Não é neccessário vivermos ao lado de alguém para nos sentirmos ligados a esse alguém mais do que a qualquer outra pessoa...

sábado, 28 de maio de 2016

Cartas...

Carta para a avó josefa...

(...)Foste bela, dizes, e bem vejo que és inteligente. Por que foi então que te roubaram o mundo? Quem to roubou? Mas disto talvez entenda eu, e dir-te-ia o como, o porquê e o quando se soubesse escolher das minhas inumeráveis palavras as que tu pudesses compreender. Já não vale a pena. O mundo continuará sem ti — e sem mim. Não teremos dito um ao outro o que mais importava. Não teremos, realmente? Eu não te terei dado, porque as minhas palavras não são as tuas, o mundo que te era devido. Fico com esta culpa de que me não acusas — e isso ainda é pior. Mas porquê, avó, por que te sentas tu na soleira da tua porta, aberta para a noite estrelada e imensa, para o céu de que nada sabes e por onde nunca viajarás, para o silêncio dos campos e das árvores assombradas, e dizes, com a tranquila serenidade dos teus noventa anos e o fogo da tua adolescência nunca perdida: «O mundo é tão bonito, e eu tenho tanta pena de morrer!»

É isto que eu não entendo — mas a culpa não é tua.


Uma carta ...

A grande facilidade de escrever cartas deve ter introduzido no mundo - do ponto de vista puramente teórico - uma terrível desintegração das almas. É, de facto, uma relação com fantasmas, não só com o fantasma do destinatário, mas também com o nosso próprio fantasma, o qual cresce entre as linhas da carta que se escreve e, sobretudo, numa sequência de cartas onde uma corrobora a outra e a refere como testemunha. Como poderá ter surgido a ideia de que as pessoas conseguem comunicar umas com as outras através de cartas? Pode-se pensar numa pessoa distante, pode-se ir ter com uma pessoa que esteja próxima - tudo o mais está para além da força humana. Escrever cartas significa despirmo-nos diante dos fantasmas, e eles aguardam avidamente esse gesto. Beijos escritos não chegam ao destino, os fantasmas bebem-nos pelo caminho. É graças a este alimento abundante que eles se multiplicam enormemente. A humanidade sente-o, e luta contra ele; e para tentar eliminar o mais possível o elemento fantástico entre as pessoas e criar uma comunicação natural, restaurando a paz das almas, inventou o caminho-de-ferro, o automóvel, o aeroplano. Mas isso já não serve de nada, pois estas são, evidentemente, invenções feitas no momento da queda. O adversário é de tal maneira mais calmo e mais forte: depois do serviço postal, ele inventou o telégrafo, o telefone, a telegrafia sem fios. Os fantasmas não morrerão à fome, mas nós, nós pereceremos.

Para ti que nunca me conheceste.

Quero falar a sós contigo, dizer-te tudo pela primeira vez; hás de ficar a saber toda a minha vida que sempre foi tua e acerca da qual jamais soubeste. Contudo apenas hás de ficar a saber do meu segredo quando estiver morta, quando já não tiveres de me responder, quando chegar verdadeiramente ao fim aquilo que agora me estremece pés e mãos, ora me afrontando ora me enregelando. Caso fique viva, então rasgarei esta carta e guardarei silêncio como sempre fiz. Caso a tenhas em teu poder, ficas então a saber que é uma morta quem te conta aqui a sua vida, que foi a tua desde a primeira até à sua última hora (…).


Uma opinião sobre esta adaptação para teatro - A versão em cartaz é extremamente reverente ao original de Zweig, a ponto de que é difícil mesmo dizer que se trata de uma adaptação, já que temos um texto de um outro formato, um conto, encenado no palco quase que na totalidade. A encenação não interfere na carta da mulher desconhecida e quase não subtrai excertos. Ao contrário, o texto é interpretado como um longo monólogo, e todo o trabalho teatral concentra-se em ilustrá-lo, em buscar soluções cénicas e visuais para um elemento externo ao teatro, estrangeiro. O espetáculo sofre com essa escolha, como se houvesse um anteparo dramático entre palco e público. Sandra Barata Belo, actriz que interpreta a mulher, além de responsável pela encenação e pela dramaturgia, em parceria com Patrícia André, acaba por interpretar uma carta durante todo o tempo , e não uma personagem; estamos diante de uma leitura dramática da vida, e não frente a ela própria. Essa interpretação da carta – relembramos, escrita num formato não-teatral – gera um espetáculo construído por não-cenas, já que todo o tempo a mulher conta à plateia o que está a acontecer no palco, como se sentiu, mas raramente a peça consegue lograr a coexistência dessa memória contada com a força do facto próprio. A sensação é de estar diante de algo ainda em bruto, uma experimentação rumo a um espectáculo no qual a relação com o original estará mais bem resolvida – e não de um espectáculo final.(...) O espectáculo conseguiu reconstruir a dimensão trágica do amor, tão cara a Zweig. Há no palco, o tempo todo, a noção de equivalência (etimológica inclusive) entre a paixão e o patético, e, mesmo as imperfeições da encenação,podem ser vistas à luz de um momento de desespero da protagonista. O espetáculo respeita a intensidade febril do escritor austríaco, e nessa proximidade da morte e das lembranças que tal momento traz, também se perdoa algum nível de caos na dramaturgia. O importante é que, no fim, fica o amor, tido como sublime, a ecoar no vazio e no silêncio do palco escuro.



Todas as tardes me comprazia a imaginar aquela carta, julgava lê-la,recitava para mim mesmo cada frase. Parava de repente,assustado. Compreendia que, se havia de receber uma carta de Gilberte, ela não poderia, fosse como fosse, ser aquela, visto que era eu que acabava de a redigir. E logo me esforçava por desviar o pensamento das palavras que gostaria que ela me escrevesse, com medo de que, ao enunciá-las , excluísse justamente aquelas - as mais caras, as mais desejadas- do campo das realizações possíveis. Mesmo que, no caso de, por inverosímil coincidência, a carta que Gilberte me enviasse ser justamente a que havia inventado, eu não teria, ao reconhecer nela a minha obra, a impressão de receber algo que não vinha de mim, algo de real, de novo, uma felicidade exterior ao meu espírito, independente da minha vontade, verdadeiramente dada pelo amor.

Nenhuma carta deve estar sem resposta mais de 5 dias, sendo nacional, ou 10 dias sendo estrangeira. Uma demora maior obriga legitimamente a apresentar uma desculpa, em geral falsa, e que, ao contrário do que em geral julgam os que pedem desculpa, é quase sempre tida por falsa, mesmo que seja verdadeira. Ou a carta não tem resposta, e não se lhe responde; ou tem resposta, e se lhe responde logo; ou não pode ter resposta logo, e então escreve-se dizendo isso. A fama de ser atencioso e cortês vale mais que uma estampilha. É uma publicidade barata.


Tenho tido, é certo, várias pequenas causas a tomarem-me muito pequenos bocados de tempo. Mas não é por isto que eu lhe não tenho escrito, como eu próprio desejaria. Em primeiro lugar, tenho o espírito feito em trapos por uma série de grandes apoquentações que me atacaram, e em parte atacam, simultaneamente. Você sabe bem qual o efeito desorientador de uma acumulação de pequenas arrelias. Imagine qual será o efeito de uma acumulação de grandes apoquentações. Uma grande apoquentação , só uma , não chega, muitas vezes, a valer, para o efeito de nos dispersar e banir de nós, sete ou oito ralações mínimas. Mas olhe que uma junção de arrelias grandes opera muito mais desastradamente sobre nós. (…) Acrescente-se-lhe o grande sofrimento que você — sem querer, é claro — me causou com a sua terrível crise. Não sei se você avalia bem até que ponto eu sou seu amigo, a que grau eu lhe sou dedicado e afeiçoado. O facto é que a sua grande crise foi uma grande crise minha, e eu sentia, como já lhe disse não só pelas suas cartas, como, já de antes, telegraficamente, pela « projecção astral» (como eles dizem) do seu sofrimento. Acrescente a estas duas graves razões para eu me apoquentar esta outra — que, à parte tudo aquilo, estou atravessando agora uma das minhas graves crises mentais. E imagine você que, para isto não ser tudo, essa crise mental é de várias espécies ao mesmo tempo, e por diversas razões. Sobreponha , agora, a tudo uma pressão de trabalho-não de um género,mas de várias espécies. Você calcula bem o que sido o resultado de tudo isto.Tenho desleixado tudo...Vão sempre tarde as minhas cartas -e assim com tudo,numa força absurda de perder tempo, de navegar pela costa do inútil, e outras metafrases análogas-que todas são poucas para o que hoje vivo. Peço-lhe,meu querido Sá-Carneiro, milhares de desculpas

Lembrei-me desta carta por causa do Palavrário: arrelias, apoquentações e ralações são vocábulos que nos transportam para um mundo infinitamente superior ao das situações "chatas". Hoje tudo anda "chateado" e tem " chatices complicadas", Lol.. Não suporto as novas formas de percepcionar / verbalizar a vida e os afetos... Um momento depressivo, incompreensível, ser "chato"ainda se tolera... Agora, um momento inefável, inebriante, estimulante intelectualmente, ser reduzido a "lol" é inadmissível...Este último esteriotipo, ainda por cima importado, denota se não atraso, pelo menos uma enorme pobreza mental e uma terrífica falta de criatividade. Dizer "lol" , depois dos 15/16 anos, deveria ser considerado , não inconstitucional, mas, pelo menos, inconstitucionol e justa causa para despedimento de uma qualquer instituição que se pretenda credível. Prefiro arreliar-me, apoquentar-me ou simplesmente aborrecer-me e não manifesto o meu gáudio com "loles"... Hoje parece que é "fashion", "in", "very interesting" dizer loles , fo..-se e similares...Sei que estou fora de moda, mas continuo a apreciar muito mais quem se inebria ou se apoquenta...Talvez por isso, não escrevo cartas... quem as leria com prazer?

Meu querido Sá-Carneiro:
Escrevo-lhe hoje por uma necessidade sentimental — uma ânsia aflita de falar consigo. Como de aqui se depreende, eu nada tenho a dizer-lhe. Só isto — que estou hoje no fundo de uma depressão sem fundo. O absurdo da frase falará por mim.
Estou num daqueles dias em que nunca tive futuro. Há só um presente imóvel com um muro de angústia em torno. A margem de lá do rio nunca, enquanto é a de lá, é a de cá, e é esta a razão intima de todo o meu sofrimento. Há barcos para muitos portos, mas nenhum para a vida não doer, nem há desembarque onde se esqueça. Tudo isto aconteceu há muito tempo, mas a minha mágoa é mais antiga. Em dias da alma como hoje eu sinto bem, em toda a consciência do meu corpo, que sou a criança triste em quem a vida bateu. Puseram-me a um canto de onde se ouve brincar. Sinto nas mãos o brinquedo partido que me deram por uma ironia de lata. Hoje, dia catorze de Marco, às nove horas e dez da noite, a minha vida sabe a valer isto. No jardim que entrevejo pelas janelas caladas do meu sequestro, atiraram com todos os balouços para cima dos ramos de onde pendem; estão enrolados muito alto, e assim nem a ideia de mim fugido pode, na minha imaginação, ter balouços para esquecer a hora. Pouco mais ou menos isto, mas sem estilo, é o meu estado de alma neste momento. Como à veladora do «Marinheiro» ardem-me os olhos, de ter pensado em chorar. Dói-me a vida aos poucos, a goles, por interstícios. Tudo isto está impresso em tipo muito pequeno num livro com a brochura a descoser-se.
Se eu não escrevesse para si, teria que lhe jurar que esta carta é sincera, e que as cousas de nexo histérico que aí vão saíram espontâneas do que sinto. Mas você sentirá bem que esta tragédia irrepresentável é de uma realidade de cabide ou de chávena — cheia de aqui e de agora, e passando-se na minha alma como o verde nas folhas.
Foi por isto que o Príncipe não reinou. Esta frase é inteiramente absurda. Mas neste momento sinto que as frases absurdas dão uma grande vontade de chorar. Pode ser que se não deitar hoje esta carta no correio amanhã, relendo-a, me demore a copiá-la à máquina, para inserir frases e esgares dela no «Livro do Desassossego». Mas isso nada roubará à sinceridade com que a escrevo, nem à dolorosa inevitabilidade com que a sinto.
As últimas notícias são estas. Há também o estado de guerra com a Alemanha, mas já antes disso a dor fazia sofrer. Do outro lado da Vida, isto deve ser a legenda duma caricatura casual.
Isto não é bem a loucura, mas a loucura deve dar um abandono ao com que se sofre, um gozo astucioso dos solavancos da alma, não muito diferentes destes.
De que cor será sentir?
Milhares de abraços do seu, sempre muito seu
Fernando Pessoa
P. S. — Escrevi esta carta de um jacto. Relendo-a, vejo que, decididamente, a copiarei amanhã, antes de lha mandar. Poucas vezes tenho tão completamente escrito o meu psiquismo, com todas as suas atitudes sentimentais e intelectuais, com toda a sua histeroneurastenia fundamental, com todas aquelas intersecções e esquinas na consciência de si próprio que dele são tão características...
Você acha-me razão, não é verdade?


Concordo absolutamente consigo em que não foi feliz a estreia, que de mim mesmo fiz com um livro da natureza de «Mensagem». Sou, de facto, um nacionalista místico, um sebastianista racional. Mas sou, à parte isso, e até em contradição com isso, muitas outras coisas. E essas coisas, pela mesma natureza do livro, a «Mensagem» não as inclui.
Comecei por esse livro as minhas publicações pela simples razão de que foi o primeiro livro que consegui, não sei porquê, ter organizado e pronto. Como estava pronto, incitaram-me a que o publicasse: acedi. Nem o fiz, devo dizer, com os olhos postos no prémio possível do Secretariado, embora nisso não houvesse pecado intelectual de maior.(...) Quando às vezes pensava na ordem de uma futura publicação de obras minhas, nunca um livro do género de «Mensagem» figurava em número um. Hesitava entre se deveria começar por um livro de versos grande — um livro de umas 350 páginas — , englobando as várias subpersonalidades de Fernando Pessoa ele mesmo, ou se deveria abrir com uma novela policiária, que ainda não consegui completar.
Concordo consigo, disse, em que não foi feliz a estreia, que de mim mesmo fiz, com a publicação de «Mensagem». Mas concordo com os factos que foi a melhor estreia que eu poderia fazer. Precisamente porque essa faceta — em certo modo secundária — da minha personalidade não tinha nunca sido suficientemente manifestada nas minhas colaborações em revistas (excepto no caso do Mar Português parte deste mesmo livro) — precisamente por isso convinha que ela aparecesse, e que aparecesse agora. Coincidiu, sem que eu o planeasse ou o premeditasse (sou incapaz de premeditação prática), com um dos momentos críticos (no sentido original da palavra) da remodelação do subconsciente nacional. O que fiz por acaso e se completou por conversa, fora exactamente talhado, com Esquadria e Compasso, pelo Grande Arquitecto.
(Interrompo. Não estou doido nem bêbado. Estou, porém, escrevendo directamente, tão depressa quanto a máquina mo permite, e vou-me servindo das expressões que me ocorrem, sem olhar a que literatura haja nelas. Suponha — e fará bem em supor, porque é verdade — que estou simplesmente a falar consigo).



Meu querido Sá-Carneiro:
Como lhe escrevo esta carta, antes de tudo, por ter a necessidade psíquica absoluta de lha escrever, V. desculpará que eu deixe para o fim a resposta à sua carta e postal hoje recebidos, e entre imediatamente naquilo que ficará o assunto desta carta.
Estou outra vez presa de todas as crises imagináveis, mas agora o assalto é total. Numa coincidência trágica, desabaram sobre mim crises de várias ordens. Estou psiquicamente cercado.
Renasceu a minha crise intelectual, aquela de que lhe falei mas agora renasceu mais complicada, porque, à parte ter renascido nas condições antigas, novos factores vieram emaranhá-la de todo. Estou por isso num desvairamento e numa angústia intelectuais que V. mal imagina. Não estou senhor da lucidez suficiente para lhe contar as cousas. Mas, como tenho necessidade de lhas contar, irei explicando conforme posso.
A primeira parte da crise intelectual, já V. sabe o que é; a que apareceu agora deriva da circunstância de eu ter tomado conhecimento com as doutrinas teosóficas. O modo como as conheci foi, como V. sabe, banalíssimo. Tive de traduzir livros teosóficos. Eu nada, absolutamente nada, conhecia do assunto. Agora, como é natural, conheço a essência do sistema. Abalou-me a um ponto que eu julgaria hoje impossível, tratando-se de qualquer sistema religioso. O carácter extraordinariamente vasto desta religião-filosofia; a noção de forca, de domínio, de conhecimento superior e extra-humano que ressumam as obras teosóficas, perturbaram-me muito. Cousa idêntica me acontecera há muito tempo com a leitura de um livro inglês sobre Os Ritos e os Mistérios dos Rosa-Cruz. A possibilidade de que ali, na Teosofia, esteja a verdade real me «hante». Não me julgue V. a caminho da loucura creio que não estou. Isto é uma crise grave de um espírito felizmente capaz de ter crises desta. Ora, se V. meditar que a Teosofia é um sistema ultracristão—no sentido de conter os princípios cristãos elevados a um ponto onde se fundem não sei em que além-Deus — e pensar no que há de fundamentalmente incompatível com o meu paganismo essencial, V. terá o primeiro elemento grave que se acrescentou à minha crise. Se, depois, reparar em que a Teosofia, porque admite todas as religiões, tem um carácter inteiramente parecido com o do paganismo, que admite no seu Panteão todos os deuses, V. terá o segundo elemento da minha grave crise de alma. A Teosofia apavora-me pelo seu mistério e pela sua grandeza ocultista, repugna-me pelo seu humanitarismo e apostolismo (V. compreende?) essenciais, atrai-me por se parecer tanto com um «paganismo transcendental» (é este o nome que eu dou ao modo de pensar a que havia chegado), repugna-me por se parecer tanto com o cristianismo, que não admito. E o horror e a atracção do abismo realizados no além-alma. Um pavor metafísico, meu querido Sá-Carneiro!
V. seguiu bem todo este labirinto intelectual? Pois bem. Repare que há outros dois elementos que ainda mais vêm complicar o assunto. Quero ver se consigo explicar-lhos lucidamente...





Meu querido Amigo, Neste enredo formidável de coisas trágicas e até picarescas, não sei desenvencilhar-me para lhe fixar certos detalhes. Olhe, guinchos e cambalhotas sempre - e sempre, afinal, a Estrela de encontrar pessoas que estão para me aturar. (…)Preparei tudo para a minha «morte». Escrevi-lhe uma última carta, a você, outra a meu Pai(…)Perdoe todos os sustos por que o fiz passar (venho de resto de enviar-lhe um telegrama a sossegá-lo) Você escreva. Ria-se: mas, no fundo, tenha muita pena - muita do seu, seu Mário de Sá-Carneiro.
Escreva imediatamente! Escreva.



E por quanto tempo aqui estarei? Ao Brasil, que amo, não pretendo voltar, porque é-me impossível sustentar lá uma família como a minha. A Portugal só quando for possível(...) No entanto, não creio que a América me prenda – com todo o heróico e devotado liberalismo autêntico que há por aqui muito mais do que oficialmente se faz saber, é outro mundo, ainda que um mundo, no meio em que vivemos, tão refinado como o europeu ou mesmo mais. E a nossa sensação será sempre a dos gregos que eram convidados a ensinar em Roma. Além de que ou isto aqui leva uma grande e clamorosa volta, ou teremos uma espécie de ditadura militar do «big-business», que tornará a vida impossível. Brincando, brincando, já começo a pensar em qual será o meu próximo país. Sonho com a Itália ou a Grécia – mas não dão emprego… Quem sabe se o Japão me dará. Pelo menos entretanto, os meus filhos aprendem o inglês que lhes facilitará a vida em qualquer parte.

Prezadíssimo Senhor,
Não há nada menos apropriado para tocar numa obra de arte do que palavras de crítica, que sempre resultam em mal-entendidos mais ou menos felizes. As coisas estão longe de ser todas tão tangíveis e dizívies quanto se nos pretenderia fazer crer; a maior parte dos acontecimentos é inexprimível e ocorre num espaço em que nenhuma palavra nunca pisou. Menos suscetíveis de expressão do que qualquer outra coisa são as obras de arte, — seres misteriosos cuja vida perdura, ao lado da nossa, efémera.
Depois de feito este reparo, dir-lhe-ei ainda que seus versos não possuem feição própria, somente acenos discretos e velados de personalidade.(...) Pergunta se os seus versos são bons. Pergunta-o a mim, depois de o ter perguntado a outras pessoas. Manda-os a periódicos, compara-os com outras poesias e inquieta-se quando suas tentativas são recusadas por um ou outro redator. Pois bem — usando da licença que me deu de aconselhá-lo — peço-lhe que deixe tudo isso. O senhor está a olhar para fora, e é justamente o que menos deveria fazer neste momento. Ninguém o pode aconselhar ou ajudar, — ninguém. Não há senão um caminho. Procure entrar em si mesmo. Investigue o motivo que o manda escrever; examine se estende as suas raízes pelos recantos mais profundos da sua alma; confesse a si mesmo: morreria, se lhe fosse vedado escrever? Isto acima de tudo: pergunte a si mesmo na hora mais tranquila de sua noite: "Sou mesmo forçado a escrever?” Escave dentro de si uma resposta profunda. Se for afirmativa, se puder contestar àquela pergunta severa por um forte e simples "sou", então construa a sua vida de acordo com esta necessidade. Sua vida, até em sua hora mais indiferente e anódina, deverá tornar-se o sinal e o testemunho de tal pressão. Aproxime-se então da natureza. Depois procure, como se fosse o primeiro homem, dizer o que vê, vive, ama e perde. Não escreva poesias de amor. Evite de início as formas usais e demasiado comuns: são essas as mais difíceis, pois precisa-se de uma força grande e amadurecida para se produzir algo de pessoal num domínio em que sobram tradições boas, algumas brilhantes. Eis por que deve fugir dos motivos gerais para aqueles que a sua própria existência quotidiana lhe oferece; relate as suas mágoas e os seus desejos, os seus pensamentos passageiros, a sua fé em qualquer beleza — relate tudo isto com íntima e humilde sinceridade.(...) Mas talvez se dê o caso de, após essa decida em si mesmo e em seu âmago solitário, ter o Senhor de renunciar a se tornar poeta. (Basta como já disse, sentir que se poderia viver sem escrever para não mais se ter o direito de fazê-lo). Mesmo assim, o exame de sua consciência que lhe peço não terá sido inútil. A sua vida, a partir desse momento, há de encontrar caminhos próprios. Que sejam bons, ricos e largos é o que lhe desejo, muito mais do que lhe posso exprimir.(...) Restituo-lhe ao mesmo tempo os versos que me veio confiar amigavelmente. Agradeço-lhe mais uma vez a grandeza e a cordialidade de sua confiança. Procurei, por meio desta resposta sincera, feita o melhor que pude, tornar-me um pouco mais digno dela do que realmente sou, em minha qualidade de estranho.
Com todo o devotamento e toda a simpatia, Rainer Maria Rilke


Meu caro Amigo:
Acabo de ler o seu livro e, desde a primeira à última página, sempre com interesse e gosto. Há em todas elas pensamento e esse pensamento é conexo: há, além disso, uma maneira pessoal de ver as coisas e de se exprimir: vê-se finalmente que o autor não quis brilhar, mas simplesmente dizer alguma coisa que merecia ser dita. Por tudo isto não deve estar descontente com o seu livro e pode estar certo de que está muito longe de ser uma publicação inútil – compreendo entretanto essa espécie de dúvida e desgosto, que a sua carta acusa, mas não o aprovo. Convém mirar sempre à perfeição, mas nunca afligirmo-nos porque não a alcançámos, desde que trabalhámos com ânimo limpo de vaidade e que fizemos como melhor soubemos e pudemos. Nesta impaciência e desconsolação, que eu desaprovo, quando não entra inconscientemente um certo orgulho, entra uma certa inquietação parente dos “escrúpulos”, que são uma verdadeira doença moral. Não podemos exigir de nós mesmos mais do que é justo exigir-se da natureza humana: isto é, não devemos em coisa alguma exigir a perfeição, mas contentarmo-nos com a bondade e rectidão das intenções. Banir a vaidade das nossas obras, isso é que está inteiramente na nossa mão; torná-las perfeita, não.(...)
Do seu do coração
Antero de Q.


Mas é assim mesmo, amigo Lucílio: embora pareçam dissociadas, elas estão interligadas. Assim como uma mesma cadeia acorrenta o guarda e o prisioneiro, assim aquelas, embora parecendo dissemelhantes, caminham lado a lado: à esperança segue-se sempre o medo. Nem é de admirar que assim seja: ambos caracterizam um espírito hesitante, preocupado na expectativa do futuro.
A causa principal de ambos é que não nos ligamos ao momento presente antes dirigimos o nosso pensamento para um momento distante e assim é que a capacidade de prever, o melhor bem da condição humana, se vem a transformar num mal. As feras fogem aos perigos que vêem mas assim que fugiram recobram a segurança. Nós tanto nos torturamos com o futuro como com o passado. Muitos dos nossos bens acabam por ser nocivos: a memória reactualiza a tortura do medo, a previsão antecipa-a; apenas com o presente ninguém pode ser infeliz!


Há muito que não lhe escrevo ... Não tenho de me desculpar pelo meu silêncio, pois bem sabe como detesto cartas. Todas as desgraças da minha vida - não o afirmo para me queixar, mas sim para daí retirar uma lição de interesse mais geral - resultam, digamos, de cartas ou da possibilidade de as escrever. Nunca fui, por assim dizer, enganado pelos homens, mas pelas cartas sempre; e, na realidade, não só pelas cartas de outras pessoas, mas pelas minhas. No que me diz respeito, há aqui um desgosto pessoal sobre o qual nada mais direi, mas há também uma desgraça geral. A grande facilidade de escrever cartas deve ter introduzido no mundo - do ponto de vista puramente teórico - uma terrível desintegração das almas. É, de facto, uma relação com fantasmas, não só com o fantasma do destinatário, mas também com o nosso próprio fantasma, o qual cresce entre as linhas da carta que se escreve e, sobretudo, numa sequência de cartas onde uma corrobora a outra e a refere como testemunha. Como poderá ter surgido a ideia de que as pessoas conseguem comunicar umas com as outras através de cartas? Pode-se pensar numa pessoa distante, pode-se ir ter com uma pessoa que esteja próxima - tudo o mais está para além da força humana. Escrever cartas significa despirmo-nos diante dos fantasmas, e eles aguardam avidamente esse gesto. Beijos escritos não chegam ao destino, os fantasmas bebem-nos pelo caminho. É graças a este alimento abundante que eles se multiplicam enormemente. A humanidade sente-o, e luta contra ele; e para tentar eliminar o mais possível o elemnto fantástico entre as pessoas e criar uma comunicação natural, restaurando a paz das almas, inventou o caminho-de-ferro, o automóvel, o aeroplano. Mas isso já não serve de nada, pois estas são, evidentemente, invenções feitas no momento da queda. O adversário é de tal maneira mais calmo e mais forte: depois do serviço postal, ele inventou o telégrafo, o telefone, a telegrafia sem fios. Os fantasmas não morrerão à fome, mas nós, nós pereceremos.

Cartas que ensinam a morrer...

“A questão não é morrer mais cedo ou mais tarde” “O que importa é morrer bem ou morrer mal. E morrer bem é escapar ao perigo de viver mal.”
Antes de lutar com a fera , o gladiador decide morrer e “o espetáculo foi mais impressionante, pois é mais digno ensinar como se morre do que ensinar como se mata”.

“Não usarei a morte para escapar à doença, desde que a doença seja curável. Morrer apenas por causa da dor é admitir a derrota. Mas se sei que a minha condição vai durar para sempre, abandono a vida. Não por causa da dor, mas porque isso me vai tirar as razões para viver. É fraco o homem que morre por causa da dor, mas é tolo o homem que vive em nome da dor”

“ Viver não é uma coisa boa em si mesma, mas sim viver bem.”

“Sábio é aquele que vive até onde deve, não até onde pode”.

“ Aconteceu ao teu pai, à tua mãe, aos teus antepassados, a todas as pessoas antes de ti, a todos depois de ti, numa sequência inquebrável.” “Estuda a morte”, “ensaia a morte”, “pratica a morte”…
“Antes de ser velho, fiz por viver bem; agora que sou velho, faço por morrer bem. E morrer bem significa morrer com vontade.”

“A vida é como uma história: o importante é como é feita, não se é comprida. Mas dá-lhe um bom fim.”

“Se o nosso corpo se torna incapaz de desempenhar as suas funções, não será correto retirar dele a nossa alma torturada? Talvez isso deva ser feito ligeiramente antes do momento em que tem de ser feito, porque quando tem de ser feito já não somos capazes de o fazer”

“Achas que há alguma coisa mais cruel a perder na vida do que o direito de acabar com ela?”


"Cara tia,

Nunca quis fazê-la triste mas esta carta vai deixá-la triste. Eu próprio me entristeço enquanto a escrevo, porque esta é uma carta desolada que vai já sem mim e porque a não voltarei a ver, a si de quem eu sempre gostei, cara tia.
Já cá não estou e, se muito quis abalar em silêncio com passos firmados da noite, não pude partir sem lhe deixar algumas palavras que, se consolo não são, de bálsamo lhe possam servir.
A mim nenhuma droga me pode já tolher a dor, porque a dor que trago está cravada no começo do que sou e me atravessa como sangue que corre. Muitas vezes refleti sobre se isto a que chamo dor e que eu sinto tão natural não será afinal de todos os homens, e que outros que não eu lhe chamem outras coisas e durmam com ela sem dela se estranharem.
Não tenho nome para isto, cara tia, sei que dói, que me foi roendo dentro e me deixou escavado de tudo, oco de mim. O que fui procurando para me encher de novo nunca me chegou: o saber, as amizades, a música, o amor, as letras, a escrita, também o álcool. Assim me soube poço, mais do que vazio, um buraco por onde as coisas caem e se perdem para sempre.
Sabe, tia, não sou insensível a nada, sei reconhecer o que é belo e sentir prazer num dia de sol, no sabor de uma romã ou no toque de uma mão. São contudo sementes atiradas a solo estéril, porque aqui nada se dá e tudo seca ou apodrece.
Que fazer então, tia? Viver assim é andar aos tombos. Por sorte ou destino fui capaz de me bastar nesta amargura, não tendo nunca arrastado quem longe estará seguramente melhor. Mas até quando poderia eu garantir essa desambição? São tão fracos os homens, somos todos tão falíveis, que mais tarde ou mais cedo eu haveria de encontrar alguém e, em lugar de dividir, multiplicar desgostos,
Concluindo, cara tia, peço-lhe que pelo meu gesto não veja em mim o altruísta que não sou nem o malvado que não quis ser. Assim como vim, agora vou, somente porque assim haveria de ser.
Que os beijos que lhe deixo possam secar as lágrimas que não mereço, não se amargure, tia, que eu vou no vento, a minha alma vai nele e finalmente há de respirar.

O eternamente seu,
Fernando"


Senhor António:
O senhor nunca há-de ver esta carta, nem eu a hei-de ver segunda vez porque estou tuberculosa, mas eu quero escrever-lhe ainda que o senhor o não saiba, porque se não escrevo abafo.
O senhor não sabe quem eu sou, isto é, sabe mas não sabe a valer. Tem-me visto à janela quando o senhor passa para a oficina e eu olho para si, porque o espero a chegar, e sei a hora que o senhor chega. Deve sempre ter pensado sem importância na corcunda do primeiro andar da casa amarela, mas eu não penso senão em si. Sei que o senhor tem uma amante, que é aquela rapariga loura alta e bonita; eu tenho inveja dela mas não tenho ciúmes de si porque não tenho direito a ter nada, nem mesmo ciúmes. Eu gosto de si porque gosto de si, e tenho pena de não ser outra mulher, com outro corpo e outro feitio, e poder ir à rua e falar consigo ainda que o senhor me não desse razão de nada, mas eu estimava conhecê-lo de falar.
O senhor é tudo quanto me tem valido na minha doença e eu estou-lhe agradecida sem que o senhor o saiba. Eu nunca poderia ter ninguém que gostasse de mim como se gosta das pessoas que têm o corpo de que se pode gostar, mas eu tenho o direito de gostar sem que gostem de mim, e também tenho o direito de chorar, que não se negue a ninguém.
Eu gostava de morrer depois de lhe falar a primeira vez mas nunca terei coragem nem maneiras de lhe falar. Gostava que o senhor soubesse que eu gostava muito de si, mas tenho medo que se o senhor soubesse não se importasse nada, e eu tenho pena já de saber que isso é absolutamente certo antes de saber qualquer coisa, que eu mesmo não vou procurar saber.
Eu sou corcunda desde a nascença e sempre riram de mim. Dizem que todas as corcundas são más, mas eu nunca quis mal a ninguém. Alem disso sou doente, e nunca tive alma, por causa da doença, para ter grandes raivas. Tenho dezanove anos e nunca sei para que é que cheguei a ter tanta idade, e doente, e sem ninguém que tivesse pena de mim a não ser por eu ser corcunda, que é o menos, porque é a alma que me dói, e não o corpo, pois a corcunda não faz dor.
Eu até gostava de saber como é a sua vida com a sua amiga, porque como é uma vida que eu nunca posso ter - e agora menos que nem vida tenho - gostava de saber tudo.
Desculpe escrever-lhe tanto sem o conhecer, mas o senhor não vai ler isto, e mesmo que lesse nem sabia que era consigo e não ligava importância em qualquer caso, mas gostaria que pensasse que é triste ser marreca e viver sempre so à janela, e ter mãe e irmãs que gostam da gente mas sem ninguém que goste de nós, porque tudo isso é natural e é a família, e o que faltava é que nem isso houvesse para uma boneca com os ossos às avessas como eu sou, como eu já ouvi dizer.
Houve um dia que o senhor vinha para a oficina e um gato se pegou à pancada com um cão aqui defronte da janela, e todos estivemos a ver, e o senhor parou, ao pé do Manuel das Barbas, na esquina do barbeiro, e depois olhou para mim para a janela, e viu-me a rir e riu também para mim, e essa foi a única vez que o senhor esteve a sós comigo, por assim dizer, que isso nunca poderia eu esperar.
Tantas vezes, o senhor não imagina, andei à espera que houvesse outra coisa qualquer na rua quando o senhor passasse e eu pudesse outra vez ver o senhor a ver e talvez olhasse para mim e eu pudesse olhar para si e ver os seus olhos a direito para os meus.
Mas eu não consigo nada do que quero, nasci já assim, e até tenho que estar em cima de um estrado para poder estar à altura da janela. Passo todo o dia a ver iltustrações e revistas de modas que emprestam à minha mãe, e estou sempre a pensar noutra coisa, tanto que quando me perguntam como era aquela saia ou quem é que estava no retrato onde está a Rainha de Inglaterra, eu às vezes me envergonha de não saber, porque estive a ver coisas que não podem ser e que eu não posso deixar que me entrem na cabeça e me dêem alegria para eu depois ainda por cima ter vontade de chorar.
Depois todos me desculpam, e acham que sou tonta, mas não me julgam parva, porque ninguém julga isso, e eu chego a não ter pena da desculpa, porque assim não tenho que explicar porque é que estive distraída.
Ainda me lembro daquele dia que o senhor passou aqui ao Domingo com o fato azul claro. Não era azul claro, mas era uma sarja muito clara para o azul escuro que costuma ser. O senhor ia que parecia o próprio dia que estava lindo e eu nunca tive tanta inveja de toda a gente como nesse dia. Mas não tive inveja da sua amiga, a não ser que o senhor não fosse ter com ela mas com outra qualquer, porque eu não pensei senão em si, e foi por isso que invejei toda a gente, o que não percebo mas o certo é que é verdade.
Não é por ser corcunda que estou aqui sempre à janela, mas é que ainda por cima tenho uma espécie de reumatismo nas pernas e não me posso mexer, e assim estou como se fosse paralítica, o que é uma maçada para todos cá em casa e eu sinto ter que ser toda a gente a aturar-me e a ter que me aceitar que o senhor não imagina. Eu às vezes dá-me um desespero como se me pudesse atirar da janela abaixo, mas eu que figura teria a cair da janela? Até quem me visse cair ria e a janela é tão baixa que eu nem morreria, mas era ainda mais maçada para os outros, e estou a ver-me na rua como uma macaca, com as pernas à vela e a corcunda a sair pela blusa e toda a gente a querer ter pena mas a ter nojo ao mesmo tempo ou a rir se calhasse, porque a gente é como é não como tinha vontade de ser.
(…)
- e enfim porque lhe estou eu a escrever se lhe não vou mandar esta carta?
O senhor que anda de um lado para o outro não sabe qual é o peso de a gente não ser ninguém. Eu estou à janela todo o dia e vejo toda a gente passar de um lado para o outro e ter um modo de vida e gozar e falar a esta e àquela, e parece que sou um vaso com uma planta murcha que ficou aqui à janela por tirar de lá.
O senhor não pode imaginar, porque é bonito e tem saúde o que é a gente ter nascido e não ser gente, e ver nos jornais o que as pessoas fazem, e uns são ministros e andam de um lado para o outro a visitar todas as terras, e outros estão na vida da sociedade e casam e têm baptizados e estão doentes e fazem-lhe operações os mesmos médicos, e outros partem para as suas casas aqui e ali, e outros roubam e outros queixam-se, e uns fazem grandes crimes e há artigos assinados por outros e retratos e anúncios com os nomes dos homens que vão comprar as modas ao estrangeiro, e tudo isto o senhor não imagina o que é para quem é um trapo como eu que ficou no parapeito da janela de limpar o sinal redondo dos vasos quando a pintura é fresca por causa da água.
Se o senhor soubesse isto tudo era capaz de de vez em quando me dizer adeus da rua, e eu gostava de se lhe poder pedir isso, porque o senhor não imagina, eu talvez não vivesse mais, que pouco é o que tenho de viver, mas eu ia mais feliz lá para onde se vai se soubesse que o senhor me dava os bons dias por acaso.
A Margarida costureira diz que lhe falou uma vez, que lhe falou torto porque o senhor se meteu com ela na rua aqui ao lado, e essa vez é que eu senti inveja a valer, eu confesso porque não lhe quero mentir, senti inveja porque meter-se alguém connosco é a gente ser mulher, e eu não sou mulher nem homem, porque ninguém acha que eu sou nada a não ser uma espécie de gente que está para aqui a encher o vão da janela e a aborrecer tudo que me vê, valha-me Deus.
O António (é o mesmo nome que o seu, mas que diferença!) o António da oficina de automóveis disse uma vez a meu pai que toda a gente deve produzir qualquer coisa, que sem isso não há direito a viver, que quem não trabalha não come e não há direito a haver quem não trabalhe. E eu pensei que faço eu no mundo, que não faço nada senão estar à janela com toda a gente a mexer-se de um lado para o outro, sem ser paralítica, e tendo maneira de encontrar as pessoas de quem gosta, e depois poderia produzir à vontade o que fosse preciso porque tinha gosto para isso.
Adeus senhor Antonio, eu não tenho senão dias de vida e escrevo esta carta só para a guardar no peito como se fosse uma carta que o senhor me escrevesse em vez de eu a escrever a si. Eu desejo que o senhor tenha todas as felicidades que possa desejar e que nunca saiba de mim para não rir porque eu sei que não posso esperar mais.
Eu amo o senhor com toda a minha alma e toda a minha vida.
Aí tem e estou a chorar.
Maria José


Acabo de ler, por inteiro, e num só hausto feliz, o seu livro «Biografia», há meia hora recebido. É um livro admirável, porém a sua leitura, para em seu efeito ser mais admirável, faz-me saudades. Faz-me saudades do maior amigo meu, do único grande amigo que tive – o Mário de Sá-Carneiro, a quem a leitura dos seus sonetos entusiasmaria como uma boa nova. Sonhei sem querer – em um daqueles sonhos retrospectivos e erróneos — que estivéssemos lendo juntos os seus sonetos, e reconheço a voz dele e a minha no consenso entusiástico da apreciação.Explico. Há uma íntima analogia entre o seu modo de sentir e o modo de sentir que distinguia o Sá-Carneiro.O modo de sentir [...] é que é diferente, como convém a dois que são dois, e não comummente o terceiro que não é ninguém. Estes semi-dizeres não chegam a ser palavras: são contudo a expressão imediata, espontânea e inteira com que, orgulhando-se misteriosamente de v., o abraça o amigo e muito admirador.

Quero bem ao meu livro, se ele assim lhe evocou Sá-Carneiro. Creio bem que entre Sá-Carneiro e eu haja afinidades – pois eu, mais que o admiro, o amo. E algumas das suas páginas, julgo compreendê-las com aquela cegueira ou lucidez de quem se compreende a si próprio. Entre ele e eu há talvez, além de outras diferenças!, a de ele ser mais Artista (e quanto mais inovador!) e eu, ai de mim! mais humano... isto é: duma humanidade mais geral, que ainda é uma das razões do meu drama, por estar em conflito com o muito que há em mim de particular. Releve-me, querido amigo, o estar a falar de mim, e o ter o ar de me estar a comparar com Sá-Carneiro.

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