Analepse - 2015
Esta gente cujo rosto Às vezes luminoso E outras vezes tosco Ora me lembra escravos Ora me lembra reis Faz renascer meu gosto De luta e de combate Contra o abutre e a cobra O porco e o milhafre Pois a gente que tem O rosto desenhado Por paciência e fome É a gente em quem Um país ocupado Escreve o seu nome E em frente desta gente Ignorada e pisada Como a pedra do chão E mais do que a pedra Humilhada e calcada Meu canto se renova E recomeço a busca De um país liberto De uma vida limpa E de um tempo justo...
Em maio, assinala-se o dia do trabalhador, o dia da mãe, o dia das mães dos trabalhadores e dos trabalhadores filhos da mãe... Em maio, comemora-se também o dia da europa, o dia de nossa senhora de fátima e o dia da internet, dias de uniões, de aparições e de navegações...Em maio, fazia anos um amigo especial que deixou de fazer anos porque os anos já não o fazem a ele, mesmo que o dia continue a existir. Em maio, o nosso vasco da gama chega a kappakadavu, permitindo cumprir a descoberta do caminho marítimo para a índia para tentar, em vão, engrandecer o reino de portugal e dos algarves; dá-se a batalha de alfarrobeira; decreta-se a abolição da escravatura, no brasil, para poder dar lugar a formas muito mais subtis e engenhosas; providencialmente nossa senhora aparece aos três estuporinhos, perdão, aos três pastorinhos, na cova da iria; o estado de israel torna-se independente para melhor servir os estados unidos; inicia-se a revolução cultural chinesa e o maio de 68, em frança. Em maio, eu casei e morreu ayrton senna. Em maio, comemora-se a queima das fitas e as fitas dos estudantes emocionam as cidades universitárias, particularmente coimbra, que pára estarrecida para ver desfilar um bando negro de idiotas alcoolizados que se juntam para ouvir as grosserias do quim barreiros, ir aos touros até à figueira da foz...
Estou a ser injusta, maio e os festejos académicos não têm culpa das humilhações que suportei, talvez por acaso do destino, neste mês aziago que, em coimbra, é inevitável associar à queima das fitas...
Apesar das ruínas e da morte, Onde sempre acabou cada ilusão, A força dos meus sonhos é tão forte, Que de tudo renasce a exaltação E nunca as minhas mãos ficam vazias.
Como sempre o primeiro dia do mês é dedicado a quem trabalha,mesmo que não faça nada de jeito, mesmo que esteja desempregado ou em greve. O primeiro domingo fica cativo para homenagear quem pariu,mesmo que não tenha desejado a ser que lhe vai arruinar a juventude e os projetos de vida, mesmo que o maltrate, física ou psicologicamente... Mesmo que o abandone ou o dê para adoção para , quando ele tiver catorze anos, se lembrar da força da voz do sangue e dar entrevistas, na sic mulher, sobre o amor , incondicional, que lhe tem, proferindo, ente lágrimas, soluços e assoadelas ruidosas, que está muito arrependida...
Dia da mãe ( até escrevo por antecipação...já que vivemos em tempo de dois em um, despacho já hoje as mães) É assunto sobre o qual ainda não me considero habilitada para escrever. O que sinto pelo meu filho? O que sentirá ele por mim? Falo de sentimentos autênticos: não daquelas coisas que todas as fêmeas experimentam pelos seres que geraram; não das tretas que todos os filhos acham que têm obrigação de sentir por quem os trouxe ao mundo...É um tema em que me sinto marginal, neste país de afetos em que a outra gente se movimenta: todos adoram as mães, todas as mães se sentem adoradas pelos filhos... Domingo será dia de hinos e loas ao amor, "esse sentimento puro que une para sempre dois seres…”
Com fúria e raiva acuso o demagogo E o seu capitalismo das palavras Pois é preciso saber que a palavra é sagrada Que de longe muito longe um povo a trouxe E nela pôs sua alma confiada De longe muito longe desde o início O homem soube de si pela palavra E nomeou a pedra a flor a água E tudo emergiu porque ele disse Com fúria e raiva acuso o demagogo Que se promove à sombra da palavra E da palavra faz poder e jogo E transforma as palavras em moeda Como se fez com o trigo e com a terra
Nasci em Maio, o mês das rosas, diz-se. Talvez por isso eu fiz da rosa a minha flor, um símbolo, uma espécie de bandeira para mim mesmo. E todos os anos, quando chegava o mês de Maio, ou mais exactamente, no dia 12 de Maio, às dez e um quarto da manhã (que foi a hora em que eu nasci), a minha mãe abria a porta do meu quarto, acordava-me com um beijo e colocava numa jarra um ramo de rosas vermelhas, sem palavras. Só as suas mãos, compondo as rosas, oficiavam nesse estranho silêncio cheio de ritos e ternura. Nesse tempo o Sol nascia exactamente no meu quarto. Eu abria a janela. Em frente era o largo, a velha árvore do largo dos ciganos. Quando chegava o mês de Maio, eu abria a janela e ficava bêbado desse cheiro a fogueiras, carroças e ciganos. E respirava o ar de todas as viagens, da minha janela, capital do mundo, debruçado sobre o largo onde começavam todos os caminhos. E tudo estava certo, nesse tempo, ou, pelo menos, nada tinha o sabor do irremediável. Nem mesmo a morte da minha tia. Por muito tempo ela ficou nos retratos e no jardim, bordando à sombra das magnólias, andando pela casa nos pequenos ruídos do dia-a-dia, até que, pouco a pouco, se foi confundindo com as muitas ausências que vinham sentar-se na cadeira, onde, dantes, minha tia se sentava. E eu dormia poisado sobre a eternidade, como se tudo estivesse certo para sempre, eu dormia com muitos olhos, muitos gestos vigilantes sobre o meu sono. Por vezes tinha pesadelos, acordava, inquieto, a meio da noite, qualquer coisa parecia querer despedaçar-se e então exclamava: - Mãe! E logo essa voz, tão calma, entrava dentro de mim, mandava embora os fantasmas, e era de novo o meu quarto, a doce quentura da minha casa no cimo da ternura. Não havia polícia nesse tempo. Ninguém roubaria a tranquilidade do meu sono, ninguém viria a meio da noite para me levar... Em Maio de 1963 eu estava na cadeia. Por vezes, a meio da noite, um grito abalava as traves da minha cabeça, direi mesmo da minha vida, e eu acordava suado, dolorido, como se um rato (talvez o medo?) me roesse o estômago. E era inútil chamar. Onde ficara essa voz que dantes vinha repor o sono no seu lugar, repondo a paz dentro de mim? E as manhãs penduradas no mês de Maio, onde acordar era uma festa? Onde ficara a ternura? Onde ficara a minha vida? Em Maio de 1963 eu estava na cadeia. Dormia – como direi? – acordado sobre cada minuto. Tinha aprendido o irremediável. Alguma coisa, dentro de mim, se despedaçara para sempre (para sempre? Que quer dizer para sempre?). Era inútil chamar. Tinha aprendido, fisicamente, a solidão... Eu estava, pela primeira vez, fisicamente só, dentro do meu sono povoado por esse grito que estalava por vezes as traves da minha cabeça (onde essa voz que mandava embora os fantasmas?). E era terrível essa manhã sem manhã, essa realidade branca e gelada, toda feita de paredes, grades, perguntas, gritos...Talvez seja preciso renunciar à felicidade para conquistar a felicidade. Eu estava na cadeia em Maio de 1963. Tinha aprendido a solidão. Tinha aprendido que se pode gritar com todas as nossas forças quando se acorda a meio da noite com um grito na cabeça e um rato (talvez o medo?), roendo-nos o estômago, que ninguém, ninguém virá repor a paz dentro de nós. E, então, é a altura de saber se as traves mestras dum homem resistirão. Pois só a tua voz, amigo, responderá ao teu apelo torturado na noite. E, nessa hora (a mais solitária das horas), se conseguires cerrar os dentes, dar um murro na parede, acender um cigarro, se conseguires vencer esse encontro com a solidão no mais fundo de ti próprio, com que alegria, com que estranha alegria, na manhã seguinte, tu responderás: - Bom dia!, mesmo que seja terrível acordar no mês de Maio, nessa estreita paisagem, gelada e branca, com sete passos de comprimento por sete de largura. É certo que se podem escolher outros caminhos. Mas poderia eu ter escolhido outro caminho?
Enquanto dei aulas ao ensino básico e aos cursos noturnos, ler este texto de manuel alegre era um espécie de ritual todos os meses de maio. Ganhei-lhe afeto - ao texto , evidentemente. Lembro-me dos alunos adultos que choravam a lê-lo.Recordo um miúdo genial, atualmente professor no instituto superior técnico, que, num teste, numa pergunta de interpretação sobre o significado da expressão "com sete passos de comprimento por sete de largura", determinou a área da cela,com base num raciocínio perfeito, apresentando todos os cálculos efetuados. Pedi ao professor de matemática que corrigisse, e dei-lhe a cotação toda...A minha inesperada reação desiludiu-o, pois estava preparado para ter zero na resposta e poder argumentar comigo...
Não gosto do mês de maio...receio sempre o que me possa acontecer em maio...O Maio me molha, o Maio me enxuga., diz o aforismo, mas receio que comigo não seja assim.
Gosto de rosas: As Rosas amo dos jardins de Adónis, Essas vólucres amo, Lídia, rosas, Que em o dia em que nascem, Em esse dia morrem. (A dignidade linguística da poesia de ricardo reis emociona-me, mas faz-me sentir de uma pequenez imensa. Só consigo ser grande na pequenez)
Verdes prados verdes campos onde está minha paixão as andorinhas não param umas voltam outras não...
Um dia conto o motivo pelo qual não gosto do zeca afonso: é talvez o meu segredo mais bem guardado. De qualquer modo, não o aprecio como cantor, não sou baladeira nem me emociono com trovas populares- também nisso destoo do espírito de abrilmaio. Estou condenada, em termos políticos, a uma solidão irremediável: a minha alma definhou, atolada num espaço sem espaço, incompreendida à esquerda,à direita e ao centro...
Restam-me amigos imaginários...
2016
Hoje, seria dia da mãe. Seria se o fosse... Hoje seria dia de recordar o 1 de Maio de 1974. Seria se o fosse...Seria um bonito dia para ir à praia, um dia de ameno ócio para refletir e conversar...Hoje poderia ser tudo... Hoje seria tudo se o fosse. Foi, afinal, tão só, o dia de uma ironia incompreendida e de um vírus exasperante...
Dia a dia mudamos para quem Amanhã não veremos. Hora a hora Nosso diverso e sucessivo alguém Desce uma vasta escadaria agora. E uma multidão que desce, sem Que um saiba de outros. Vejo-os meus e fora. Ah, que horrorosa semelhança têm! São um múltiplo mesmo que se ignora. Olho-os. Nenhum sou eu, a todos sendo. E a multidão engrossa, alheia a ver-me, Sem que eu perceba de onde vai crescendo. Sinto-os a todos dentro em mim mover-me, E, inúmero, prolixo, vou descendo Até passar por todos e perder-me.
Reconheço hoje que falhei, só pasmo, às vezes, de não ter previsto que falharia. Que havia em mim que prognosticasse um triunfo? Eu não tinha a força cega dos vencedores ou a visão certa dos loucos... Era lúcido e triste como um dia frio. Tenho elementos espirituais de boémio, desses que deixam a vida ir como uma coisa que se escapa das mãos e a tal hora em que o gesto de a obter dorme na mera ideia de fazê-lo. Mas não tive a compensação exterior do espírito boémio — o descuidado fácil das emoções imediatas e abandonadas. Nunca fui mais que um boémio isolado, o que é um absurdo; ou um boémio místico, o que é uma coisa impossível. Certas horas-intervalos que tenho vivido, horas perante a natureza, esculpidas na ternura do isolamento, ficar-me-ão para sempre como medalhas. Nesses momentos esqueci todos os meus propósitos de vida, todas as minhas direcções desejadas. Gozei não ser nada com uma plenitude de bonança espiritual, caindo no regaço azul das minhas aspirações. Não gozei nunca, talvez, uma hora indelével, isenta de um fundo espiritual de falência e de desânimo. Em todas as minhas horas libertas uma dor dormia, floria vagamente, por detrás dos muros da minha consciência, em outros quintais, mas o aroma e a própria cor dessas flores tristes atravessavam intuitivamente os muros, e o lado de lá deles, onde floriam as rosas, nunca deixaram de ser, no mistério confuso do meu ser, um lado de cá — esbatido na minha sonolência de viver.(...) Sei que falhei. Gozo a volúpia indeterminada da falência como quem dá um apreço exausto a uma febre que o enclausura.
Por menos que eu faça, respiro, por menos que aja, movo-me. E, assim, conseguindo exacerbar a minha sensibilidade pelo isolamento, consegui que os factos mínimos, que antes mesmo a mim nada fariam, me ferissem como catástrofes. Errei o método de fuga. Fugi, por um rodeio incómodo, para o mesmo lugar onde estava, com o cansaço da viagem sobre o horror de viver ali. Nunca encarei o suicídio como uma solução, porque eu odeio a vida por amor a ela. Levei tempo a convencer-me deste lamentável equívoco em que vivo comigo. Convencido dele, fiquei desgostoso, o que sempre me acontece quando me convenço de qualquer coisa, porque o convencimento é em mim sempre a perda de uma ilusão. Matei a vontade a analisá-la. Quem me tornara a infância antes da análise, ainda que antes da vontade! Nos meus parques, sono morto, a sonolência dos tanques ao sol-alto, quando os rumores dos insectos chusmam na hora e me pesa viver, não como uma mágoa, mas como uma dor física por concluir. Palácios, muito longe, parques absortos, a estreiteza das áleas ao longe, a graça morta dos bancos de pedra para os que foram — pompas mortas, graça desfeita, ouropel perdido. Meu anseio que esqueço, quem me dera recuperar a mágoa com que te sonhei...
A liberdade é a possibilidade do isolamento. És livre se podes afastar-te dos homens, sem que te obrigue a procurá-los a necessidade de dinheiro, ou a necessidade gregária, ou o amor, ou a glória, ou a curiosidade, que no silêncio e na solidão não podem ter alimento. Se te é impossível viver só, nasceste escravo. Podes ter todas as grandezas do espírito, todas da alma: és um escravo nobre, ou um servo inteligente: não és livre. E não está contigo a tragédia, porque a tragédia de nasceres assim não é contigo, mas do Destino para si somente. (...) Fecho, cansado, as portas das minhas janelas, excluo o mundo e um momento tenho a liberdade. Amanhã voltarei a ser escravo; porém agora, só, sem necessidade de ninguém, receoso apenas que alguma voz ou presença venha interromper-me, tenho a minha pequena liberdade, os meus momentos de excelsis. Na cadeira, aonde me recosto, esqueço a vida que me oprime. Não me dói senão ter-me doído.
Não são as paredes reles do meu quarto vulgar, nem as secretárias velhas do escritório alheio, nem a pobreza das ruas intermédias da Baixa usual, tantas vezes por mim percorridas que já me parecem ter usurpado a fixidez da irreparabilidade, que formam no meu espírito a náusea, que nele é frequente, da quotidianidade enxovalhante da vida. São as pessoas que habitualmente me cercam, são as almas que, desconhecendo-me, todos os dias me conhecem com o convívio e a fala, que me põem na garganta do espírito o nó salivar do desgosto físico. E a sordidez monótona da sua vida, paralela à exterioridade da minha, é a sua consciência íntima de serem meus semelhantes, que me veste o traje de forçado, me dá a cela de penitenciário, me faz apócrifo e mendigo.
Há momentos em que cada pormenor do vulgar me interessa na sua existência própria, e eu tenho por tudo a afeição de saber ler tudo claramente. Então vejo — como Vieira disse que Sousa descrevia — o comum com singularidade, e sou poeta com aquela alma com que a crítica dos gregos formou idade intelectual da poesia. Mas também há momentos, e um é este que me oprime agora, em que me sinto mais a mim que às coisas externas, e tudo se me converte numa noite de chuva e lama, perdido na solidão de um apeadeiro de desvio, entre dois comboios de terceira classe. Sim, a minha virtude íntima de ser frequentemente objectivo, e assim me extraviar de pensar-me, sofre, como todas as virtudes, e até como todos os vícios, decréscimos de afirmação. Então pergunto a mim mesmo como é que me sobrevivo, como é que ouso ter a cobardia de estar aqui, entre esta gente, com esta igualdade certeira com eles, com esta conformação verdadeira com a ilusão de lixo de eles todos? Ocorrem-me com um brilho de farol distante todas as soluções com que a imaginação é mulher — o suicídio, a fuga, a renúncia, os grandes gestos da aristocracia da individualidade, o capa e espada das existências sem balcão.
Mas a Julieta ideal da realidade melhor fechou sobre o Romeu fictício do meu sangue a janela alta da entrevista literária. Ela obedece ao pai dela; ele obedece ao pai dele. Continua a rixa dos Montecchios e dos Capuletos; cai o pano sobre o que não se deu; e eu recolho a casa — àquele quarto onde é sórdida a dona de casa que não está lá, os filhos que raras vezes vejo, a gente do escritório que só verei amanhã — com a gola de um casaco de empregado do comércio erguida sem estranhezas sobre o pescoço de um poeta, com as botas compradas sempre na mesma casa evitando inconscientemente os charcos da chuva fria, e um pouco preocupado, misturadamente, de me ter esquecido sempre do guarda-chuva e da dignidade da alma...
Fim
Meteu o revólver na boca e estremeceu ao senti-lo frio contra o céu da boca. Mas lembrou-se, não sem prazer, que assim se tinha suicidado Antero de Quental. Tirou o revólver e manteve-o na mão, descaída esta sobre a colcha, ao longo da perna.Passaram assim por ele instantes sem tempo, de vida oca e neutra. Acordado para si, reparou de repente que o sol cessara, que tudo era cor de cinza, remoto, alheio, sem paladar para a vista. Veio-lhe pela alma dentro o sentimento da inevitabilidade, da necessidade da morte. Era como se ela estivesse chegando, numa hora, como um comboio, e ele simplesmente à espera. Uma última coisa qualquer caira-lhe da alma - já nem era lúcido. Parára-lhe o saber-se...Tornou a meter o revólver na boca. D'esta vez sentiu o frio do cano d'encontro o palato como quem sente uma coisa que não é nada, um pouco da cara d'encontro à mão. A apatia era absoluta. Tornara-se outro. Era a morte já.
Faltava o gesto último. Custou-lhe por ser simplesmente um gesto. Tudo isto passou n’um minuto cheio de cinza de vida. Pouco a pouco ela foi morrendo em si. Com o último ver dos olhos semicerrados viu só em torno a si uma bruma de vida… Tudo era indeciso e sem fim.
Fechou os olhos e puxou o gatilho…
Estou cansado, tenho de tentar descansar e dormir, senão estou perdido em todos os aspectos. Que esforço manter-se uma pessoa viva. Erguer um monumento não exige que se gaste tanta força.
Entre muitas outras coisas, tu eras para mim uma janela através da qual podia ver as ruas. Sozinho não o conseguia fazer.
A nós ligam-nos o nosso passado e o nosso futuro. Passamos quase todo o nosso tempo livre e também quanto do nosso tempo de trabalho a deixá-los subir e descer na balança. O que o futuro excede em dimensão, substitui o passado em peso, e no fim não se distinguem os dois, a meninice torna-se clara mais tarde, tal como é o futuro, e o fim do futuro já é de facto vivido em todos os nossos suspiros e assim se torna passado. Assim quase se fecha este círculo em cujo rebordo andamos. Bem, este círculo pertence-nos de facto, mas só nos pertence enquanto nos mantivermos nele; se nos afastarmos para o lado uma vez que seja, por distracção, por esquecimento, por susto, por espanto, por cansaço, eis que já o perdemos no espaço; até agora tínhamos tido o nariz metido na corrente do tempo, agora retrocedemos, ex-nadadores, caminhantes actuais, e estamos perdidos. Estamos do lado de fora da lei, ninguém sabe disso, mas todos nos tratam de acordo com isso.
Eu não consigo imaginar uma maior felicidade que aquela que sinto ao estar contigo durante todo o tempo, sem interrupção, infinitamente, mesmo que sinta que aqui neste mundo não existe nenhum lugar sem perturbações para o nosso amor, tanto aqui na aldeia como em qualquer outro sítio; e eu sonho com um túmulo, profundo e estreito, onde podemos apertar-nos um ao outro com os nossos braços como se fossem ganchos, e eu esconderia o meu rosto em ti e tu esconderias o teu rosto em mim, e ninguém jamais nos iria ver nunca mais.
Este dever inevitável de me observar a mim mesmo: se outra pessoa me estiver a observar, é natural que eu também tenha de me observar; se ninguém o faz, observo-me ainda mais de perto.
Sinto de vez em quando uma infelicidade que quase me deslumbra, e ao mesmo tempo estou convencido da sua necessidade e da existência de um alvo em direcção ao qual nos encaminhamos ao suportar toda a espécie de infelicidade.
O medo da loucura. Ver a loucura em todas as emoções que se esforçam sempre para a frente e que nos fazem esquecer de tudo o resto. Que é, então, a não loucura? A não loucura é ficar parado, de pé, como um mendigo à soleira da porta, ficar ao lado da entrada, apodrecer e cair.
Ódio da introspeção ativa. Explicações da nossa alma, tais como: ontem eu estava assim e assado, por esta ou por aquela razão; hoje estou assim e assado, por qualquer outra razão. Não é verdade, nem por esta razão nem por aquela razão, e por isso também nem assim nem assado. Enfrentar-se a si próprio calmamente, sem precipitações, viver como se tem de viver, não andar à caça do próprio rabo como o cão.(...) Encontrei um livro nas minhas mãos, que tinha estado a ler. Deitei-o fora e levantei-me de um salto..
Hoje à tarde a dor causada pela minha solidão penetrou-me tão profunda e intensamente que eu tive consciência de que a força que obtenho ao escrever estas coisas se gasta assim, força que não compensava destinar a este fim.
Tudo é fantasia, a família, o escritório, os amigos, a rua, tudo fantasia, mais longe ou mais perto, a mulher; mas a verdade que está mais perto é só esta, é bater com a cabeça na parede de uma cela sem janelas e sem portas.
Um homem é dotado de livre arbítrio e de três maneiras: em primeiro lugar, era livre quando quis esta vida; agora não pode evidentemente rescindi-la, pois ele não é o que a queria outrora, excepto na medida em que completa a sua vontade de outrora, vivendo. Em segundo lugar, é livre pelo facto de poder escolher o caminho desta vida e a maneira de o percorrer. Em terceiro lugar, é livre pelo facto de na qualidade daquele que vier a ser de novo um dia, ter a vontade de se deixar ir custe o que custar através da vida e de chegar assim a ele próprio e isso por um caminho que pode sem dúvida escolher, mas que, em todo o caso, forma um labirinto tão complicado que toca nos menores recantos desta vida. São esses os três aspectos do livre arbítrio que, por se oferecerem todos ao mesmo tempo formam apenas um e de tal modo que não há lugar para um arbítrio, quer seja livre ou servo.
Nos jornais, em conversas, no escritório, a impetuosidade da linguagem leva por vezes uma pessoa a perder-se, daí a esperança, que salta da fraqueza temporária, de uma repentina e mais forte iluminação mesmo no momento seguinte, ou de uma forte confiança em si próprio, ou mero desleixo, ou uma impressão forte e actual de que uma pessoa quer a todo o custo descarregar no futuro, portanto a opinião de que o verdadeiro entusiasmo no presente justifica toda e qualquer confusão futura, ou o deleite nas frases que se elevam no meio com um ou dois empurrões e que a pouco e pouco abrem completamente a boca mesmo que depois a deixem fechar com demasiada rapidez e tortuosidade, ou a leve possibilidade de um juízo claro e decisivo, ou o esforço para dar mais fluência ao discurso que realmente já acabou, ou o desejo de abandonar à pressa o tema se assim tiver de ser, de rastos, ou o desespero que tenta encontrar uma saída para a sua pesada respiração, ou o anseio por uma luz sem sombra — tudo isto pode levar uma pessoa a perder-se em frases como: «O livro que acabei agora mesmo é o mais belo que jamais li» ou «é tão belo, como nunca tinha lido outro assim.
A fraqueza fundamental do homem não é nada que ele não possa vencer, desde que não possa aproveitar com a vitória. A juventude vence tudo, a impostura, a astúcia mais dissimulada, mas não há ninguém que possa deter no voo a vitória, torná-la viva, porque então a juventude deixou de existir. A velhice não ousa tocar na vitória e a nova juventude atormentada pelo novo ataque que se desencadeia imediatamente, deseja a sua própria vitória. É assim que o Diabo sem cessar vencido, nunca é aniquilado
Tudo é engano: buscar o mínimo de ilusão, permanecer no nível usual, ou buscar o máximo. No primeiro caso, engana-se o bem, na medida em que se deseja tornar fácil demais a sua conquista; e o mal, na medida em que é colocado em condições de luta excessivamente desfavoráveis. No segundo caso, o bem é enganado na medida em que não se luta para alcançá-lo, nem mesmo naquilo que é terreno. No terceiro caso, engana-se o bem na medida em que a esperança é torná-lo impotente na sua máxima intensidade. Seria preferível, nisto tudo, o segundo caso, pois ainda assim engana-se o bem e não o mal; neste caso, pelo menos em aparência.
A impaciência é um pecado mortal...Foi por causa da impaciência que o homem foi expulso do paraíso e por causa dela não volta para lá.
Todas as falhas humanas são impaciência, um rompimento prematuro do metódico: um suporte aparente da coisa aparente.
Ou
Todos os erros humanos são fruto da impaciência. Interrupção prematura de um processo ordenado, obstáculo artificial levantado em redor de uma realidade artificial.
Ou
Todos as defeitos humanos são impaciência, uma rutura prematura do metódico: um aparente delimitar da coisa aparente.
A pluralidade de traduções é também uma fonte de impaciência...
O homem é prisioneiro de uma estrutura social, que lhe formata o modo de pensar, e prisioneiro do seu próprio pensamento.Bomba metafísica? Obscurantismo conservador? Misoginia?
De um determinado ponto em diante, não há mais retorno. Esse é o ponto a ser alcançado.
Compreender a felicidade de que o chão sobre o qual está não pode ser maior do que os dois pés que o cobrem.
O caminho verdadeiro vai por uma corda que não está estendida na vertical, mas bem próximo do chão. Parece ser pensada mais para fazer tropeçar, do que para ser percorrida.
Como uma estrada no outono: mal acabou de ser varrida e já se cobre novamente de folhas secas.
Uma gaiola foi procurar um passarinho.
Sem impaciência.
Sem curiosidade,
Sem atenção
Vejo-o crochet que com ambas as mãos combinadas
Fazes.
Vejo-o do alto de um monte inexistente,
Malha após malha formando pano...
Qual é a razão que te dá entretenimento
Às mãos e à alma essa coisa rala
Por onde se pode meter um fósforo apagado?
Mas também
Qual é a razão que assiste a eu te criticar
Nenhuma.
Eu também tenho um crochet.
Data de desde quando comecei a pensar...
Malhas sobre malhas formando um todo sem todo
Um pano que não sei se é para um vestido ou p'ra nada
Uma alma que não sei se é para sentir ou viver...
Olho-te com tanta atenção
Que já nem dou por ti...
Este «livro de pobre», este evangelho sem mensagem, esta espécie de estertor ontológico de uma voz que experimenta dizer-se, de uma existência que experimenta, também, existir. Claro que sabemos que por detrás deste grito abafado, desta repetida e interminável afirmação de uma impotência de ser, a da existência cinzenta incarnada por Bernardo Soares, existe o olhar frio, de uma neutralidade e de uma lucidez quase perversa que são património de Fernando Pessoa. Mas aqui, o jogador de xadrez indiferente, como se assumiu sob a máscara de Ricardo Reis, não joga outra coisa senão o seu xeque-mate existencial absoluto, a sua realidade humana sem nexo e sem verdadeira ligação aos outros, vida puramente sonhada, voluntariamente distanciada por essa espécie de sorriso vindo de dentro do desespero que faz com que certas páginas do Livro do Desassossego sejam, ao mesmo tempo, insuportáveis e estranhamente libertadoras
Doem-me a cabeça e o universo. As dores físicas, mais nitidamente dores que as morais, desenvolvem, por um reflexo no espírito, tragédias incontidas nelas. Trazem uma impaciência de tudo que, como é de tudo, não exclui nenhuma das estrelas.
E assim sou, fútil e sensível, capaz de impulsos violentos e absorventes, maus e bons, nobres e vis, mas nunca de um sentimento que subsista, nunca de uma emoção que continue, e entre para a substância da alma. Tudo em mim é a tendência para ser a seguir outra coisa: uma impaciência da alma consigo mesma, como com uma criança inoportuna; um desassossego sempre crescente e sempre igual. Tudo me interessa e nada me prende...
Não leio. Horas intérminas, perdido
De tudo, salvo de uma dolorosa
Consciência vazia de mim próprio,
Como um frio numa noite intensa,
Em frente ao livro aberto vivo e morro...
Nada... E a impaciência fria e dolorosa
De ler p'ra não sonhar e ter perdido
O sonho! Assim como um (...) engenho
Que, abandonado, em vão trabalha ainda,
Sem nexo, sem propósito, eu môo
E remôo a ilusão do pensamento...
E hora a hora na minha estéril alma
Mais fundo o abismo entre meu ser e mim
Se abre, e nesse (...) abismo não há nada..
O nosso amor-próprio suporta com mais impaciência a condenação dos nossos gostos do que a das nossas opiniões.
Não: a vida de Pessoa é na verdade a vida ideal do poeta; Pessoa é, como homem, a imagem da imobilidade. Ninguém quis ser menos aparente; toda a sua vida se envolve, não direi, porque detesto romantizar, de mistério, mas sim de discreto pudor, de amor ao silêncio e à contemplação.
Foi, decerto, uma boa relação neurótica, com algo de maníaco, como são os amores que, por norma, duram toda uma vida: exactamente o contrário de certas paixões libertadoras, arrebatadoras e todas baseadas na relação carnal. Não: esta relação foi, sem o ser, um matrimónio e, como tal, nutriu-se de hábitos, de decoro, de dedicação e de mesquinhez. Não arrebatou nada. Simplesmente esgotou-se na pura ideia ou na pura estrutura matrimonial, prescindindo do tálamo. Mas, no fim de contas, o que tem o sexo a ver com isto? Para Pessoa foi isto a essência do amor, não a sua realização no plano pragmático, tal como o ortónimo a teorizara já em poesia:" O amor é que é essencial/ O sexo é só um acidente. / Pode ser igual/ Ou diferente. / O homem não é um animal: / É uma carne inteligente, / Embora às vezes doente. "
o amor platónico desencadeia neuroses e o contacto físico é libertador?
Quais as razões psicológicas da inaptidão para o amor concreto e real – anímico e físico –, tão dolorosamente manifestada por Fernando Pessoa? Já vimos que o poeta foi um idealista e um grande romântico. E já observámos o seu lado-Álvaro de Campos, isto é, uma certa pulsão homossexual, transparente nalgumas das Odes do «engenheiro naval» e confessada em página íntima, onde diz: «sou um temperamento feminino com uma inteligência masculina»; e «É uma inversão sexual frustre. Pára no espírito». Junto de Ophélia, o problema pode ter estado prestes a resolver-se, apesar das interferências (episódicas) de Álvaro de Campos, isto é, do seu demónio interior, talvez menos antimulher do que anticasamento.
Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio. Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas. (Enlacemos as mãos.) Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos. Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio. Mais vale saber passar silenciosamente E sem desassosegos grandes.
Sim, sobretudo sem desassossego...Está um dia tão bonito, sentiu uma vontade súbita de ir passear à beira-rio e sorrir ...Teve saudades de coimbra, aqui existem rios, mas não há beira-rio: só beira-mar e beira-mágoa.
( Eis um tema interessante: alcobaça tem rios, mas não tem beira-rio .Não se vai dispersar: neurose até combina com impaciência e com desassossego, agora a beira-rio conduz inevitavelmente à beira-mágoa e não quer pensar nisso...)
Agora pergunto; como é que alguém tão empenhado em ser ninguém, tão apostado não só em recusar as tais «realidades fortes da vida» mas também em negar, muito mais por dentro, a própria vida como realidade, como é que deste aspirante a nenhum, capitão do nada, general em nenhures, não hão-de interessar os óculos, o bigode, a gravata ou o laço, o chapéu, as polainas, a mesa do café aonde se sentava (ou não se sentava)?
O erotismo e a presunção de david mourão ferreira são incompatíveis com o ascetismo misógino e discreto de pessoa: nunca se compreenderam pois viveram em mundos absolutamente antagónicos e incomunicáveis, como poetas,mas,sobretudo, como homens...david mourão ferreira nunca deixou de ser unicamente um homem...E isso é tão pouco.
Não foi um mistificador, nem foi contraditório. Foi complexo, da pior das complexidades – a sensação do vácuo dentro e fora...Não foi um poeta do Nada, mas, pelo contrário, poeta do excessivamente tudo, do excessivamente virtual, de toda a consciência trágica de probabilidade, que a crença no Destino não exclui.
Para Fernando Pessoa, recordar não é reviver, é apenas verificar com dor que fomos outra coisa cuja realidade essencial não nos é permitido recuperar. Vimos da sombra e vamos para a sombra. Só o presente é nosso, mas que é o presente senão a linha ideal que separa o passado do futuro? Assim toda a vida é fragmentária, a personalidade una é uma ilusão, não podemos apreender em nós uma constante que nos identifique. O sentimento heraclitiano da transitoriedade das coisas conduz à negação do eu. Viver no tempo é depararmo-nos com o vazio de nós próprios: «Quem me dirá quem sou?»
Fernando Pessoa sabia perfeitamente que, apesar do génio de um ou outro dos seus amigos e companheiros... a primeira metade do século XX, em poesia escrita em português, seria sua, para lá da grandeza que lhe daria um lugar muito próximo de Camões na história literária. Eu ainda conheci muitas pessoas da geração dele, dos grandes e dos menos grandes, e pude por mim próprio verificar quanto se curvavam ou tinham curvado à sua indisputada superioridade intelectual, do mesmo passo que se defendiam com unhas e dentes de serem devorados ou transformados em "heterónimos"...
Górgias, antigo Górgias, que dizias Que se alguém algum dia compreendesse, Atingisse a verdade, não podia Comunicá-la aos outros— já entendo o
teu profundo e certo pensamento Que ora não compreendia. Tenho em mim A verdade sentida e compreendida, Mas fechada em si mesma, que não posso
Nem pensá-la. Senti-la ninguém pode. Cada homem tem em si — eu chego a crer E tu Platão sonhaste-o — a verdade, Sem consciência de a possuir.Pois o inanalisado sentimento E inanalisável, de viver, De existir, da existência, e do existente Não tem em si verdade? Pois o Ser Mesmo na inconsciência não é Ser...Mas inconsciência como? Nada sei. Eu quero desdobrar em conhecidos A unidade da verdade que eu Possuo dentro em mim e certa sinto, E ela não pode assim ser desdobrada. Negro horror d'alma! Ah como estou só! No isolamento negro de quem pensa E além naquele de quem sabe E nada dizer pode! Como eu desejaria bem cerrar Os olhos — sem morrer, sem descansar, Nem sei como — ao mistério e à verdade, E a mim mesmo — e não deixar de ser. Morrer talvez, morrer, mas sem na morte Encontrar o mistério face a face. Só, tão só! Olho em torno e vejo o riso, As lágrimas e não percebo Qual a essência e disso tudo. Sinto-me alheio pelo pensamento, Pela compreensão e incompreensão. Ando como num sonho. Compungido Pelo terror da morte inevitável E pelo mal da vida que me faz Sentir, por existir, aquele horror - Atormentado sempre.
(Cai de joelhos ante a janela, a cabeça sobre os braços, olhando distraidamente para longe)
Quase nada (experimento o céu de negro que há de norte a sul nunca me conforma (prometo-me a mim mesma mais de céu azul) a insatisfação (temo que haja pouco pra me contentar) nunca me abandona (mas nada me impede de tentar)
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