Não é neccessário vivermos ao lado de alguém para nos sentirmos ligados a esse alguém mais do que a qualquer outra pessoa...

sábado, 21 de maio de 2016

Mal de vivre...



Tortura é sinónimo de suplício. suplício é sinónimo de tortura...

A falta de liberdade não consiste em ser segregado, mas sim em estar em promiscuidade, pois o suplício inenarrável é não se poder estar sozinho.

A tortura mais terrível é quando o torturador é o torturado...

A que Deus implorar qualquer ajuda,Se sou eu que fabrico as divindades! Imagino,Imagino,E, de tanto subir, chego ao divino.
Mas nenhum sequioso mata a sede A beber na miragem de uma fonte.Grito,Grito, E, quanto mais acima, mais aflito.


Seria difícil conceber castigo mais demoníaco, pudesse uma tal coisa ser posta em prática, do que abandonar uma pessoa à deriva na sociedade de modo a passar despercebida a todos. Se ninguém se voltasse para nós, ao ver-nos entrar em casa, se ninguém nos respondesse quando nós falássemos, ou se preocupasse com o que nós fizéssemos, mas se toda a gente que conhecêssemos nos «desligasse do mundo» e agisse como se fôssemos entidades inexistentes, não tardaríamos a ser tomados de uma espécie de desespero de raiva e impotência, de que a mais cruel das torturas corporais seria um alívio.



Já dançámos demais Já fugimos demais Já perdemos demais E quis parar Restou a saudade de ser... «demais»Demais,Demais,Demais....

A tortura maior será não poder estar só, ser ignorado por "castigo demoníaco", ou estar sempre a mais?? É difícil responder com certezas...

Existem, nas recordações de todo o homem, coisas que ele só revela aos amigos. Há outras que não revela nem aos amigos, mas apenas a si próprio e, mesmo assim, em segredo. Mas também há, finalmente, coisas que o homem tem medo de desvendar até a si próprio...

Excluído o martírio, por envolvências cristãs, e o suplício, por conotações miserabilistas de um sofrimento que , apesar de tudo, se aceita sem revolta, motivada pela fonia, apresenta-se óbvia a escolha de tortura, até porque as potencialidades associativas, que as rimas deixam antever, são promissoras.Quem sabe se componho um poema, com a ternura que me inspira a tortura da loucura da tua candura?
Os torturados são mais pundonorosos do que mártires ou supliciados... íxion,prometeu,sísifo,tântalo,tício, os mais célebres, foram mitificados pelo sofrimento pungente que os deuses lhes infligiram.

Íxion,o mau da fita da mitologia grega, depois de um crime horrendo, é punido com a loucura; tem uma segunda oportunidade, mas volta a ofender zeus que o condena a ficar amarrado a uma roda em chamas, girando nela por toda a eternidade.
Prometeu,conhecido pela sua astúcia e inteligência,roubou o fogo divino para o dar aos homens. zeus castiga-o por este crime, amarrando-o a uma rocha, enquanto uma águia debica, durante o dia, o seu fígado que, eternamente, se regenera..
Sísifo,por tentar enganar a morte,é punido com uma existência rotineira e cansativa que simboliza o absurdo, pelo qual se é responsável.
Tântalo ousou testar a omnisciência divina,sendo lançado ao Tártaro, onde, num vale abundante em vegetação e água, está condenado a não poder saciar a sua sede e fome, visto que, ao aproximar-se da água, esta desaparece e, ao erguer-se, para colher os frutos das árvores, os ramos,com o ímpeto do vento, movem-se para longe do seu alcance.
Tício violenta leto e,por isso,é morto por apolo e ártemis, tendo sido condenado a ficar,após a sua morte, esticado no hades, preso pelos braços e pernas, com abutres a comerem-lhe o fígado.


Pobre tântalo, condenado para todo o sempre a não atingir o que parece ser acessível, nem sequer foste filosoficamente dignificado por um camus...Será que a tua alma encontrará uma qualquer pacificação com o tributo de gôngora?
Não vos enganem as rosas que, na Aurora, direis que aljofaradas e olorosas caíram no purpúreo seio ameno:serão maçãs de Tântalo, e não rosas, que logo fogem do insinuado agora; e somente do amor resta o veneno.
Assim eu, qual Tântalo, esperando,na fuga constante dos dias,conformo a memória de outro tempo...
O barroco espanhol recuperou poeticamente o mito de tântalo, mas a glória que sísifo alcançou é insuperável...


O sofrimento acompanha sempre uma inteligência superior e um coração profundo. Os homens verdadeiramente grandes devem, parece-me, experimentar uma grande tristeza.Disse-o dostoiévski e tem razão.

A tortura pior é o ciúme: αίαΐ_ τί δράσω

Como ciumento sofro quatro vezes: por ser excluído, por ser agressivo, por ser doido e por ser vulgar.
Que enumeração primorosa. Vou dar esta frase para debater com os alunos se a gradação é ascendente ou descendente... Como é evidente, para mim é mais do que ascendente, uma vez que a condenação sisífica é a vulgaridade...
Ciúme é um vocábulo desagradável, pouco eufónico, não gosto da palavra...

1. O ciúme é um sentimento natural do ser humano, provocado pela falta de exclusividade ... O ciúme resulta de uma ligação particular a uma pessoa, a um animal ou a um objeto...
2. Quem sofre de ciúmes geralmente possui falta de confiança no outro e em si próprio.
3. O ciúme pode transformar-se em paranóia ou patologia.

Na poesia grega arcaica, pela primeira vez, safo descreveu os sintomas físicos do ciúme:

Parece-me ser igual a um deus aquele que, reclinando-se junto de ti, escuta a tua doce voz e o teu riso amorável. Faz-me tumultuar o coração no peito.Basta-me olhar-te para que a voz me falte, a língua se me entorpeça e um repentino e subtil fogo alastre sob a minha pele; os olhos se me escurecem, zumbem-me os ouvidos; o suor me inunda, um arrepio me percorre toda. Fico mais verde do que a erva. Sinto que vou morrer. Ille mi par esse deo videtur,ille, si fas est, superare divos,qui sedens adversus identidem te spectat et audit dulce ridentem, misero quod omnes eripit sensus mihi: nam simul te,....., aspexi, nihil est super mi...

O ciúme , em Catulo, origina amor e ódio: Odi et amo. quare id faciam, fortasse requiris? nescio, sed fieri sentio et excrucior.

καίτοι τί πάσχω; βούλομαι γέλωτ' οφλεΐν εχθρούς μεθεΐσα τους έμούς άζημίους;
και μανθάνω μεν σία δραν μέλλω κακά, θυμός δε κρείσσων των έμδν βουλευμάτων, δσπερ μεγίστων αίτιος κακών βροτοΐς.
cru δ' ουκ έμελλες ταμ' άτιμάσας Μχη τερπνόν διάξειν βίοτον έγγελων έμον.





Oh climb out out enough to see the curl of the world...Oh we're alone Just like you said Last year to learn,

Words! Mere words! How terrible they were! How clear, and vivid, and cruel! One could not escape from them. And yet what a subtle magic there was in them! They seemed to be able to give a plastic form to formless things, and to have a music of their own as sweet as that of viol or of lute. Mere words! Was there anything so real as words?


καίτοι τί πάσχω;καίτοι τί πάσχω;καίτοι τί πάσχω;καίτοι τί πάσχω;καίτοι τί πάσχω;
χρην γαρ άλλοθέν πόθεν βροτους παΐδας τεκνουσθαι, θηλο δ' ουκ είναι γένος-
Μη. ούτω γαρ αν μάλιστα δηχθείη πόσις.
Μη. έτικταν αυτούς- ζην δ' οτ' έξηύχου τέκνα,έσηλθέ μ' οίκτος si γενήσεται τάδε.
καίτοι τί πάσχω; βούλομαι γέλωτ' οφλεΐν εχθρούς μεθεΐσα τους έμούς άζημίους;
οτωι δε μη θέμις παρεΐναι τοις έμοΐσι θύμασιν,αύτδι μελήσεν χείρα δ' ου διαφθερω.



και μανθάνω μεν σία δραν μέλλω κακά, θυμός δε κρείσσων των έμδν βουλευμάτων, δσπερ μεγίστων αίτιος κακών βροτοΐς.
Ε compreendo bem ο crime que vou perpetrar mas, mais potente do que as minhas deliberações, é a paixão, que é a causa dos maiores males para os mortais.

Φίλαι, δέδοκται τοδργον ά>ς τάχιστα μοι παΐδας κτανούσηι τησδ' άφορμδσθαι χθονός, και μή σχολή ν αγουσαν έκδουναι τέκνα
άλλη ι φονευσαι δυσμενεστέρα! χερί. πάντως σφ' ανάγκη κατθανεϊν ε πει δε χρή, ημείς κτενουμεν οϊπερ εξεφύσαμεν.
Amigas, decidida está α minha acção: matar os filhos o mais depressa que puder e evadir-me desta terra, não vá acontecer que, ficando eu ociosa, abandone as crianças, para serem mortas com mão mais hostil. É absoluta a necessidade de as matar, e, já que é forçoso, matá-las-emos nós, nós que as gerámos.

cru δ' ουκ έμελλες ταμ' άτιμάσας Μχη τερπνόν διάξειν βίοτον έγγελων έμον
Tu não havias de gozar uma doce vida, depois de teres desprezado o meu leito, escarnecendo de mim.

Jasão, sobrinho do rei de tessália, embarcou na nau "argos" e foi para a ilha de colcos para conquistar o velo de ouro. A filha do rei de colcos, medeia, e a sua prima creúsa apaixonaram-se por Jasão. Medeia ajuda-o, com os seus encantos, a roubar o velo de ouro e conseguiu escapar aos castigos do pai. Porém, jasão preferiu levar consigo creúsa. Medeia, ofendida, provoca uma tempestade que traz novamente a nau de jasão para a ilha. O soberano, ofendido com a filha, casou jasão com a sobrinha creúsa e deu-lhe o seu reino. Medeia, desesperada, desapareceu no ar.

aterrorizado outra vez
de não amar
de amar e não seres tu
de ser amado e não ser por ti


O diabolismo do casamento, a hesitação em aderir a um partido ou a um movimento, a autoridade do pai, o conflito que o envolve, acabaram por lhe incutir uma série de traumatismos, nomeadamente o ideal de ascetismo que dominou a sua vida. Daí ter-se deixado influenciar pela teoria do absurdo, direção, aliás, que Albert Camus imprime à obra de Kafka, talvez vítima da sua própria obsessão literária ou dos eflúvios existencialistas prementes na época.
As narrativas principais de Kafka são fragmentos, o conjunto da obra é um fragmento. De modo aparentemente paradoxal- só muito aparentemente- Kafka nunca desejou ser um autor nem ter uma obra, ele só quer ser escritor.

Blumfeld,um solteiro de certa idade, subia uma noite até ao seu apartamento,o que era um trabalho penoso,pois morava num sexto andar. Enquanto ia subindo,pensava, como fizera frequentemente nos últimos tempos,que esta vida completamente solitária era bastante enfadonha,que ele tinha de subir estes seis andares literalmente na clandestinidade,para depois chegar ao seu quarto vazio, vestir o seu roupão,de novo literalmente na clandestinidade,acender o cachimbo,ler um pouco a revista francesa que assinara havia anos,enquanto bebia uma aguardente de cereja feita por ele próprio, e, finalmente,passada meia hora, ir para a cama.. Um companheiro qualquer, um espectador qualquer destas actividades teria sido muito oportuno a Blumfeld. Chegara a pensar se não devia arranjar um cão..

Abre,repentinamente, a porta e acende a luz eléctrica. Não estava preparado para o que via à sua frente. É uma autêntica magia,duas pequenas bolas brancas de celulóide, com riscas azuis,saltam no parqué,uma ao lado da outra; enquanto uma está no chão,a outra está no ar,prosseguindo incansavelmente, o seu jogo.(...) Não há dúvida que vai ter de destrir as bolas e será muito brevemente,mas não para já, talvez no dia seguinte.(...) Quando se coloca junto à cama, uma das bolas salta imediatamente para a cama. Então acontece o inesperado, a outra bola dirige-se para debaixo da cama.(...) Cada um está por si,Bumfeld e as bolas, estão com efeito ligados uns aos outros, mas não se incomodam mutuamente.

Inutilmente vivida
Acumula-se-me a vida
Em anos, meses e dias;
Inutilmente vivida,
Sem dores nem alegrias,
Mas só em monotonias
De mágoa incompreendida...


Não, não é cansaço...É uma quantidade de desilusão Que se me entranha na espécie de pensar,É um domingo às avessas Do sentimento, Um feriado passado no abismo...Não, cansaço não é...É eu estar existindo E também o mundo, Com tudo aquilo que contém, Com tudo aquilo que nele se desdobra E afinal é a mesma coisa variada em cópias iguais. Não. Cansaço porquê? É uma sensação abstracta Da vida concreta — Qualquer coisa como um grito Por dar, Qualquer coisa como uma angústia Por sofrer, Ou por sofrer completamente, Ou por sofrer como... Sim, ou por sofrer como... Isso mesmo, como... Como quê?...Se soubesse, não haveria em mim este falso cansaço.

Fragmentos de monotonias...

Ah, no terrível silêncio do quarto
O relógio com o seu som de silêncio!
Monotonia...


O meu emprego é intolerável porque contradiz o meu unico desejo e a minha única vocação que é a literatura. Como eu nada sou senão literatra,que não posso nem quero ser outra coisa, o meu emprego nunca poderá ser causa de exaltação, mas poderá, pelo contrário, desiquilibrar-me completamente. Aliás, não estou muito longe disso.

So schlägt mein Herz Es schlägt in mir Stunde um Stunde Es schlägt für sich Für dich und mich jede Sekunde So lebe ich Einer von vielenKein Einzelfall

Será a monotonia destes acordes intencional?

Decomposição...
I feel strange, covered in waves of confusion...

Even in my dreams I try to fight but I don't ever win...

Todas as tardes me comprazia a imaginar aquela carta, julgava lê-la,recitava para mim mesmo cada frase. Parava de repente,assustado. Compreendia que, se havia de receber uma carta de Gilberte, ela não poderia, fosse como fosse, ser aquela, visto que era eu que acabava de a redigir. E logo me esforçava por desviar o pensamento das palavras que gostaria que ela me escrevesse, com medo de que, ao enunciá-las , excluísse justamente aquelas - as mais caras, as mais desejadas- do campo das realizações possíveis. Mesmo que, no caso de, por inverosímil coincidência, a carta que Gilberte me enviasse ser justamente a que havia inventado, eu não teria, ao reconhecer nela a minha obra, a impressão de receber algo que não vinha de mim, algo de real, de novo, uma felicidade exterior ao meu espírito, independente da minha vontade, verdadeiramente dada pelo amor.

Nada me prende a nada.
Quero cinquenta coisas ao mesmo tempo.
Anseio com uma angústia de fome de carne
O que não sei que seja —
Definidamente pelo indefinido...
Durmo irrequieto, e vivo num sonhar irrequieto
De quem dorme irrequieto, metade a sonhar.
Fecharam-me todas as portas abstractas e necessárias.
Até a vida só desejada me farta — até essa vida...
Compreendo a intervalos desconexos;
Escrevo por lapsos de cansaço;
E um tédio que é até do tédio arroja-me à praia...




Húmus...

Publicado, pela primeira vez, em 1917, e escrito durante a primeira grande guerra , muito se disse sobre Húmus- Inclassificável, diferente... Romance? Ensaio? Diário? Poesia? Prosa? Simbolista? Expressionista? Grotesco? Narrativa instável,fragmentária? Quando,em 1967, surge uma nova edição, muito se continuou a dizer, bem mais elogioso: a melhor obra de raul brandão, a primeira obra existencialista, escrita em português, de uma atualidade viva e admirável... Uma genial e incompreendida deambulação metafísica...

29 de junho de 1917
E tenho de dar mais um passo! Tenho de dar outro passo ainda! Chega o momento em que a dor se não separa do grotesco. Quer queiram quer não queiram aí estão na minha frente, ridículos, maníacos, pueris, nesta marcha desordenada para o sonho; tenho-os na minha frente, e com eles a hipocrisia, as explicações confusas, as leis, as regras, os hábitos fétidos, e tudo o que lhes serve para encobrir as duas ou três realidades de que se não podem libertar, com a sua filosofia, os seus livros, as suas teorias — e no fundo instinto! Instinto! Instinto!; tenho-os aqui só bichos em frente da necessidade fatal, da verdade iniludível, com olhos abertos de espanto, com bocas murchas de mentir, a suar grotesco e a gritar de desespero. Tenho-os aqui ridículos, só ridículos, só enfim ridículos, mas já prontos para todas as infâmias. A vida espalmou-os, secou-os, deformou-os a todos. Andou por aqui a mão da desgraça, a mão do vício, a grande mãozada de ferro que deprime e esmaga. Um alimentou-se de lascívia, outro de sonho, outro de avareza, outro de fel. Todos diante da nova visão do universo se sentem grotescos e inúteis de corpo e alma, com lepras que nunca mais se limpam, com nódoas que nunca mais se lavam, com ideias e palavras entranhadas, com ímpetos de gozo e monstruosos apetites. Os anos passaram, os anos marcaram-nos. E ei-los nus, uns em frente dos outros, nus e reles, nus e grotescos, com o esplendor cada vez maior, cada vez mais dourado, cada vez mais sôfrego diante de si. Nus e obscenos, nus, com doenças e infâmias secretas. Aqui está a embófia e o orgulho, aqui está o que come e digere, mas, no fundo deste estômago que esmói, há ainda um resto de sonho; aqui está a velha que envelheceu ridícula, mas este ridículo é atroz. Tudo isto contém ânsia, ressuma dor até nas plumas, até nos trapos. Todos os sonhos absurdos, os sonhos que ninguém se atrevia a declarar, os produtos fétidos de noites sobre noites de relento e insónia, os ridículos sonhos de almas embrionárias, transformam-se em realidade e resolvem-se em gritos, em dor e em grotesco. A puerilidade que constitui o fundo do nosso ser, as pequenas misérias que formam montanha, e as grandes tragédias desgrenhadas afundam-se em grotesco. A todo o drama se mistura grotesco, a toda a dor ritos, e toda a convulsão emerge a escorrer grotesco. Ó dor o que tu és! Aqui está a dor da D. Penarícia, a dor da D. Andresa — que toda a sua vida foram abjetas — e temos de confessar que são grotescas. Temos de confessar que a dor é grotesca diante desta mudez impenetrável. A vila conhece a vacuidade de todos os esforços, o grotesco e o atroz. O grotesco na dor, o grotesco aos gritos, o grotesco mesmo quando avançam para o assombro, com restos de xailes, com restos de penantes, com restos de misérias. Tudo isto dá grotesco desmedido, mas grotesco. Grotesco com sonho, grotesco com ouro, com todo o ouro do céu, com todas as estrelas do céu, mas grotesco afinal. A grande sombra que desaba também aos gritos, a grande sombra é grotesca de dor — imensa e grotesca — esfarrapada e grotesca. A D. Adélia é grotesca, com as suas manias, e há nela Deus e o Diabo; as velhas caquéticas, o cortejo funambulesco de rancores, tem não sei o quê de divino. Miscelânea trágica de matéria e de alma, que se resolve em dor e em grotesco, caminhando com as suas dores ridículas, com as suas paixões ridículas, com as suas ambições ridículas — caminhando sempre. Lamentáveis, sórdidos, grotescos, escorrendo viscosidades, e só eles no mundo capazes de compreender e de sofrer. Tudo neles é grotesco e divino. Tudo neles é angústia, desespero e vida. Tudo neles é reles e só neles é reles. Tudo neles, até o ridículo, se traduz em sofrimento, em não sei quê de superior, que lhes dá o ar, apesar dos penantes, das dedadas, dos vícios, de deuses decaídos, de deuses em luta com forças supremas, que, pretendendo torná-los mais grotescos ainda e reduzi-los a zero, os elevam pelo ridículo e pela dor. São lamentáveis — são trágicos. Só eles lutam, e tudo neles é ânsia e desespero, para entreverem a razão oculta que os escarnece e os engrandece. Estarrecidos e grotescos. Bichos e grotescos. Divinos e grotescos. Há neste trapo que criaste, nesta coroa de lata que foi o teu sonho e a tua vida, não sei quê de imortal. Vê que tudo ressuma dor, que o fizeste para subir, mais alto sempre, para esquecer todas as bocas que te reclamavam do fundo dos fundos, do mais trágico dos fundos. Na tua meticulosidade Anacleto, na tua dúvida ridícula oh D. Leocádia, no vislumbre que foi a tua vida, no teu minuto de sonho, no relâmpago, antes de te curvares definitivamente sobre a meia que já tem vinte metros de comprido, ó prima Angélica, ó figura tremenda de inépcia, que também achaste sabor à vida e logo te fechaste com ele na escuridão cerrada da idiotia — na maneira como apertaste para sempre a mandíbula — e até na risca que deixou de ser risca e no vinco que perdeu a linha e o assento, ó Elias & Melias, em tudo e em todos, há outra coisa tremenda que, apesar de grotesca, nos deixou de pé, e não sei que mistério que não fala, que não quer ou não pode falar, mas que sentimos vivo, real, imenso ao nosso lado e na nossa companhia.
Agora é que ele anda à solta! agora é que ele anda à solta!



Ouço sempre o mesmo ruído de morte, que devagar rói e persiste...

Uma vila encardida – ruas desertas – pátios de lajes soerguidas pelo único esforço da erva – o castelo – restos de muralha que não têm serventia: uma escada encravada nos alvéolos das paredes não conduz a nenhures. Habitada por seres recalcados, sem história nem passado, de que apenas se entreveem características, a vila é um simulacro. Melhor: a vida é um simulacro.
Todo o trabalho insano é este: reduzir a vida a uma insignificância.... Tapá-la, escondê-la, esquecê-la...
Em todas as almas, como em todas as casas, além da fachada, há um interior escondido...O homem por dentro é desconforme ...entre um lado e o outro Interpõe-se um muro...
O silêncio... O pior de tudo é o silêncio, e o que se cria no silêncio, o que eu sinto que remexe no silêncio...
Pouco a pouco o sonho dissolve, a nódoa de ouro alastra... Transforma, volta a existência do avesso, deita o muro abaixo.
Ouves o grito? Ouve-lo?... – É preciso matar segunda vez os mortos.


Estamos aqui todos à espera da morte! Estamos aqui todos à espera da morte!

As personagens que pairam num espaço ficcional são um produto da narrativa, e, tal como a vila, não representam ninguém. Estão desprovidas de consistência psicológica, o leitor só pode suspeitar do seu grau de verosimilhança.

A reflexão sobre as palavras assume, quase um século depois, uma importância e atualidade assustadoras: uma vez que a consciência só se torna realidade quando materializada palavras, a imobilidade social está exatamente em paralelo com o desgaste da linguagem...

Sempre as mesmas coisas repetidas, as mesmas palavras, os mesmos hábitos.... Vivemos de palavras. Vamos até à cova com palavras. Submetem-nos, subjugam-nos.... São as palavras que nos contêm, são as palavras que nos conduzem... Toda a arquitectura ideológica está em ruínas, para que se opere uma mudança nos valores da sociedade é necessário reinventar as palavras, depurá-las das marcas do passado, achar nelas a sua outra dimensão.Atrás das palavras.... sinto uma coisa descabelada e frenética, o espanto, a mixórdia, a dor, as forças monstruosas e cegas...

Existe uma certa grandeza em repetir todos os dias a mesma coisa. O homem só vive de detalhes e as manias têm uma força enorme: são elas que nos sustentam.

A alma, ao contrário do que tu supões, a alma é exterior: envolve e impregna o corpo como um fluido envolve a matéria. Em certos homens a alma chega a ser visível, a atmosfera que os rodeia tomar cor. Há seres cuja alma é uma contínua exalação: arrastam-na como um cometa ao oiro esparralhado da cauda - imensa, dorida, frenética. Há-os cuja alma é de uma sensibilidade extrema: sentem em si todo o universo. Daí também simpatias e antipatias súbitas quando duas almas se tocam, mesmo antes da matéria comunicar. O amor não é senão a impregnação desses fluidos, formando uma só alma, como o ódio é a repulsão dessa névoa sensível. Assim é que o homem faz parte da estrela e a estrela de Deus.

Como a vida esplêndida é aborrecida e inútil! Não se passa nada, não se passa nada. Todos os dias dizemos as mesmas palavras, cumprimentamos com o mesmo sorriso e fazemos as mesmas mesuras. Petrificam-se os hábitos lentamente acumulados. O tempo mói: mói a ambição e o fel e torna as figuras grotescas.

Estamos enterrados em convenções até ao pescoço: usamos as mesmas palavras, fazemos os mesmos gestos. A poeira entranhada sufoca-nos. Pega-se. Adere. Há dias em que não distingo estes seres da minha própria alma; há dias em que através das máscaras vejo outras fisionomias, e, sob a impassibilidade, dor; há dias em que o céu e o inferno esperam e desesperam. Pressinto uma vida oculta, a questão é fazê-la vir à supuração.


A vida é fictícia, as palavras perdem a realidade. E no entanto esta vida fictícia é a única que podemos suportar. Estamos aqui como peixes num aquário. E sentindo que há outra vida ao nosso lado, vamos até à cova sem dar por ela. Estamos aqui a matar o tempo...Reduzimos a vida a esta insignificância... Construímos ao lado outra vida falsa, que acabou por nos dominar...

É então um mundo de fórmulas a que eu obedeço e tu obedeces? Sem ele não poderíamos existir. Se víssemos o que está por trás não podíamos existir. O nosso mundo não é real: vivemos num mundo como eu o compreendo e o explico. Não temos outro



Fascinante a pintura de alvarez. Isto sempre foi um país feito à medida dos meninos de lisboa: alvarez nasceu, cresceu, pintou e foi praticamente ignorado, talvez por ser do porto.
Contactei com este pintor na infância, naturalmente sem o valorizar, porque havia em minha casa um quadro dele. Quando tinha uns 10 anos, recordo, perfeitamente, muitas conversas e negociações que conduziram à sua venda. Fixei o nome, mas nunca mais pensei nele, até o ter ouvido no vídeo... Pesquiso imagens na net e estou inconsolável: uma destas maravilhas podia ser minha? Nem quero acreditar...



Ler um poema é poder fazê-lo, refazê-lo.



Húmus é a matéria orgânica depositada no solo, resultante da decomposição de animais e plantas mortas...

Lixo...

O costume de cair endurece o corpo, ter chegado ao chão, só por si, já é um alívio, Daqui não passarei.

Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.


O bacilo da peste não morre nem desaparece nunca, pode ficar dezenas de anos adormecido (...) espera pacientemente, (...) e viria talvez um dia em que, para desgraça e ensinamento dos homens, a peste acordaria os seus ratos e os mandaria morrer numa cidade feliz...

Claro que temos que andar são os tempos adversos Que puxam para trás É claro que temos que ver a estrada Que um dia a história acaba...Que um dia a história acaba.

Tinha apenas ganho ter conhecido a peste e lembrar-se dela, ter conhecido a amizade e lembrar-se dela,conhecer a ternura e haver um dia de lembrar-se dela. Tudo o que um homem podia ganhar no jogo da peste e da vida era o conhecimento e a memória.

Quase nada.Como que uma picada de inseto que a princípio parece muito leve.

Se o desconhecido não tivesse telefonado, esquecia-se de vez da perda da agenda.Tentava lembrar-se dos nomes que lá estavam. Na semana anterior chegara a querer reconstituí-la, e começara a fazer uma lista numa folha em branco. Passado um instante, rasgara a folha. Nenhum dos nomespertencia a pessoas que tivessem contado na sua vida e cujas moradas e números de telefone precisassem de ser apontados. Sabia-os de cor. Naquela agenda , só conhecimentos ditos de "ordem profissional",algumas moradas pretensamente úteis, não mais do que trinta nomes... A única coisa que o preocupava na perda da agenda ra lá ter escrito o seu próprio nome e morada.

Sonhara muitas vezes, em tardes de solidão , que o telefone tocava e que uma voz doce lhe marcava um encontro... Mas a voz de há pouco não lhe inspirara confiança. Simultaneamente indolente e ameaçadora, essa voz.

Because happiness is a warm gun. Yes it is. Because happiness is a warm gun. Yes it is. Because happiness is a warm gun. Yes it is..

Que fiz eu da vida? Fiz o que ela fez de mim...De pensada, mal vivida...Triste de quem é assim! Numa angústia sem remédio Tenho febre na alma, e, ao ser, Tenho saudade, entre o tédio, Só do que nunca quis ter...Quem eu pudera ter sido,Que é dele? Entre ódios pequenos De mim, estou de mim partido.Se ao menos chovesse menos!

A minha inteligência tornou-se um coração cheio de pavor,/ E é com as minhas ideias que tremo, com a minha consciência de mim, / Com a substância essencial do meu ser abstrato / Que sufoco de incompreensível, / Que me esmago de ultratranscendente,/ E deste medo, desta angústia, deste perigo do ultra-ser,/ Não se pode fugir, não se pode fugir, não se pode fugir! / Cárcere do Ser, não há libertação de ti?/ Cárcere de pensar, não há libertação de ti?


Que droga foi a que me inoculei? Ópio de inferno em vez de paraíso? ... Que sortilégio a mim próprio lancei? Como é que em dor genial eu me eternizo? Nem ópio nem morfina. O que me ardeu, foi álcool mais raro e penetrante: e só de mim que ando delirante- manhã tão forte que me anoiteceu.

Ah, o ópio de ser outra pessoa qualquer! Não durmo, jazo, cadáver acordado, sentindo,E o meu sentimento é um pensamento vazio...

Porquê? Para quê? Economiza os teus «porquê» e os «para quê». Ou utiliza-os só até onde houver resposta. Porque a última resposta é o impossível e o vazio. Ou então terás de mudar de universo...

A minha alma partiu-se como um vaso vazio. Caiu pela escada excessivamente abaixo. Caiu das mãos da criada descuidada. Caiu, fez-se em mais pedaços do que havia loiça no vaso. (...) A minha obra? A minha alma principal? A minha vida? Um caco.E os deuses olham-o especialmente, pois não sabem por que ficou ali.

Só de ouro falso os meus olhos se douram; Sou esfinge sem mistério no poente. A tristeza das coisas que não foram
Na minha'alma desceu veladamente.

E quando o pensamento, assim absorto,Emerge a custo desse mundo morto E torna a olhar as coisas naturais,À bela luz da vida, ampla, infinita, Só vê com tédio, em tudo quanto fita,A ilusão e o vazio universais.


Não durmo; não posso ler quando acordo de noite,
Não posso escrever quando acordo de noite,
Não posso pensar quando acordo de noite(...)
Não durmo, jazo, cadáver acordado, sentindo,
E o meu sentimento é um pensamento vazio...


Passam por mim, transtornadas, coisas que me sucederam — Todas aquelas de que me arrependo e me culpo; Passam por mim, transtornadas, coisas que me não sucederam — Passam por mim, transtornadas, coisas que não são nada, E até dessas me arrependo, me culpo, e não durmo. Não tenho força para ter energia para acender um cigarro. Fito a parede fronteira do quarto como se fosse o universo. Lá fora há o silêncio dessa coisa toda. Um grande silêncio apavorante noutra ocasião qualquer, Noutra ocasião qualquer em que eu pudesse sentir. Estou escrevendo versos realmente simpáticos — Versos a dizer que não tenho nada que dizer, Versos a teimar em dizer isso, Versos, versos, versos, versos, versos... Tantos versos... E a verdade toda, e a vida toda fora deles e de mim! Tenho sono, não durmo, sinto e não sei em que sentir. Sou uma sensação sem pessoa correspondente, Uma abstração de autoconsciência sem de quê, Salvo o necessário para sentir consciência, Salvo — sei lá salvo o quê... Não durmo. Não durmo. Não durmo. Que grande sono em toda a cabeça e em cima dos olhos e na alma! Que grande sono em tudo exceto no poder dormir!

E o meu sentimento é um pensamento vazio... Um vazio pleno de uma imagem difusa, indistinta, que devia desaparecer, mas que ressurge, insistente... Antigamente, fechava os olhos para te ver e sorria. Agora, fecho os olhos para tentar não te ver e tenho medo...

Súbita, uma angústia... Ah, que angústia, que náusea do estômago à alma! Que amigos que tenho tido! Que vazias de tudo as cidades que tenho percorrido! Que esterco metafísico os meus propósitos todos! Uma angústia, Uma desconsolação da epiderme da alma, Um deixar cair os braços ao sol-pôr do esforço... Renego. Renego tudo. Renego mais do que tudo. Mas o que é que me falta, que o sinto faltar-me no estômago e na circulação do sangue? Que atordoamento vazio me esfalfa no cérebro? Devo tomar qualquer coisa ou suicidar-me? Não: vou existir. Arre! Vou existir. E-xis-tir... E--xis--tir ... Dêem-me de beber, que não tenho sede!?

Nem sempre medita e analisa. O pensamento também vomita... O pensamento faz engolir o vómito de fel...

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