Quem foi bem-educado na infância pode esquecer as boas-maneiras, pode esquecer a etiqueta: o que não esquece é a civilidade, que é o fundamento de ambas.
Um "clássico" sobre o tema: Quando as crianças brincam E eu as oiço brincar, Qualquer coisa em minha alma Começa a se alegrar. E toda aquela infância Que não tive me vem, Numa onda de alegria Que não foi de ninguém. Se quem fui é enigma, E quem serei visão, Quem sou ao menos sinta Isto no coração.
Tenho pensado muito em mim quando era criança. Gostava-me nesse tempo...
Ah, quero as relvas e as crianças!
Quero o coreto com a banda!
Quero os brinquedos e as danças —
A corda com que a alma anda.
Quero ver todas brincar
Num jardim onde se passa,
Para ver se posso achar
Onde está minha desgraça.
Ah, mas minha desgraça está
Em eu poder querer isto —
Poder desejar o que há.
Dá-me um sorriso daqueles
Que te não servem de nada
Como se dá às crianças
Uma caixa esvaziada.
Perto da minha porta
Onde brincam as crianças dos outros,
Rompe um canto infantil, disciplinado e cómodo,
E eu sou a quinta criança ali, se houver só quatro,
E ninguém me abandonar embora eu não esteja lá
Canto também, dormindo transparente e calado.
Se as crianças não percebem os adultos - que, aliás, nada têm que perceber porque são todos iguais, e o que é igual a outra coisa não existe -, mais certo é que os adultos não percebem as crianças. Ser adulto é esquecer-se de que se foi criança. Por isso os pais castigam os filhos por aquilo mesmo que fizeram na mesma idade. Quando um pai se lembra do que foi, e não castiga o filho, é porque procede racionalmente: acha que, se se lembrasse do que foi, não deveria castigar o filho. Na realidade não se lembra. Teria ficado criança se se lembrasse...
Este é o reino que buscamos nas praias de mar verde...
A criança é criativa porque é crescimento e se cria a si própria. É como um rei, porque impõe ao mundo as suas ideias, os seus sentimentos e as suas fantasias. Ignora o mundo do acaso, pré-elaborado, e constrói o seu próprio mundo de ideais.(...)A criança é sem finalidade,cria brincando e crescendo suavemente;(...)todo o objecto em que toca vive, a criança é cosmos, mundo, vê as últimas coisas, o absoluto, ainda que não saiba dar-lhes expressão: mas mata-se a criança ensinando-a a ater-se a finalidades e agrilhoando-a a uma rotina vulgar a que, hipocritamente, se chama realidade.
Intacta memória — se eu chamasse Uma por uma as coisas que adorei Talvez que a minha vida regressasse Vencida pelo amor com que a lembrei
Aprende A não esperar por ti pois não te encontrarás No instante de dizer sim ao destino Incerta paraste emudecida Ε os oceanos depois devagar te rodearam A isso chamaste Orpheu Eurydice —>Incessante intensa lira vibrava ao lado Do desfilar real dos teus dias Nunca se distingue bem o vivido do não vivido O encontro do fracasso — Quem se lembra do fino escorrer da areia na ampulheta Quando se ergue o canto Por isso a memória sequiosa quer vir à tona Em procura da parte que não deste No rouco instante da noite mais calada Ou no secreto jardim à beira rio Em Junho
Orpheu
seu canto alto e grave
O canto de oiro o êxtase da lira
Orpheu
A palidez sagrada de seu rosto
Que de clarões e sombras se ilumina
Ante seus pés se deitam mansas feras
Vencidas pela música divina
Juntos passavam no cair da tarde Jovens luminosos muito antigos
Por entre o clamor e vozes oiço atenta a voz da flauta na penumbra fina Ε ao longe sob a copa dos pinheiros Com leves pés que nem as ervas dobram Intensa e absorta — em se virar pra trás — Ε já separada — Eurydice caminha
Desfaço durante noite o meu caminho. Tudo quanto teci não é verdade, Mas tempo, para ocupar o tempo morto, Ε cada dia me afasto a cada noite me aproximo.
por que será que as palavras se servem tantas vezes de nós, vemo-las a aproximarem-se, a ameaçarem, e não somos capazes de afastá-las, de calá-las, e assim acabamos por dizer o que não queríamos, é como o abismo irresistível, vamos cair e avançamos.
Sempre vivi só, Também eu, mas a solidão não é viver só, a solidão é não sermos capazes de fazer companhia a alguém ou a alguma coisa que está dentro de nós, a solidão não é uma árvore no meio duma planície onde só ela esteja, é a distância entre a seiva profunda e a casca, entre a folha e a raiz, Você está a tresvariar, tudo quanto menciona está ligado entre si, aí não há nenhuma solidão, Deixemos a árvore, olhe para dentro de si e veja a solidão, Como disse o outro, solitário andar por entre a gente, Pior do que isso, solitário estar onde nem nós próprios estamos.
sentiu na casa uma presença, talvez não fosse ainda a solidão, era o silêncio, meio-irmão dela...
Nada me expira já, nada me vive -Nem a tristeza nem as horas belas.De as não ter e de nunca vir a tê-las,Fartam-me até as coisas que não tive.Como eu quisera, enfim de alma esquecida,Dormir em paz num leito de hospital…Cansei dentro de mim, cansei a vida De tanto a divagar em luz irreal
E eu caminhei no Hospital Onde o branco é desolado e sujo Onde o branco é a cor que fica quando não há cor E onde a luz é cinza ...No hospital eu vi o rosto Que não é pinheiral nem é rochedo E vi a luz como cinza na parede E vi a dor absurda e desmedida E eu caminhei nas praias e nos campos O azul do mar e o roxo da distância Enrolei-os em redor do meu pescoço Caminhei na praia quase livre como um deus
Este é o reino que buscamos nas praias de mar verde, no azul suspenso da noite, na pureza da cal, na pedra polida, no perfume do orégão. Semelhante ao corpo de Orfeu dilacerado pelas fúrias este reino está dividido. Nós procuramos reuni-lo, procuramos a sua unidade, vamos de coisa em coisa.
O reino de sophia faz pensar no reino de tavares e de camus...
O que nas pessoas estranhas, desviadas por passo próprio ou enxotadas pelos outros, o fascinava era a absoluta liberdade individual com que faziam as suas escolhas. Num louco ou num pedinte que vagueava pelas ruas a pedir pão e sopa e que, de noite, tal qual os outros humanos, só queria dormir, Buchmann via quem poderia escolher em liberdade pura, e sem consequências, a sua moral individual. Moral que nem sequer tem um par, um elemento que a acompanhe. Quem iria contestar a «vida imoral» de um pedinte ou de um louco? Aqueles homens tinham já em si, pela sua diferença, uma carga de imoralidade universal e profunda, que os tornava imunes às pequenas imoralidades praticadas. Um louco, tal como um pedinte, não era imoral. Eram indivíduos sem cópia, semelhantes a um rei; alguém que não tem par, que não tem aquele que está ao seu lado. E por isso não há para esses homens escorraçados, como não há para o homem mais poderoso, qualquer critério de comparação.
Os doidos não respeitam compromissos assumidos. Ah...Que sorte ser doido! Os doidos não contam histórias porque, para compreender um doido, é preciso ser doido,e não há ninguém suficientemente doido para gostar de histórias de um doida como ela... Atenção ela não é louca, é doida... seja lá o que isso signifique, mas parece que uma doida é um louco de segunda e ela é de segunda ou de terceira ou de quarta...Louco é doido de primeira e ela não é de primeira...Todos os loucos são senhores no seu reino...
Ela percebeu, claramente, que ali, junto à igreja, estavam em competição duas dores grandes: a dor que a ia matar, a dor má, assim ela a designou, e, do outro lado, a dor boa, a dor do apetite, dor da vontade de comer, dor que significava estar viva, a dor da existência, diria ela, como se o estômago fosse, naquele momento, ainda em plena noite, a evidente manifestação da humanidade, mas também das suas relações ambíguas com os mistérios de que nada se sabe. Estava viva, e essa circunstância doía mais, naquele momento, de um modo objectivo e material, do que a dor de que ia morrer, agora secundária. Como se naquele momento fosse mais importante comer um pão do que ser imortal.
Em Ernst ainda não surgira o raciocínio analítico dirigido aos pensamentos, a separação era difícil, impossível mesmo. Por vezes, quando cortava uma fatia de bolo com uma faca, Ernst Spengler tinha mesmo o pensamento absurdo e satisfeito: consegui separar uma coisa de outra.
Daru contemplou o céu, o planalto, e, para além, as terras quase invisíveis que se estendiam até ao mar. Nesse vasto país, que ele tanto amara, estava agora só, completamente só.
Ora até que enfim..., perfeitamente...Cá está ela! Tenho a loucura exactamente na cabeça. O meu coração estoirou como uma bomba de pataco, E a minha cabeça teve o sobressalto pela espinha acima...Graças a Deus que estou doido!
Tanto reino... Ao escrever esta palavra, percorreu - me um estranho arrepio- sei lá, uma daquelas coisas que eu sentia e que não desejo voltar a experimentar - e sorri, o que não quero. Não quero voltar a sorrir, não quero...Se sorrio, inconscientemente, penso-nos e não quero... Por ti deixei meu reino meu segredo...
Foi um imenso desperdiçar de gente Para que ela fosse aquela perfeição Solitária exilada sem destino. Também pela brincadeira de vários amigos me chamarem "princesa", identifico-me com este verso final do "retrato de uma princesa desconhecida". Não por motivos sociológicos ou políticos, mas, em termos existenciais, perceciono-me como uma "perfeição Solitária exilada sem destino"...
Princesa sem príncipe e sem reino? Uma perfeição inútil para mim e para os outros que só origina um isolamento estéril?
Que fazer? A perfeição é um caminho que só leva à solidão.
A sua perfeição tornou-se um defeito insuportável para os poucos que com ela se relacionam, sobretudo para os alunos... Ficou, está, compreensivelmente, sozinha...Renega princípios, valores, atitudes ,regras,essências que a tornavam, chegou a crê-lo, um professor perfeito. Consegue abdicar de tudo, mas já não é a mesma...A escola( pelo menos a " sua") conseguiu ser penetrada por uma qualquer forma de perfeição de que se sentia orgulhosa. Hic et nunc, declaro-me imperfeita. Cansei-me: este mundo, esta gente, não me merece...
Que tragédia não acreditar na perfectibilidade humana! E que tragédia acreditar nela...
Tudo quanto fazemos, na arte ou na vida, é a cópia imperfeita do que pensámos em fazer. Desdiz não só da perfeição externa, senão da perfeição interna; falha não só à regra do que deveria ser, senão à regra do que julgávamos que poderia ser. Somos ocos não só por dentro, senão também por fora, párias da antecipação e da promessa.
Sente-se uma imitação barata, um simulacro postiço e falacioso do que poderia ter sido, daquilo que, pelo menos ilusoriamente, cogitou ter atingido... Tornou-se uma caricatura grotesca de si própria...Vivencia-se com um antinarciso, horrorizado com a imagem que vê refletida nas águas...
A terra onde estamos — se ninguém atraiçoasse — proporia cada dia a cada um a liberdade e o reino...
Atraiçoou a perfeição que lhe estava prometida...é uma princesa sem reino...
A dor é o único caminho que conduz à perfeição...A perfeição foi um caminho para a dor...
Teremos a vida por imperfeita por a julgarmos consubstanciada com a imperfeição, isto é, não existente, porque a não existência, sendo a negação suprema, é a absoluta imperfeição...
Declaro-me absolutamente imperfeita...
"Perfeição é mania de menininha tocadora de piano. Tu nem tocas piano!" Quando, na adolescência, lhe disseram isto, deveria ter acreditado ou então... ter aprendido a tocar piano...
ἐντελέχεια - Neste domínio, é aristotélica: a perfeição, como finalidade última do ser, reside nele próprio. Platão que lhe perdoe...και εσύ?
Precisa de segredos para viver, mas precisa igualmente de os confidenciar. Há sempre um paradoxo nos segredos: não se quer que ninguém os conheça, mas não se resiste a desocultá-los….....
Nenhum segredo é segredo perfeito, senão o que passa a ser ignorância, porque o segredo que se sabe, pode-se dizer, o que se ignora, não se pode manifestar.
O segredo parece-me ser a única maneira de fazer da vida moderna algo de misterioso ou maravilhoso. A mais comum das coisas pode tornar-se deliciosa, basta dissimulá-la.
E como entre os arvoredos
Há grandes sons de folhagem,
Também agito segredos
No fundo da minha imagem.
A mais vil de todas as necessidades — a da confidência, a da confissão. E a necessidade da alma de ser exterior.
Confessa, sim; mas confessa o que não sentes. Livra a tua alma, sim, do peso dos seus segredos, dizendo-os; mas ainda bem que o segredo que dizes, nunca o tinhas dito. Mente a ti próprio antes de dizeres essa verdade. Exprimir(-se) é sempre errar. Sê consciente: exprimir seja, para ti, mentir.
Nunca fales de ti. Guarda ao teu ser o seu segredo. Se o abrires nunca o poderás fechar.
Dá-me as mãos por brincadeira Na dança que não dançamos, Porque isso é uma maneira De dizer o que pensamos. Dá-me as mãos e sorri alto, A vigiar o que rio, Bem sabes que assim já falto A pensar coisas a fio. (...) Que segredos num contacto! Que coisas diz quem não fala! Que boa vista a do tacto Quando a vista desiguala! Deixa os dedos, deixa os dedos, Deixa-os ainda dizer Aqueles dos teus segredos Que não podes prometer! Deixa-me os dedos e a vida! Os outros dançam no chão, E eu tenho a alma esquecida Dentro do teu coração. Todo o teu corpo está dado Nas tuas mãos que retenho. Mais vale ter enganado Do que ter porque não tenho.
Eu não sonho possuir-te. Para quê? Era traduzir para plebeu o meu sonho. Possuir um corpo é ser banal. Sonhar possuir um corpo é talvez pior, ainda que seja difícil sê-lo: é sonhar-se banal — horror supremo.(...) Fiquemos assim eternamente como uma figura de homem em vitral defronte de uma figura de mulher noutro vitral... Segredos passarão entre nós...
Os teus colares de pérolas fingidas amaram comigo as minhas horas melhores. Eram cravos as flores preferidas, talvez porque não significavam requintes. Os teus lábios festejavam sobriamente a ironia do seu próprio sorriso. Compreendias bem o teu destino? Era por o conheceres sem que o compreendesses que o mistério escrito na tristeza dos teus olhos sombreara tanto os teus lábios desistidos. A nossa Pátria estava demasiado longe para rosas. Nas cascatas dos nossos jardins a água era pelúcida de silêncios. Nas pequenas cavidades rugosas das pedras, por onde a água escolhia, havia segredos que tivéramos quando crianças, sonhos do tamanho parado dos nossos soldados de chumbo, que podiam ser postos nas pedras da cascata, na execução estática duma grande acção militar, sem que faltasse nada aos nossos sonhos, nem nada tardasse às nossas suposições.
Cansei-me de tentar o teu segredo:
No teu olhar sem cor, de frio escalpelo,
O meu olhar quebrei, a debatê-lo,
Como a onda na crista dum rochedo.
Segredo dessa alma e meu degredo
E minha obsessão! Para bebê-lo
Fui teu lábio oscular, num pesadelo,
Por noites de pavor, cheio de medo.
E o meu ósculo ardente, alucinado,
Esfriou sobre o mármore correto
Desse entreaberto lábio gelado...
Desse lábio de mármore, discreto,
Severo como um túmulo fechado,
Sereno como um pélago quieto.
Por ti deixei meu reino meu segredo...
Can't keep my eyes from the circling skies ... A soul in tension that's learning to fly Condition grounded but determined to try...
Iremos juntos sozinhos pela areia Embalados no dia Colhendo as algas roxas e os corais Que na praia deixou a maré cheia.As palavras que disseres e que eu disser Serão somente as palavras que há nas coisas Virás comigo desumanamente Como vêm as ondas com o vento. O belo dia liso como um linho Interminável será sem um defeito Cheio de imagens e conhecimento.
Janela rente ao mar e rente ao tempo
— Ó mãos poisadas sobre um Junho antigo
De ano em ano de hora em hora
Caminho para a frente e cega me persigo
Quem me consolará do meu corpo sepultado?
Tudo é grandioso, sublime, inspirador de elevados pensamentos. Medita-se ali por força; isola-se a alma dos sentidos pelo suave adormecimento em que eles caem... as primitivas e inatas ideias do homem ficam únicas no seu pensamento... Há um vago, um indeciso, um vaporoso naquele quadro que não tem nenhum outro.
Não é o sublime da montanha, nem o augusto do bosque, nem o ameno do vale. Não há aí nada que se determine bem, que se possa definir positivamente. Há a solidão que é uma ideia negativa...
Sentia-me disposto a fazer versos... a quê? Não sei… Mas foi como se os fizesse, os versos, como se os estivesse fazendo, porque me deixei cair num verdadeiro estado poético de distração, de mudez - cessou-me a vida toda de relação, e não sentia existir senão por dentro.
Mar, metade da minha alma é feita de maresia
Pois é pela mesma inquietação e nostalgia,
Que há no vasto clamor da maré cheia,
Que nunca nenhum bem me satisfez.
E é porque as tuas ondas desfeitas pela areia
Mais fortes se levantam outra vez,
Que após cada queda caminho para a vida,
Por uma nova ilusão entontecida.
E se vou dizendo aos astros o meu mal
É porque também tu revoltado e teatral
Fazes soar a tua dor pelas alturas.
E se antes de tudo odeio e fujo
O que é impuro, profano e sujo,
É só porque as tuas ondas são puras
O reino agora é só aquele que cada um por si mesmo encontra e conquista, a aliança que cada um tece. Este é o reino que buscamos nas praias de mar verde, no azul suspenso da noite, na pureza da cal, na pequena pedra polida, no perfume do orégão. Semelhante ao corpo de Orpheu dilacerado pelas fúrias este reino está dividido. Nós procuramos reuni-lo, procuramos a sua unidade, vamos de coisa em coisa. É por isso que eu levo a ânfora de barro pálido e ela é para mim preciosa. Ponho-a sobre o muro em frente do mar. Ela é ali a nova imagem da minha aliança com as coisas. Aliança ameaçada. Reino que com paixão encontro, reúno, edifico. Reino vulnerável. Companheiro mortal da eternidade.
A poesia não me pede propriamente uma especialização pois a sua arte é uma arte do ser. Também não é tempo ou trabalho o que a poesia me pede. Nem me pede uma ciência nem uma estética nem uma teoria. Pede-me antes a inteireza do meu ser, uma consciência mais funda do que a minha inteligência, uma fidelidade mais pura do que aquela que eu posso controlar. Pede-me uma intransigência sem lacuna. Pede-me que arranque da minha vida que se quebra, gasta, corrompe e dilui uma túnica sem costura. Pede-me que viva atenta como uma antena, pede-me que viva sempre, que nunca me esqueça. Pede-me uma obstinação sem tréguas, densa e compacta. Pois a poesia é a minha explicação com o universo, a minha convivência com as coisas, a minha paiticipação no real, o meu encontro com as vozes e as imagens. Por isso o poema não fala de uma vida ideal mas sim de uma vida concreta: ângulo da janela, ressonância das ruas, das cidades e dos quartos, sombra dos muros, aparição dos rostos, silêncio, distância e brilho das estrelas, respiração da noite, perfume da tília e do orégão. É esta relação com o universo que define o poema como poema, como obra de criação poética. Quando há apenas relação com uma matéria há apenas artesanato. (...) E no quadro sensível do poema vejo para onde vou, reconheço o meu caminho, o meu reino, a minha vida.
A coisa mais antiga de que me lembro é de um quarto em frente do mar dentro do qual estava, poisada em cima duma mesa, uma maçã enorme e vermelha. Do brilho do mar e do vermelho da maçã erguia-se uma felicidade irrecusável, nua e inteira. Não era nada de fantástico, não era nada de imaginário: era a própria presença do real que eu descobria. Mais tarde a obra de outros artistas veio confirmar a objectividade do meu próprio olhar. Em Homero reconheci essa felicidade nua e inteira, esse esplendor da presença das coisas. E também a reconheci, intensa, atenta e acesa na pintura de Amadeo de Souza-Cardoso. Dizer que a obra de arte faz parte da cultura é uma coisa um pouco escolar e artificial. A obra de arte faz parte do real e é destino, realização, salvação e vida.
Fernando Pessoa dizia: «Aconteceu-me um poema.» A minha maneira de escrever fundamental é muito próxima deste «acontecer». O poema aparece feito, emerge, dado (ou como se fosse dado). Como um ditado que escuto e noto.
É possível que esta maneira esteja em parte ligada ao facto de, na minha infância, muito antes de eu saber ler, me terem ensinado a decorar poemas. Encontrei a poesia antes de saber que havia literatura. Pensava que os poemas não eram escritos por ninguém, que existiam em si mesmos, por si mesmos, que eram como que um elemento do natural, que estavam suspensos, imanentes. E que bastaria estar muito quieta, calada e atenta para os ouvir. Desse encontro inicial ficou em mim a noção de que fazer versos é estar atento e de que o poeta é um escutador. É difícil descrever o fazer de um poema. Há sempre uma parte que não consigo distinguir, uma parte que se passa na zona onde eu não vejo. Sei que o poema aparece, emerge e é escutado num equilíbrio especial da atenção, numa tensão especial da concentração. O meu esforço é para conseguir ouvir o «poema todo» e não apenas um fragmento. Para ouvir o «poema todo» é necessário que a atenção não se quebre ou atenue e que eu própria não intervenha. É preciso que eu deixe o poema dizer-se. Sei que quando o poema se quebra, como um fio no ar, o meu trabalho, a minha aplicação não conseguem continuá-lo
Na minha infância, antes de saber ler, ouvi recitar e aprendi de cor um antigo poema tradicional português, chamado Nau Catrineta. Tive assim a sorte de começar pela tradição oral, a sorte de conhecer o poema antes de conhecer a literatura. Eu era de facto tão nova que nem sabia que os poemas eram escritos por pessoas, mas julgava que eram consubstanciais ao universo, que eram a respiração das coisas, o nome deste mundo dito por ele próprio. Pensava também que, se conseguisse ficar completamente imóvel e muda em certos lugares mágicos, eu conseguiria ouvir um desses poemas que o próprio ar continha em si. No fundo, toda a minha vida tentei escrever esse poema imanente. E aqueles momentos de silêncio... ensinaram-me, muito tempo mais tarde, que não há poesia sem silêncio, sem que se tenha criado o vazio e a despersonalização.
Tu perguntas, e eu não sei,eu também não sei o que é o mar. É talvez uma lágrima caída dos meus olhos, ao reler uma carta, quando é de noite. Os teus dentes, talvez os teus dentes, Miúdos, brancos dentes, sejam o mar, um mar pequeno e frágil, afável diáfano, no entanto sem música.(...)Às vezes o mar é uma figura branca cintilando entre os rochedos. Não sei se fita a água ou se procura um beijo entre conchas transparentes. Não, o mar não é nardo nem açucena.É um adolescente morto de lábios abertos aos lábios de espuma.É sangue, sangue onde a luz se esconde para amar outra luz sobre as areias.(...) Eu também não sei o que é o mar. Aguardo a madrugada, impaciente, os pés descalços na areia.
Escuto sem saber se estou ouvindo O ressoar das planícies do vazio Ou a consciência atenta Que nos confins do universo Me decifra e fita Apenas sei que caminho como quem É olhado amado e conhecido E por isso em cada gesto ponho Solenidade e risco
Dai-me a casa vazia e simples onde a luz é preciosa. Dai-me a beleza intensa e nua do que é frugal. (...) Não quero possuir a terra mas ser um com ela. Não quero possuir nem dominar porque quero ser: esta é a necessidade.(...) O mundo do ter perturba e paralisa e desvia em seus circuitos o estar, o viver, o ser. Dai-me a claridade daquilo que é exactamente o necessário. Dai-me a limpeza de que não haja lucro. Que a vida seja limpa de todo o luxo e de todo o lixo. Chegou o tempo da nova aliança com a vida.
Soneto à maneira de Camões
Esperança e desespero de alimento Me servem neste dia em que te espero E já não sei se quero ou se não quero Tão longe de razões é meu tormento. Mas como usar amor de entendimento? Daquilo que te peço desespero Ainda que mo dês - pois o que eu quero Ninguém o dá senão por um momento. Mas como és belo, amor, de não durares, De ser tão breve e fundo o teu engano, E de eu te possuir sem tu te dares. Amor perfeito dado a um ser humano: Também morre o florir de mil pomares E se quebram as ondas no oceano. Tudo morre: a criança, que existiu para ti, despediu-se para sempre; o reino que idealizei desvaneceu-se "E já não sei se quero ou se não quero"...
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