou outra porta reparam em pouco os vadios parados que são donos das lojas. Lentos, fortes e fracos, os recrutas sonambulizam em molhos ora muito ruidosos ora mais que ruidosos. Gente normal surge de vez em quando. Os automóveis ali a esta hora não são muito frequentes; [...] No meu coração há uma paz de angústia, e o meu sossego é feito de resignação.

Coisas de nada, naturais da vida, insignificâncias do usual e do reles, poeira que sublinha com um traço apagado e grotesco a sordidez e a vileza da minha vida humana. Escrevo sorrindo com as palavras, mas o meu coração está como se se pudesse partir, partir como as coisas que se quebram, em fragmentos, em cacos, em lixo, que o caixote leva num gesto de por cima dos ombros para o carro, eterno de todas as Câmaras Municipais...Do meu quarto andar sobre o infinito, no plausível íntimo da tarde que acontece, à janela para o começo das estrelas, meus sonhos vão por acordo de ritmo com distância exposta para as viagens aos países incógnitos, ou supostos ou somente impossíveis.

Ao entardecer, debruçado pela janela,
E sabendo de soslaio que há campos em frente,
Leio até me arderem os olhos
O livro de Cesário Verde.


Nas nossas ruas, ao anoitecer, Há tal soturnidade, há tal melancolia,Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia Despertam-me um desejo absurdo de sofrer. E eu desconfio, até, de um aneurisma Tão mórbido me sinto, ao acender das luzes; À vista das prisões, da velha Sé, das Cruzes, Chora-me o coração que se enche e que se abisma. E eu, de luneta de uma lente só, Eu acho sempre assunto a quadros revoltados: Entro na brasserie; às mesas de emigrados,Ao riso e à crua luz joga-se o dominó. E saio. A noite pesa, esmaga. Nos Passeios de lajedo arrastam-se as impuras. Ó moles hospitais! Sai das embocaduras Um sopro que arripia os ombros quase nus.O tecto fundo de oxigénio, de ar, Estende-se ao comprido, ao meio das trapeiras; Vêm lágrimas de luz dos astros com olheiras, Enleva-me a quimera azul de transmigrar. Se eu não morresse, nunca! E eternamente Buscasse e conseguisse a perfeição das cousas! Esqueço-me a prever castíssimas esposas, Que aninhem em mansões de vidro transparente! E, enorme, nesta massa irregular De prédios sepulcrais, com dimensões de montes, A Dor humana busca os amplos horizontes, E tem marés, de fel, como um sinistro mar!


Que pena que tenho dele! Ele era um camponês
Que andava preso em liberdade pela cidade.
Por isso ele tinha aquela grande tristeza
Que ele nunca disse bem que tinha,(...)
Mas andava na cidade como quem anda no campo
E triste como esmagar flores em livros
E pôr plantas em jarros...



A noite caiu sem manchas e sem culpa. Os homens tiraram as máscaras de bons atores. Findou o espetáculo. Tudo o mais é arrabalde. No alto, a utópica lua vela comigo e sonha inutilmente com a verdade das coisas. Noite! Deixa-me também dormir.

A noite invadia lentamente a minha inatenção. Despertei de repente para a ver entrada. Flutuavam ainda, nas indecisões da Natureza, ruídos incertos como se as coisas compusessem o manto para adormecer. Tive um outro intervalo comigo próprio. Tornei a meditar sem saber em quê. Quando de novo despertei o silêncio era absoluto — logo invisível de todos os meus sonhos idos e das minhas esperanças mortas, e a minha consciência da vida afundava-se lentamente nele, assumindo, à medida que se afundava, noções novas de possibilidades de compreender a vida sob outros aspectos, vagos terrores e interiores...Tive de repente uma sensação ampla e absurda — a de que eu era um mar, ou o traço de um mar, que a vaga proa de não sei que navio vinha erguidamente abrindo. Pareceu-me que me dividia e que através do meu dividir, me passavam sensações de outras coisas e que essas sensações por me dividirem no passar, não eram sentidas por mim. Acabou tudo como uma rua quando viramos a esquina...

Ah, como incerta, na noite em frente,De uma longínqua tasca vizinha Uma ária antiga, subitamente, Me faz saudades do que as não tinha. A ária é antiga? É-o a guitarra. Da ária mesma não sei, não sei...Qual o passado que me trouxeram? Nem meu nem de outro, é só passado... É o tempo, o tempo que leva a vida Que chora e choro na noite triste. É a mágoa, a queixa mal definida De quando existe, só porque existe.

Vai tudo dormir...Fico sozinho com o universo inteiro.



Às vezes , no silêncio da noite, eu fico imaginando...

Na noite terrível, substância natural de todas as noites, Na noite de insónia, substância natural de todas as minhas noites, Relembro, velando em modorra incómoda, Relembro o que fiz e o que podia ter feito na vida. Relembro, e uma angústia Espalha-se por mim todo como um frio do corpo ou um medo...Mas o que eu não fui, o que eu não fiz, o que nem sequer sonhei; O que só agora vejo que deveria ter feito, O que só agora claramente vejo que deveria ter sido...Mas não virei para o lado irreparavelmente perdido, Não virei nem pensei em virar, e só agora o percebo;Mas não disse não ou não disse sim, e só agora vejo o que não disse; Mas as frases que faltou dizer nesse momento surgem-me todas, Claras, inevitáveis, naturais ...Mas só agora o que nunca foi, nem será para trás, me dói. O que falhei deveras não tem esperança nenhuma Em sistema metafísico nenhum. Pode ser que para outro mundo eu possa levar o que sonhei, Mas poderei eu levar para outro mundo o que me esqueci de sonhar? Nesta noite em que não durmo, e o sossego me cerca Como uma verdade de que não partilho, E lá fora o luar, como a esperança que não tenho, é invisível para mim.

Apesar da idade, não me acostumo à vida. Vivê-la até ao derradeiro suspiro de credo na boca. Sempre pela primeira vez, com a mesma apetência, o mesmo espanto, a mesma aflição. Não consentir que ela se banalize nos sentidos e no entendimento. Esquecer em cada poente o do dia anterior. Saborear os frutos do quotidiano sem ter o gosto deles na memória. Nascer todas as manhãs.

Apagar tudo do quadro de um dia para o outro, ser novo com cada nova madrugada, numa revirgindade perpétua da emoção — isto, e só isto, vale a pena ser ou ter, para ser ou ter o que imperfeitamente somos. Esta madrugada é a primeira do mundo. Nunca esta cor rosa amarelecendo para branco quente pousou assim na face com que a casaria de oeste encara cheia de olhos vidrados o silêncio que vem na luz crescente. Nunca houve esta hora, nem esta luz, nem este meu ser. Amanhã o que for será outra coisa, e o que eu vir será visto por olhos recompostos, cheios de uma nova visão.

Um dos signos do Lobo da Estepe era o de ser um noctívago. A manhã era para ele a pior parte do dia, causava-lhe temor e nunca lhe trouxera nada de bom. Nunca fora alegre em qualquer manhã de sua vida, nunca fizera nada de bom na primeira metade do dia, não tivera boas ideias, nem divisara nenhuma alegria para ele ou para os demais. Ao começar a tarde, ia reagindo lentamente, principiava-se a animar -se e, ao cair da noite, nos seus melhores dias, tornava-se frutífero, ativo e, às vezes, até brilhante e alegre. Disso decorria sua necessidade de isolamento e de independência. Nunca existira um homem com tão profunda e apaixonada necessidade de independência como ele.

Começa a haver meia-noite, e a haver sossego,
Por toda a parte das coisas sobrepostas,
Os andares vários da acumulação da vida...
Calaram o piano no terceiro-andar...
Não oiço já passos no segundo-andar...
No rés-do-chão o rádio está em silêncio...
Vai tudo dormir...Fico sozinho com o universo inteiro.


Duas horas e meia da madrugada. Acordo e adormeço. Houve em mim um momento de vida diferente entre sono e sono. Se ninguém condecora o sol por dar luz, Para que condecoram quem é herói? Durmo com a mesma razão com que acordo E é no intervalo que existo Nesse momento em que acordei, dei por todo o mundo — Uma grande noite incluindo tudo Só para fora...

O material de que são feitos os sapatos é treinado para obedecer, sobre isso não tinha dúvidas. Obedeçam sapatos, murmurou Mylia, com uma perversão ingénua. Como as substâncias se separavam logo à partida entre as que avançavam com a vontade própria e as que esperavam com obediência estática (e nisso dividiam-se como alguns homens)! Os sapatos eram a obediência pura, a escravidão mesquinha, enojavam-lhe naquele momento; a sabujice destes materiais em relação ao homem. Nenhum cão é tão sabujo como estas substâncias. Não há possibilidade de diálogo entre substâncias que nascem logo em campos opostos, em campos, não inimigos, que isso seria pensar na possibilidade de combate, de chamamento de energias, possibilidade de elevação do homem que agarra na arma para combater; ali, pelo contrário, o afastamento não era entre substâncias inimigas ou entre dois predadores que se preparam para combater por um pequeno território; tratava-se simplesmente de passividade absoluta de um lado, e do outro energia forte, que constrói ou destrói, mas que modifica sempre. Não somos uma coisa que espera...


Mas nesse dia, às quatro da manhã, decidira sair de casa.De noite a dor desce sobre o corpo de modo distinto. Como um concentrado químico,uma substância que lentamente desliza por um declive mínimo que os olhos mal conseguem perceber. Entre o dia e a noite a superfície não é plana. Um ligeiro declive.

Repegou no jerusalém porque eram quatro da manhã e se recordava de que esta hora era referida. Teve saudade do tempo em que o leu pela primeira vez.Não somos uma coisa que espera... Ficou, subitamente, horrorizada: ela limita-se a ser uma coisa que espera...

O outro grande medo de Mylia era o de alguém voltar a olhar para si e murmurar: eis uma louca. Não queria voltar a parecer louca. Era evidente que logo a seguir à constatação errada (eis uma louca!) as pessoas veriam que ela não o era, e que fazia afinal o que as pessoas normais faziam, porém bastava um olhar que a considerasse fora da razão, bastava pensar nessa hipótese para ficar aterrorizada. Ninguém mais dirá que estou louca, murmurava Mylia.

Cada vez a acelerar mais o passo, Mylia ia pensando, quase divertida,Estou cheia de fome, já não vou morrer! É impossível morrer com tanta fome! Mylia, de facto, sentia-se segura, estranhamente: aquela dor de fome era uma garantia, uma garantia de imortalidade, pelo menos momentânea. Não posso morrer, assim, de repente, da outra dor, se esta dor agora está tão forte! E sentindo-se segura tentava distrair-se da vontade de comer. Se comer esta dor passa, e depois vem a outra e, dessa sim, posso morrer...

Feliz dia para quem é O igual do dia, E no exterior azul que vê Simples confia! Azul do céu faz pena a quem Não pode ser Na alma um azul do céu também Com que viver ...Mas vejo quem devia estar Igual do dia Insciente e sem querer passar. Ah, a ironia De só sentir a terra e o céu Tão belo ser Quem de si sente que perdeu A alma para os ter!

Sou um sonhador; tenho tão pouca vida real que momentos como estes que presentemente vivo, por demais preciosos, não posso deixar de os repetir nos meus sonhos. Sonharei consigo toda a noite, toda a semana, todo o ano. Amanhã sem falta, voltarei aqui, a este lugar, a esta mesma hora, e sentir-me-ei feliz por recordar o dia de hoje. A partir de agora, este lugar é querido aos meus olhos. Existem dois ou três locais assim...

Oh, que importa a vida real? Aos seus olhos enfeitiçados, a Nástenka e eu vivemos uma vida tão ociosa, tão parada e desprezível, andamos por demais descontentes da nossa sorte, fartos da nossa existência! (…) E com efeito, com quanta ligeireza e naturalidade se cria esse mundo fantástico, de faz-de-conta! Como se não fosse uma ilusão! A bem dizer, alturas há em que se sente impelido a acreditar que essa vida não é uma exaltação dos sentidos, uma miragem, um equívoco da imaginação, mas algo real, autêntico, palpável.

Sentimos que, por fim, a fantasia, esta inesgotável fantasia, dá sinal de estar cansada, esgotada numa permanente tensão, porque amadurecemos e começamos a deixar para trás os nossos antigos ideais: estes desmoronam-se em bocados e desfazem-se em pó, e, se não existe outra vida, é preciso construí-la a partir desses mesmos fragmentos. Contudo, a alma pede e deseja outra coisa! Em vão o sonhador busca no meio dos seus velhos sonhos, como entre a cinza, à procura de uma ténue centelha para reavivar a fantasia, para inflamar um fogo novo no seu coração arrefecido e ressuscitar nele tudo o que dantes lhe era tão caro, que lhe fazia ferver o sangue e lhe tocava a alma, que lhe fazia chegar lágrimas aos olhos, iludindo-o maravilhosamente.



Não gosta do filme, mas é um remate lógico...A alma das personagens é italiana,latina e troppo impetuosa, o que deturpa a essência da narrativa, pelo menos da leitura que dela faz...

Quando chegou ,pela primeira vez a Zurique,na Primavera de 1917,o Dr Richard Diver tinha vinte e ses anos,uma bela idade para um homem, mais do que isso, a idade áurea para um celibatário.

Mas é preferível tranquilizarmo-nos - o momento de Dick Diver começa agora.

A nossa clínica é para ricos, e portanto a palavra" disparate" não faz parte do nosso vocabulário.Confessa lá, vieste aqui para me ver ou para ver a moça?
Tinha recebido umas cinquenta cartas dela... dividiam-se em duas categorias: ...as primeiras,de carácter marcadamente patológico; as segundas, perfeitamente normais e revelavam uma personalidade rica em maturação.

" Gostava que alguém estivesse apaixonado por mim,como no tempo em que eu não estava doente,há séculos. Mas imagino que terão de passar anos antes de eu poder voltar a pensar em algo do género."

No fim de contas, eu sou apenas uma espécie de boneco idealizado na vida dela.
Gosto da minha paciente.É atraente. Que querem que eu faça - que a leve a passear ao edelvais? Que lhe dedique a minha vida? Seja como for, passaram quatro semanas e a rapariga parece estar apaixonada...A verdade é que estou meio apaixonado por ela - e já me passou pela cabeça pedi-la em casamento.

Os Warren pretendiam comprar um médico para Nicole- Não tem um médico simpático que nos empreste? Não precisavam de se preocupar a respeito de Nicole, uma vez que tinham condições para lhe comprar um jovem e simpático médico, ainda fresco da universidade. ... Candidatos não devem faltar... Eles decidiram comprar um médico? Bem podem aferrar-se ao que conseguirem arranjar lá em Chicago?

Dick voltou para o estúdio e Nicole percebeu que ele estava no meio de uma das suas mais características disposições de espírito, a excitação que contagiava toda a gente,mas que era inevitavelmente seguida por uma crise melancólica, que Dick nunca demonstrava, mas que Nicole adivinhava. A excitação causada por certas coisas atingia uma intensidade desproporcional à sua importância, gerando nas pessoas um virtuosismo realmente extraordinário...

As mulheres atraentes de dezanove ou de vinte anos e nove anos são iguais, em matéria de confiança em si... Mas, se a rapariga de dezanove adquire a confiança em si pelo facto de lhe darem muita atenção, a mulher de vinte e nove alimenta-se de coisas mais subtis. Quando sente desejo, escolhe bem os seus aperitivos; ou então, quando satisfeita, aprecia o caviar de uma força potencial. Felizmente, nenhuma delas prevê os anos seguintes, quando a sua visão será muitas vezes obliterada pelo pânico, pelo medo de parar ou o medo de continuar.

A frase que justifica o livro: é difícil para alguém mentalmente doente sentir pena de uma pessoa sã;

O caso estava concluído.O Dr.Driver estava livre. Escreveu , nem sabe bem porquê...Releu, nem sabe bem porquê, outros textos, outras mensagens, antes de tomar a decisão definitiva... O caso está concluído: é uma pena...

O mostrengo que está no fim do mar Veio das trevas a procurar A madrugada do novo dia, Do novo dia sem acabar; E disse: «Quem é que dorme a lembrar Que desvendou o Segundo Mundo, Nem o Terceiro quer desvendar?» E o som na treva de ele rodar Faz mau o sono, triste o sonhar, Rodou e foi-se o mostrengo servo Que seu senhor veio aqui buscar. Que veio aqui seu senhor chamar — Chamar Aquele que está dormindo E foi outrora Senhor do Mar…

Uma noite que originou a madrugada por que portugal esperava. Arrebol efémero, depois de anos e anos da escuridão de horas mortas.


A acção passa-se na redacção de um jornal, em Lisboa, na noite de 24 para 25 de Abril de 1974. Qualquer semelhança com personagens da vida real e seus ditos e feitos é pura coincidência. Evidentemente.

O dono do dinheiro é sempre o dono do poder, mesmo quando não aparece na primeira fila como tal. Quem tem o poder, tem a informação que defenderá os interesses do dinheiro que esse poder serve. A informação que nós atiramos para cima do leitor desorientado é aquela que, em cada momento, melhor convém aos donos do dinheiro. Para quê? Para que lhês demos mais dinheiro a ganhar. Servem-se de nós, e nós servimo-los a eles. [...] A quem tudo isto deveria ser explicado, não era a você [Valadares], era a toda essa gente que anda na rua, que compra o jornal e o lê, e acaba por acreditar mais no que ele diz do que naquilo que os seus próprios olhos vêem.

E por vezes as noites duram meses E por vezes os meses oceanos E por vezes os braços que apertamos nunca mais são os mesmos E por vezes encontramos de nós em poucos meses o que a noite nos fez em muitos anos E por vezes fingimos que lembramos E por vezes lembramos que por vezes ao tomarmos o gosto aos oceanos só o sarro das noites não dos meses lá no fundo dos copos encontramos E por vezes sorrimos ou choramos E por vezes por vezes ah por vezes num segundo se evolam tantos anos.

Às vezes, quando acordo de noite, sinto parar de repente, para que eu não vá ouvi-lo, o ruído das mãos que estão tecendo o meu destino. Vejo no ar fragmentos do meu futuro, rápidas sombras, e tendo uma vaga intuição da unidade divina do meu ser. Eu sou uma frase divina com um sentido que me escapa.

Acordo de noite, muito de noite, no silêncio todo. (…) Abro a janela directamente, no desespero da insónia. E, de repente, humano, O quadrado com cruz de uma janela iluminada! Fraternidade na noite! Fraternidade involuntária, incógnita, na noite! Estamos ambos despertos e a humanidade é alheia. Dorme. Nós temos luz



Quando se tem insónias, imagina-se quem estará, também, acordado. O que faz? Em que pensa? Será que sente a nossa companhia?

Apagar tudo do quadro de um dia para o outro, ser novo com cada nova madrugada, numa revirgindade perpétua da emoção — isto, e só isto, vale a pena ser ou ter, para ser ou ter o que imperfeitamente somos. Esta madrugada é a primeira do mundo. Nunca esta cor rosa amarelecendo para branco quente pousou assim na face com que a casaria de oeste encara cheia de olhos vidrados o silêncio que vem na luz crescente. Nunca houve esta hora, nem esta luz, nem este meu ser. Amanhã o que for será outra coisa, e o que eu vir será visto por olhos recompostos, cheios de uma nova visão.

Depois de não ter dormido, Depois de já não ter sono, Interminável madrugada em que se pensa sempre sem se pensar, Vi o dia vir Como a pior das maldições — A condenação ao mesmo Contudo, que riqueza de azul verde e amarelo dourado de vermelho No céu eternamente longínquo — Nesse oriente que estragaram Dizendo que vêm de lá as civilizações; Nesse oriente que nos roubaram Com o Conto do Vigário dos mitos solares, Maravilhoso oriente sem civilizações nem mitos, Simplesmente céu e luz, Material sem materialidade. . . Todo luz, mesmo assim A sombra, que é a luz da noite dada ao dia, Enche por vezes, irresistivelmente natural. O grande silêncio do trigo sem vento, O verdor esbatido dos campos afastados, A vida e o sentimento da vida. A manhã inunda toda a cidade. Meus olhos pesados do sono que não tivestes, Que amanhã inundará o que está por trás de vós. Que é vós, Que sou eu?

Mais sol non posso eu enganar
meu coraçón que m'enganou,
por quanto me fez desejar
a quen me nunca desejou.

e per esto non dormio eu,
porque non poss'eu coita dar,
a quen me sempre coita deu

Mais rog'a Deus que desampar
a quen m'assí desamparou
vel que podess'eu destorvar,
a quen me sempre destorvou
E logo dormiria eu,
se eu podesse coita dar,
a quen me sempre coita deu.


Em toda a noite o sono não veio. Agora Raia do fundo Do horizonte, encoberta e fria, a manhã. Que faço eu no mundo? Nada que a noite acalme ou levante a aurora, Coisa séria ou vã Com olhos tontos da febre vã da vigília Vejo com horror O novo dia trazer-me o mesmo dia do fim Do mundo e da dor — Um dia igual aos outros, da eterna família De serem assim…

Ó madrugada, tardas tanto. . . Vem. . . Vem, inutilmente, Trazer-me outro dia igual a este, a ser seguido por outra noite igual a esta. . . Vem trazer-me a alegria dessa esperança triste, Porque sempre és alegre, e sempre trazes esperanças, Segundo a velha literatura das sensações. Vem, traz a esperança, vem, traz a esperança. O meu cansaço entra pelo colchão dentro. Doem-me as costas de não estar deitado de lado. Se estivesse deitado de lado doíam-me as costas de estar deitado de lado. Vem, madrugada, chega!

Tens uns brincos sem valia
E um lenço que não é nada,
Mas quem dera ter o dia
De quem és a madrugada.



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